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Democracia tensionada
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Na América do Sul, de diferentes formas, está perdendo força a onda democratizadora das últimas três décadas, que varreu as ditaduras. A deposição de Lugo, presidente eleito do Paraguai, e as reações dos países membros da Unasul e ainda mais dos membros do Mercosul são o fato mais recente a revelar tal perda de intensidade da democracia. Não estamos mais no período da democracia criativa, instaurado a partir dos anos 1980, que foi tomando conta da região, quando as contradições e disputas políticas levaram a inegáveis conquistas de direitos e práticas democráticas em detrimento de uma dominante cultura autoritária e excludente. Estamos entrando num período de democracias de baixa intensidade política, ritualizadas e com visível perda de substância democratizadora – aquela força que emana da incorporação participativa na política dos dominados, desiguais e excluídos, como sujeitos cidadãos, detentores de direitos. Entramos num período de mais tensões do que avanços, de democracia tensionada pelos velhos autoritarismos e populismos, sem poder transformador.
O debate instaurado na região a partir do “golpe democrático” aplicado pelo Congresso paraguaio mostra elementos importantes dos impasses da democracia na região, impasses que é fundamental que sejam enfrentados no nascedouro, pois a perspectiva de desmanche das conquistas democráticas é real.
A questão de fundo, a meu ver, é da legalidade e da legitimidade democrática. Longe de mim afirmar que esse é um problema específico do Paraguai. Como questão, é um fantasma presente em todos os países. Afinal, para pôr em foco um debate bem brasileiro, a Lei da Anistia é legal, sem dúvida. Mas é legítima? De um ponto de vista democrático, a prioridade é a legalidade ou a legitimidade baseada em direitos não evidentes, mas instituinte de nova legalidade? Questão complexa, mas que chegou a hora de enfrentarmos, se realmente queremos avançar na democratização. A deposição de Lugo foi legal; mas é legítima?
Podemos passar país por país e ver problemas em que a questão é essa. Por exemplo: a Constituição outorgada por Pinochet, no Chile, é legal e sustentou a democracia nos últimos 20 anos. Mas, em sã consciência, é legítima? A reforma constitucional na Venezuela, criando possibilidades ilimitadas de reeleição – reforma feita sob medida para Hugo Chávez –, é legal; mas é legítima?
Baseada numa maioria parlamentar, Cristina Kirchner conseguiu aprovar leis que levam ao controle nada democrático da mídia na Argentina. É legítimo? Aqui a coisa se complica ainda mais, pois a informação e o espaço público, como “comuns”, precisam ser regulados democraticamente, exatamente para que se mantenham como comuns e não “mercadorias” privadas. Mas, numa democracia, a regulação que visa essencialmente tornar ilegal quem discorda do poder dominante pode ser considerada legítima?
O problema revela especificidades do sentido e do projeto democrático. Por excelência, a democracia é mais um método de disputa do que o seu resultado. Ou seja, a forma de disputa – de luta política, para ser bem claro – qualifica o resultado na democracia, não o contrário. As regras, leis, ritos, princípios éticos – fundamentais na democracia – são referentes à forma de disputa e não ao maior ou menor resultado. Democracia não é uma questão de eficiência e resultado, mas de processo, em que lutas deixam de ser destrutivas e viram forças legítimas e construtivas do possível. Democracia, como diz Adam Przeworski, é um pacto de incertezas. Pacto de sustentabilidade democrática baseado na aceitação do resultado incerto das disputas, mas resultado construtivo porque legítimo.
Voltando ao ponto de partida: será que isso ocorreu no Paraguai? Os princípios, as regras, os ritos foram respeitados? Parece que não. Qualquer eleito pode ser destituído; eu diria que esse princípio de recall deveria ser mais usado, para o bem das democracias que temos. Os instituintes e constituintes são os cidadãos. Nessa qualidade de detentores de cidadania, de direitos e responsabilidades compartidas, são eles que, em última análise, podem e devem decidir sobre seus representantes eleitos. Será que isso pode ser delegado? No Brasil, Collor também foi destituído, mas depois de deslegitimado por quem de direito, a cidadania, num memorável movimento pela Ética na Política. A legalidade é derivada, e não instituinte. Quem cria legitimidade na democracia é quem pode: a cidadania. A não ser assim, é um golpe contra ela, mais do que um golpe contra o representante eleito. Parece que no Paraguai estivemos longe de todas essas condições políticas.
Voltando à essência de minha argumentação: vivemos um perigoso momento na região em que a legalidade – ou, pior, a judicialização da política pela interpretação da lei por tribunais – toma a primazia sobre a legitimidade da luta cidadã. Estamos encurralados como cidadania. Temos muitas vitórias a celebrar, olhando para trás, mas pouca esperança para nos mobilizar e participar, fazendo a democracia exercer seu papel de equalização, pela política, de situações tornadas desiguais por estruturas e relações existentes. Como cidadãos e cidadãs, por onde recomeçar o sonho democrático mobilizador de enormes energias coletivas? Eis o desafio para inverter essa onda que asfixia o poder transformador de nossas conquistas de cidadania na região.
Ao invés de sobressaltos provocados por forças reacionárias e autoritárias, profundamente presentes em nosso seio, tensionemos a democracia para que ela seja ainda mais democrática. Os jovens estudantes do Chile dão o exemplo.
Publicado em 17 de julho de 2012
Publicado em 17 de julho de 2012
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