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Professor confessor

Mariana Cruz

Não sei se sou eu, sei se é meu jeito, signo, a forma como leciono ou se acontece com todos os professores: o que eu sei é que, vira e mexe, um ou outro aluno arruma uma maneira de, ao final da aula, me pegar de surpresa e fazer alguma revelação bombástica a respeito de suas vidas. Com grande parte deles tenho boa relação, mas nada excepcional. Acho que o que facilita esse diálogo deve-se à disciplina que ministro: Filosofia, pois muitas vezes abordamos questões relacionadas a ética, preconceito e liberdade, mesmo tendo pouquíssimo tempo com eles por semana (dois tempos para o terceiro ano e para o primeiro e segundo ano o horário foi reduzido para exíguos 50 minutos semanais, ou seja, até para fazer a chamada é complicado). O fato é que, somente neste último bimestre, três alunas que me pegaram como confessora: uma adolescente grávida e duas vítimas de preconceito por causa de suas opções sexuais.

O modus operandi para iniciar a conversa é mais ou menos previsível: chegam como quem não quer nada, ficam enrolando para despistar os colegas fingindo arrumar o material na hora que bate o sinal (o que é no mínimo suspeito, visto que a maioria dos alunos a cinco minutos de terminar a aula já começam a guardar os livros sem a menor discrição). Quando veem que a sala está praticamente vazia, aproveitam para desabafar.

A primeira disse-me que estava angustiada, pois não sabia o que fazer nem com quem dividir o segredo de sua gravidez. Estava naquele estado já havia algumas semanas. Ela e o namorado, ambos com 17 anos, decidiram não contar para ninguém. Ela, na verdade não veio me pedir conselho – eu também não dei –, mas percebi que estava com uma necessidade enorme de desabafar. O que eu poderia dizer numa hora dessas? Uma decisão tão íntima, tão individual, algo que mudaria para sempre a vida daqueles dois jovens. No início fiquei meio sem saber o que dizer e fui pelo caminho mais óbvio: perguntei se ela não tinha se prevenido. E quando ia enveredar de vez pelo caminho da lição de moral e da importância do uso da camisinha, vi que não era isso que deveria ser dito naquele momento; aliás, nada precisava ser dito. Ela queria falar. Só isso. Eu lançava perguntas a fim de auxiliá-la a chegar à decisão sobre o que fazer, então ela ia enumerando os prós e contras. Senti-me exercendo o papel de Sócrates, cuja forma de filosofar resumia-se em questionar seus interlocutores, fazendo uso da maiêutica, que, ironicamente, significa “partejar” ideias. A menina estava angustiada e respondia às minhas questões rindo e ao mesmo tempo com os olhos marejados, era evidentemente um riso nervoso. Disse-me que não trabalhava, nem o namorado, não teriam como sustentar um filho e nem conseguia imaginar a reação da sua família quando soubesse; não queria interromper os estudos nem o curso que estava fazendo. Achava que um filho, naquele momento, ia acabar com sua vida. Nesse ponto, interferi pela primeira e única vez, dizendo que um filho não era um “fim” para sua vida e sim um novo caminho, uma mudança de rumos e que, mais à frente, sua vida poderia ser retomada, mas para isso ela teria que ter força, disciplina, responsabilidade e, sobretudo, muito carinho com a criança, e nunca responsabilizá-la por ter adiado certos planos. Era uma situação completamente nova e imprevista com que só iria aprender a lidar vivenciando-a. Não disse mais nada. Ela então continuou relatando suas angustias e, por fim, agradeceu. Pareceu-me que aqueles minutos de escuta deixaram-na realmente mais aliviada e mais certa sobre o que fazer.

De outra vez, foi uma aluna que se ofereceu para apagar o quadro ao término da aula; aproveitou que todos já tinham saído para contar o seu conflito. Disse-me que era “lésbica” e que sua família não aceitava. De acordo com ela, desde pequena já tinha uma “tendência”, só gostava de brincadeira de meninos, detestava bonecas, até que com uns 13, 14 anos começou a se interessar por meninas. Seus pais, quando souberam, reprimiram-na severamente, mas ela bateu pé. Até que foi mandada para morar com uma tia em uma cidade perto do Rio. De nada “adiantou”. A mãe, com saudade, chamou-a de volta. Atualmente todos fazem vista grossa. As discussões espaçaram, mas agora enfrenta um novo problema, pois está namorando sério com uma menina e sabe que quando descobrirem não vai ser fácil. Falou ainda das estratégias que a mãe usa na tentativa de fazê-la mudar de opção, como levá-la para comprar um monte de roupas de “tchutchuca”. Dessa vez acabei dando uns pitacos, aconselhando-a a não bater de frente com sua família, não ser agressiva com eles, tentar conversar de forma franca, porém carinhosa com a mãe, pois ela também está se adaptando a essa opção da filha.

A última foi uma aluna me abordou no corredor na hora da saída. Ela, assim como a outra, era homossexual, mas não tinha problema com a família, exceto uma tia. Segundo ela, essa tal tia vivia alardeando que não era preconceituosa e tinha “um monte de amigos gays”, mas quando ela “se assumiu” foi quem mais criticou. O chato é que moram na mesma casa, então as discussões são constantes. Mas isso nem a incomoda tanto, o importante é que seus pais aceitam. O problema era na sua antiga escola, onde era constantemente “zoada” pelos seus colegas que a chamavam por apelidos desrespeitosos e faziam piadinhas de mau gosto sobre sua opção sexual. Mas agora estava bem, tinha conseguido trocar de escola e lá todos aceitavam sua opção e tinha inclusive um círculo de amizades, coisa que durante um bom tempo não existia em sua vida escolar. Não tinha cabimento ela não precisar esconder da família e precisar esconder dos colegas.

Revendo tais casos recentes me pergunto sobre o que é de fato ser professor, essa profissão tão cheia de surpresas: a cada dia, a cada turma, a cada ano. Assim é que, quando menos se espera, está lá aquele aluno aguardando o final da aula em busca de um ombro, um consolo, um conselho. E lá estamos nós a exercer as múltiplas funções que cabem nesse ofício: sacerdote, educador, psicólogo, confessor ou até, quem sabe, professor.

Publicado em 17 de julho de 2012

Publicado em 17 de julho de 2012

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