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Democracia: um risco necessário
Pablo Capistrano
Escritor, professor do IFRN
Walt Whitman, o profeta das modernas ordens democráticas, poetizou um dia: “resisto melhor a tudo que não seja minha própria diversidade”.
Hoje, amigo velho, as escolas cantam a canção da diversidade e da cidadania em seus projetos político-pedagógicos. Nossas escolas estão antenadas, pelo menos nas escrituras que as regem e nas fundamentações teóricas que as instauram, com um tipo de ordem democrática muito semelhante àquela que Whitman vislumbrou no século XIX em pleno entusiasmo maníaco de seu alumbramento poético.
O grande problema é que uma escola não se faz com leis, regulamentações ou tratados de intensões. São as práticas, amigo velho, que constituem uma escola. É sua disposição geométrica, seu modo de se apropriar do tempo dos outros, suas sirenes, seus “bimestres”, suas reuniões pedagógicas, suas cadernetas preenchidas de notas e seus “conteúdos de aula” (como se uma aula não fosse essencialmente forma). São suas coordenações, seu planejamento orçamentário, seus conselhos de classe, seus cargos comissionados. É tudo isso que constitui aquilo que alguém chamou um dia de “processo de ensino-aprendizagem”.
É cruel, amigo velho, que se fale a um professor que ele é obrigado a “ensinar cidadania” a seus alunos, quando a escola em que trabalha não pratica a democracia, quando as reuniões de gestão são fechadas, quando a comunidade não participa dos conselhos, quando os alunos não tem voz nas reuniões pedagógicas, quando os cargos em comissão não são eleitos e continuam a ser tratados como “cargos de confiança”, como se fossem propriedade dos diretores e não da comunidade que os sustenta.
Não é possível “ensinar cidadania” onde a democracia não é praticada. Não é possível “trabalhar a diversidade com os alunos” em ambientes nos quais as deliberações de gestão não são transparentes, públicas, coletivas, plurais.
É uma tortura que se apresente aos professores das humanidades a tarefa de transmutar a alma dos alunos e torná-los cidadãos, se a lógica que fundamenta a escola brasileira ainda for excludente e aristocrática. Não há sortilégio filosófico nem malabarismo sociológico que permita um milagre alquímico dessa magnitude.
Esse é um dos mais constrangedores impasses da escola burguesa, que nasceu no século XVI e chega a esse século XXI com as mesmas carteiras postas em fila, com o mesmo quadro branco (ou negro), com o mesmo retrato três por quatro na ficha (agora digitalizada) do aluno, com as mesmas marcas de tinta vermelha nos boletins em notas de zero a dez.
A náusea da escola brasileira é saber-se detentora de uma tarefa para qual não foi pensada. Nosso desconforto, amigo velho, é por sentir que nenhum aluno vai acreditar no velho professor que recita Whitman na sala de aula, se a escola pública e gratuita em que ele estuda não for gerenciada pela comunidade para a qual foi criada.
Como dizia a poesia do velho Tio Walt na tradução de Bruno Gambarotto: “Sou de toda cor e casta, de toda religião ou classe, fazendeiro, artesão, artista, cavalheiro, marinheiro, amante, quacre, prisioneiro, rufião, baderneiro, advogado, médico, padre”.
Resisto melhor a tudo que não seja a minha própria diversidade.
Publicado em 31 de julho de 2012.
Publicado em 31 de julho de 2012
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