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Uma narrativa histórica saborosa

Alexandre Rodrigues Alves

Não é novidade que, de maneira geral, conhecemos pouco da história da América Latina – não só da história como da cultura, da música, da culinária (exceto o churrasco)...

Cabeza de Vaca, escrito pelo jornalista Paulo Markun – que durante anos comandou o programa Roda Viva, da TV Cultura – pode ajudar a diminuir essa dívida latino-americana.

Don Alvar Núñez Cabeza de Vaca, que viveu do final do século XV até a metade do século XVI, teve uma trajetória de vida impressionante. Mergulhou de cabeça na ocupação do Novo Mundo, recém-descoberto, viajando pelas três Américas.

Suas atitudes mostram a intrepidez, a ousadia e a persistência de um homem que passou de alcoviteiro a governador, de prisioneiro a escritor, de comerciante a curandeiro.

Para contar essa história, Markun baseou-se não apenas nos livros escritos por Cabeza – Naufrágios e Comentários, consideradas obras pioneiras da literatura de viagens – como também em importantes historiadores da época e da atualidade. O livro traz, ainda, um caderno com iconografia do período e do “personagem”, como é chamado pelo autor. Essa sólida documentação leva o leitor a avaliar com atenção as opiniões do protagonista sobre as suas próprias atitudes e decisões, colocando em cheque as afirmações feitas por ele – e, como consequência, de todos os livros de história.

O livro trata de um período formador da história da América Latina (e, por extensão, do Brasil); é interessante e até surpreendente saber como eram feitas as indicações dos participantes das expedições exploratórias do novo continente, o que pretendiam encontrar, os conflitos políticos e pessoais envolvidos, os interesses econômicos que predominavam e a influência (econômica, sociológica e cultural) da Igreja Católica em toda essa atividade. Como diz o editor, na orelha, “a história é mesmo surpreendente: Cabeza de Vaca sobreviveu a três naufrágios, curou centenas de índios, atravessou – nu e descalço – parte dos atuais Estados Unidos e México (...) tomou posse de Santa Catarina, na condição de seu primeiro governador”.

A qualidade da narrativa de Markun – ainda que não dispense várias citações de documentos e a farta bibliografia ao final – faz com que o leitor se envolva na história, embora as divergências de opinião e pontos de vista provoquem certo distanciamento e uma suposta isenção em relação ao personagem.

Ao relatar o dia a dia de uma expedição, muitas vezes de maneira minuciosa, Cabeza de Vaca faz pensar sobre situações inusitadas da ocupação europeia em nosso continente, como as dificuldades em caminhar léguas e léguas em uma floresta fechada, em ficar vários dias sem ter o que comer; conta as dificuldades de comunicação e as deserções de expedicionários e as mudanças de posição de algumas tribos (aliás, há no livro menções a tribos e grupos linguísticos nunca antes citadas nos livros didáticos), barcos encalhados no Rio da Prata, o esvaziamento completo da cidade de Buenos Aires, os temporais enfrentados na travessia do temido Oceano Atlântico...

Só pra dar um gostinho de quero mais:

Dois dias depois, os quatro náufragos [os espanhóis] “encomendaram suas almas a Deus” e partiram sem se despedir. Temendo uma eventual perseguição, marcharam o dia todo até avistar sinal de fumaça. Estavam inseguros quanto à recepção que teriam, mas, felizmente, os avavares já tinham ouvido falar das habilidades do xamã do quarteto e os acolheram muito bem. Deram-lhes tunas e os acomodaram nas casas de seus curandeiros, pois “sabiam a maneira como curávamos os enfermos e o modo maravilhoso como Nosso Senhor agia conosco”, relata Cabeza de Vaca. Nosso personagem começava a se dar conta de que o posto de curandeiro poderia ser muito útil naquelas terras, “permitindo que não fôssemos mortos, sustentando-nos em meio à forme geral e inspirando aqueles povos a nos tratar bem”.

Ficha técnica do livro:

  • Título: Cabeza de Vaca
  • Autor: Paulo Markun
  • Gênero: Literatura histórica
  • Produção: Companhia das Letras

Publicado em 31/07/2012

Publicado em 31 de julho de 2012

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