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A metafísica do aborto
Pablo Capistrano
Professor de Filosofia do IFRN
Tem muita metafísica no debate sobre a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos. E a metafísica, no dizer de alguns colegas filósofos (geralmente pós-modernos), é como uma doença contagiosa; você a espalha por todo canto antes de saber com o que está infectado.
Existe a metafísica materialista, dos que assumem um sistema de crenças (que se esconde atrás da autoridade de uma ciência que muitas vezes esquece a própria provisoriedade e se flagra dogmática) que diz que, se toda realidade é física, então a consciência deve estar em algum lugar no corpo, e esse lugar só pode ser o cérebro.
Existe a metafísica cristã-humanista, dos que entendem que há algum tipo de característica especial no ser humano que torna sua existência sobre a Terra algo sagrado, que não pode ser questionado em nenhuma hipótese.
No primeiro caso, assume-se um argumento interessante. O cérebro produz a consciência; não sabemos como isso acontece, porque ainda não entendemos totalmente como o cérebro funciona, mas, quando descobrirmos, provaremos que estamos certos. Enquanto isso, é melhor você aceitar nossa hipótese, porque, como todo mundo sabe, ela é a única hipótese razoável. Além do mais, somos cientistas, e isso já é suficiente, não é mesmo?
No segundo caso, assume-se que a vida humana é sagrada porque, afinal, temos algo especial. E porque temos algo especial? Porque possuímos algo que nos diferencia, por exemplo... de uma preá.
Bem, talvez o ser humano tenha sido criado por algum projetista inteligente que pensou esse universo, que nos ama e que nos fez à sua imagem e semelhança e que nos deu o ônus e o bônus de governar a natureza e corrigir, com nossa moral, com nossa ética e nossa racionalidade, a brutalidade sem forma das coisas do mundo.
Ou então talvez sejamos especiais porque, afinal, somos humanos e é importante que a gente diga que somos especiais e que nossa vida é sagrada; afinal, é interesse de nossa espécie que isso seja verdade.
Discutimos o aborto a partir desses pressupostos globais e muitas vezes assumimos emocionalmente as trincheiras que a biopolítica ideológica destes tempos sombrios nos impõe. Oferecem-nos os lados e pedem que nos posicionemos sobre a questão, como se tudo se resumisse a ser pro life ou pro choice. Constroem um consenso simulado para enfrentar uma falsa questão (“você é contra ou a favor do aborto”) enquanto os aspectos jurídicos, políticos, econômicos e sociais da questão se mantêm encobertos por problemas que não são postos para ser resolvidos, mas para gerar novos problemas.
Tentar argumentar com perguntas do tipo “o que é uma pessoa?”; “o que é a consciência?”, “quando a vida humana começa” pode ser uma atividade interessante para a Filosofia, mas pode ser fatal quando se torna uma tarefa propedêutica a solução de um caso jurídico concreto.
Amigo velho, depois de Kant, todo filósofo de vergonha, quando entra no pântano da Metafísica, sabe onde está pisando. É um absurdo que nossa classe de pensadores com carteirinha do MEC deixe juristas, donas de casa, militantes de todas as cores e tendências, médicos, cientistas e religiosos afundarem o pé nessa lama, sem avisar a todo mundo que ela afunda.
Publicado em 3 de julho de 2012.
Publicado em 01 de fevereiro de 2012
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