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As estrelas frias e os anjos do asfalto

Mariana Cruz

Aquele dia, depois do trabalho acabei pegando um caminho que nunca tinha feito antes. Do nada. E mais do nada ainda, ao chegar à esquina no Passeio Público com a Senador Dantas, resolvi entrar numa farmácia para comprar algumas coisas que eu, definitivamente, não estava precisando. Talvez tenha me permitido tal escapada da rotina pelo fato de, naquele dia em especial, não precisar ir correndo para buscar minha filha na escola. Ela iria dormir na casa da avó. Mas eu estava cheia de afazeres; portanto, não podia deixar me levar pela sedução do centro do Rio, com suas exposições, prédios históricos, centros culturais ou mesmo um happy hour clássico com os amigos em algum bar tradicional daquelas bandas. A quantidade de pendências que me esperavam em casa não me permitia tais extravagâncias naquela semana. A mudança de rota era apenas um paliativo, uma forma de sentir um arzinho de liberdade por alguns instantes.

Entrei na farmácia e fiquei lá hipnotizada nas prateleiras dos condicionadores, tendo que fazer a difícil escolha sobre qual seria o produto ideal para o meu tipo de cabelo, um antifrizz ou para cabelos opacos e quebradiços? Um que combatesse as pontas duplas ou um que deixaria meu cabelo 6 vezes mais macio? Tive vontade de comprar este último para tentar entender essa matemática capilar doida. Mas desisti. São tantas as opções que, às vezes, sinto saudade do Neutrox de antigamente. Podíamos, no máximo, escolher entre o 1 – para o dia a dia – ou o 2 – para a piscina. Como as coisas eram simples...

Do lado de fora estava um morador de rua encolhido num canto da porta. Ele dava uns gritos de vez em quando. Isso quase me fez desistir de entrar na farmácia e continuar meu caminho para o ponto de ônibus. Não estava a fim de ficar escutando os urros dos “bêbados do centro da cidade”. Mas ignorei o mendigo e entrei mesmo assim; afinal, meus cabelos estavam precisando de cuidados. E como a seção de cabelos ficava no fundo da farmácia, lá estava livre dos grunhidos inconvenientes do homem. Depois de ter escolhido o produto ideal para minhas madeixas (que provavelmente causaria o mesmo efeito que o Neutrox 1 ou 2 de outrora) dirigi-me ao caixa. E o sujeito continuava e gritar. Foi então que consegui compreender o que ele dizia. Não, ele não estava bêbado. Estava com dor. Ele não pedia dinheiro, nem praguejava contra os transeuntes, suplicava por uma ambulância “pelamordedeus”. E as pessoas pareciam surdas – inclusive os funcionários da farmácia – às súplicas do homem: “Chama a ambulância! Tá doendo”. Ninguém parava (“passava cada estrela fria”, já dizia a música). Fiquei perplexa com a cena, saí da fila e dirigi-me até a porta para ver o que estava acontecendo com aquele indivíduo. Nesse mesmo instante adentrou a farmácia uma senhora vistosa e elegantemente vestida. Ela logo olhou o homem e, sem titubear, disse para quem estava ao redor: “Gente, esse homem tá sentindo dor, o que a gente faz?”. Nada disseram. Foi quando saí do meu egoísmo e percebi a gravidade da cena: um homem implorando ajuda aos seus semelhantes. Tal semelhança, porém, parecia não ser vista. Juntei-me à mulher. Tínhamos que fazer alguma coisa imediatamente, mas o quê? “Liga para o Samu, é 192”, alguém disparou e partiu. Ela rapidamente pegou o celular e discou. Musiquinha e questionários. Fiquei ao seu lado auxiliando nas respostas: nome, localização, sintoma do paciente, idade (dissemos quando aparentava), blablablá. O atendente disse para aguardar na linha que iria passar para a médica, mais musiquinha. Dez minutos depois, a médica atendeu e fez mais perguntas. Até que quis saber o nome do homem.

Como eu estava fazendo o papel de intermediária entre a mulher – que se apresentou como Fátima – e o homem, lá fui eu falar com ele: Fábio não sei das quantas; a médica então perguntou o que ele estava sentindo e fui novamente ter com ele. Reproduzi para Fátima tudo o que ele, com o maior esforço, havia me dito. E ela repassou para a doutora, mostrando também sua aflição: “Uma forte dor abdominal, ele não consegue nem levantar, nem falar direito, está gemendo de dor, tem que vir logo uma ambulância”. Não satisfeita, a médica pediu para falar com ele; eu disse para Fátima falar com a doutora que ele não tinha condições de falar (no fundo, porque não concebia o fato de aquela elegante senhora emprestar seu celular para ele), mas, surpreendentemente, ela nem hesitou: passou o aparelho para aquele homem sujo, desdentado, esparramado no chão, como se estivesse passando para o Príncipe Harry. Essa cena fez-me ver como eu estava sendo preconceituosa. Fiquei com vergonha de ter dito que ele não podia falar. O homem pegou o aparelho e disse com muita dificuldade e de maneira simples o que havíamos dito: “tô com muita dor na barriga, muita dor”. Com o celular de volta, Fátima continuou dando informações sobre o cidadão: o descreveu como um catador de latas (pois estava com um saco delas) que parecia morar na rua. Mas o jeito como ela falava parecia estar se referindo a um advogado morador do Leblon. Na mesma hora, o rumo da conversa se modificou e, depois de toda aquela espera, a médica perguntou se ele estava com febre; ele disse que não. Então foi a deixa para ela se esquivar: disse que só poderia enviar a ambulância em caso de febre e deu outro número para ligar.

Então foi minha vez de telefonar; peguei meu celular e liguei para o novo número, e logo veio uma gravação dizendo que o número não era mais aquele e deveria ligar para o número tal. Liguei para o número indicado: mais gravação e, depois de minutos, atenderam-me: “vou transferir a senhora para o ramal tal”. Mais musiquinha. Por fim, consegui ser atendida por uma pessoa de carne e osso. Expliquei toda a situação, identifiquei-me, dei a nossa localização, o nome completo do Fábio e descrevi o que ele estava sentindo. “Senhora, isso é com o 192, nós aqui recolhemos a população de rua, e demora dez dias!”; “Mas a doutora disse que era com vocês”; “Não temos ambulância, isso é com o 192!”. E lá vamos nós... De volta ao 192 e a toda a sabatina: atendente, musiquinha, perguntinhas e, por fim, a doutora (desta vez era outra). Novamente: nome, local, nome do paciente, sintoma... Mas antes que a médica fizesse alguma pergunta cuja resposta descaracterizasse o caso do catador como urgente, ressaltei as pérolas ditas pela outra médica e disse que me recusaria a aceitar aquelas mesmas desculpas esfarrapadas, pois aquilo estava parecendo mais um preconceito velado e o caso dele era indubitavelmente grave. Essa médica disse que eu estava correta e que iria providenciar o quanto antes a ambulância. Então só nos restava aguardar. Enquanto eu estava revoltada com a situação, Fátima se condoía com o homem, desesperava-se com a dor dele. Ela me disse mais de uma vez que aquele homem era Jesus, era ele que estava lá. Eu não entendi bem o que ela queria dizer com isso, mas fiquei na minha (mais tarde comentei essa afirmação com minha mãe, que é bastante católica, e ela me disse que há uma passagem da Bíblia que fala sobre isso). Fátima parecia ter uma compreensão da situação bem mais elevada que a minha, não se revoltava com a indiferença das pessoas nem com a lentidão dos serviços públicos; só pensava na dor do homem, ela parecia senti-la também.

Eu tinha consciência de que não compartilhava da grandeza de sentimentos dessa admirável mulher. Estava mais era indignada com a situação. E lá se foram dez, vinte, trinta minutos, e nada. Comecei a pensar que a ambulância não viria. O homem, então, no auge da dor e talvez pensando que o socorro não chegaria, em uma atitude desesperada, levantou-se com extrema dificuldade, caminhou, ou melhor, se arrastou, com o corpo curvado até chegar à pista e deitou-se entre a calçada e a rua. Assim, quem sabe se estirando “na contramão atrapalhando o tráfego”, alguma providência fosse tomada? Ao verem tal cena dramática, as pessoas que passavam pareciam estar mais mobilizadas que outrora, faziam uma expressão de pena e seguiam seu caminho; outras faziam cara de nojo ou desprezo. Até que uma menina parou, preocupada; depois outra, depois um rapaz. Agora éramos cinco. Juntos começamos a ver que atitude tomar. Uma das moças ligou novamente para o 192, a outra ligou para um amigo bombeiro para saber como agir; o rapaz, ao tentar tirar o homem da rua, percebeu como seu corpo estava gelado, ele tremia. O rapaz tirou uma camisa de dentro da mochila e usou para cobrir o homem, mas ele continuava suando frio. Uma das moças pediu um pano velho de um camelô e cobriu Fábio. A boca estava seca. Aqueles três jovens começaram a se revezar nos cuidados com o homem, e, a despeito de ele ser quem era, não tinham a menor frescura de tocá-lo, cobri-lo, sentirem a temperatura de seu corpo. Uma das meninas conseguiu novamente falar com 192 e de lá confirmaram que já tinha acionado o quartel da região, tínhamos que aguardar. E lá ficamos os cinco em torno do homem agonizando.

Durante a espera, trocamos algumas impressões sobre o que estávamos vivendo, especulávamos sobre a causa da dor do homem, sobre a indiferença das pessoas, relatávamos casos de acidente, primeiros socorres etc. E o tempo foi passando. Agora, porém, junto a Fátima e aos três jovens, a angústia parecia menor, o próprio homem parecia sentir-se mais amparado. Nós cinco formávamos um círculo em torno de Fábio como um escudo protetor. Havia tamanha cumplicidade entre nós que conversávamos como velhos conhecidos. O tempo que demorasse ficaríamos todos ali esperando socorro. Já não importavam os compromissos posteriores; a prioridade era aquele homem. Unicamente ele.

Algum tempo depois, ouvimos a sirene, acenamos e a ambulância veio. Eram três bombeiros (não sei se médicos ou enfermeiros, mas dava para ver que tinham prática no assunto). O que parecia ser o chefe começou examinar o Fábio ali mesmo na calçada: “dói aqui?”, dizia apertando seu abdome; o pobre homem urrava, “e aqui? E aqui?” Do outro lado não doía. Eu, intrometida, perguntei se poderia ser apendicite, pois ouvira falar que durante a crise as dores eram intensas. O bombeiro disse que o apêndice era do outro lado. Depois dessa, restringi-me a responder somente às perguntas do bombeiro. A dor não cessava; levaram então o cara para dentro da ambulância e ficaram lá um tempo. Uma das meninas contou que um dia estava com a tia na rua e ela começou a passar mal, chamaram o Samu e eles tentaram de tudo para resolver no próprio local. E resolveram. Parece que eles só levam para o hospital em casos muito graves. Passados mais alguns instantes, o bombeiro veio até nós e disse que levaria o homem. Por fim, partiram.

Ficamos os cindo nos entreolhando, sem saber direito o que fazer, como se despedir. Era como se aquele acontecimento tivesse gerado uma irmandade momentânea entre nós, e agora não havia mais motivo para tal. Cada um iria seguir seu caminho e provavelmente nunca mais nos veríamos. Trocamos mais alguns comentários sobre o episódio. Era o fim. Olhei para Fátima – a mulher que deu início a toda essa história – e ela me deu um forte abraço. Tal gesto se seguiu com as outras pessoas, todos nos abraçamos. E cada uma tomou seu rumo.

No caminho até o ponto de ônibus fui pensando em tudo que acontecera, e um ponto comum entre eles me chamou a atenção: como eram bonitos aqueles quatro! Eram anjos?, brinquei comigo mesma. De fato. Anjos do asfalto.

Publicado em 20 de março de 2012

Publicado em 01 de fevereiro de 2012

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