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Considerações sobre O Estrangeiro de Albert Camus

Carolina Natale Toti

Publicado antes de O mito de Sísifo, O estrangeiro primeiramente imergiu seus leitores no clima do absurdo. Em contato com a realidade densa, mergulhado em acontecimentos incompreensíveis e sem comentários, o leitor teve o sentimento da condição absurda, sem qualquer clareza conceitual. O ensaio O Mito de Sísifo, lançado em seguida, instruiu o leitor sobre esse mundo opaco. Nesse texto, Camus distingue o “sentimento” da “noção” de absurdo – “O sentimento do absurdo não é, portanto, a noção do absurdo. Ele a funda, simplesmente. Não se resume a ela” (2008, p. 43). Pode-se dizer que o romance, publicado primeiro, fez seus leitores sentirem o clima do absurdo, provocando a impressão de uma realidade desarrazoada, enquanto o ensaio comentou e buscou esclarecer o raciocínio absurdo. Como disse Camus, o sentimento do absurdo é anterior à noção e a ultrapassa, de modo que não é possível esmiuçar e compreender completamente o romance. O protagonista Meursault permanece incompreensível, mesmo para o leitor já familiarizado com O Mito de Sísifo. Isso mostra como Camus deu ao personagem uma densidade própria, sem reduzi-lo a uma mera ilustração da noção exposta no ensaio. Meursault é um personagem indiferente, tranquilo, que se deixa levar, somente. Não costuma se interrogar, como ele mesmo vai dizer. Não se inquieta com os problemas que Camus levanta em O Mito de Sísifo, não parece revoltado com a nossa condição mortal, de modo que o leitor não pode decifrá-lo nem compreendê-lo totalmente a partir da leitura do ensaio. Esse personagem possui seu caráter próprio. Em seus gestos há sempre algo que nos escapa. E essa impossibilidade mesma de explicar o romance, mesmo após a noção apresentada em O Mito de Sísifo, mostra a nossa condição absurda: não podemos racionalizar os nossos sentimentos, somos incapazes de elevar à consciência, de conceituar grande parte daquilo que somos nós.

O Estrangeiro é uma obra em que tudo está organizado para provocar no leitor uma sensação de estranhamento, para introduzi-lo numa atmosfera opaca e inexplicável. Predominantemente descritivo, percorre as imagens sem lhes atribuir significados, não explica, não justifica nem prova. Limita-se a ilustrar o absurdo, o acaso, as contradições insuperáveis, os paradoxos da condição humana.

O leitor acompanha todos os acontecimentos a partir da perspectiva do protagonista Meursault, esse indivíduo absurdo que vive absorto em uma notável indiferença, em um presente perpétuo no qual o leitor é imerso. Sua visão estrangeira do mundo observa apenas as imagens, o movimento superficial, vazio e mecânico das coisas, sem qualquer profundidade. Registra a sucessão descontínua dos acontecimentos e não percebe neles nenhuma ligação substancial, nenhum sentido que os unifique – “Camus faz como quando se transporta um estrangeiro para uma civilização desconhecida, que percebe ali os fatos antes de lhes captarem o sentido” (Sartre, 2005, p. 129). O mundo é observado em sua irracionalidade e crueza. Entre os eventos não aparecem relações causais; as ações parecem desligadas entre si, os gestos se rompem, não demonstram ordem nem fundamento comum.

Camus descreve a pura aparência dos movimentos sem lhes imputar sentido, de modo que os atos parecem desatados. As próprias frases são construídas dessa maneira: são breves, rápidas, parecem desconectadas entre si. O romance é quase todo escrito com frases descontínuas, independentes umas das outras – “Quando é absolutamente necessário fazer alusão à frase anterior, utilizam-se as expressões: e; mas; depois; foi nesse momento que; que evocam apenas disjunção, oposição ou pura adição” (Sartre, 2005, p. 129). Camus procurou evitar tudo que pudesse formar relações de causa e efeito, que demonstrasse continuidade entre as ações, de modo que o leitor fica suspenso em uma estranha atmosfera, já que nada se explica ou se fundamenta racionalmente, exceto quando aparecem diálogos. As frases desconexas descrevendo imagens sem significado formam uma sucessão de presentes isolados, instantes sempre recomeçados, separados dos anteriores e dos posteriores. Cada frase é um momento que se esvai, um aqui e agora que não se comunica com o passado e o futuro, um breve ponto no presente. Os instantes não se apoiam entre si, de forma que não existe progressão ou unissonância entre acontecimentos.

Camus utiliza muito também o recurso descrito por Sartre em que o personagem estrangeiro percebe antes as imagens e depois o sentido dos acontecimentos, estranhando com frequência o comportamento usual das pessoas ao redor, os hábitos comuns.

A atenção de Meursault permanece voltada para suas próprias sensações. Ele observa, registra a movimentação à sua volta e descreve a percepção de seus sentidos, de modo que o leitor é constantemente informado sobre as oscilações do tempo, as cores, os aromas, a luminosidade dos ambientes que ele percorre, fazendo exatamente o que Camus propõe mais tarde em O Mito de Sísifo: “enumerar as aparências e fazer sentir o clima” (2008, p. 26). Sempre alternando entre o relato dos acontecimentos e de suas sensações, Meursault descreve seus prazeres de superfície enumerando as “mais pobres e mais tenazes” (s/d, p. 106) das suas alegrias, o que ele faz constantemente durante todo o romance: observa as cores matizadas do céu, sente os diversos aromas da natureza, se deleita com a variação do tempo.

Para esse personagem, nada importa; os acontecimentos lhe parecem todos equivalentes. Assim o vemos repetindo diversas vezes que as coisas não são importantes. Ele retoma constantemente o problema da equivalência das experiências. Uma vez que não é possível apreender a substância das coisas; tudo parece igualmente vazio de significado.

O que é fácil perceber nesse personagem é que ele está sempre voltado para seus sentidos, para suas alegrias superficiais, mergulhado em impressões físicas, sem qualquer profundidade. A indolência é a sua disposição comum. Mas esse alheamento das coisas, o pensamento de que as experiências se equivalem não significa que ele se mantenha apartado do mundo. Pelo contrário: a despeito da falta de sentido, da ausência de profundidade das coisas, apega-se aos prazeres possíveis da superfície do mundo.

Meursault é um personagem primitivo, sempre mergulhado no presente e atento ao concreto, indiferente a metafísicas e a todos os valores que fundamentam a civilização. Vive alheio às normas mais essenciais da sociedade, tal como um selvagem, um estrangeiro. Sente-se inocente porque se encontra numa condição por princípio injusta. Ele não se importa em justificar nada nessa existência, que por si só é injustificável.

Referências

CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, s/d.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2008.

SARTRE, Jean-Paul. Explicação de O estrangeiro. In: SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Trad. Cristina Prado. São Paulo: CosacNaify, 2005.

Publicado em 3 de julho de 2012

Publicado em 01 de fevereiro de 2012

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