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Cuidar, conviver e compartir

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

Conferência Rio+20

A crise capitalista, com intensidades e formas variadas, é mundial no seu impacto. As promessas da globalização estão ruindo como um castelo de cartas. Aliás, não há melhor imagem para definir o desastre que a do “cassino global”, de uma economia operando segundo a lógica da financeirização, que domina a vida real de povos inteiros. Talvez o monumental desmonte de direitos e conquistas sociais na Europa de hoje, para atender às demandas do mercado financeiro e salvar bancos, seja o sinal mais revelador do que se tornou o sistema dominante. Mas isso é a ponta do iceberg da crise. A desregulação e o descontrole se revelam de modo particular na incapacidade de tal economia servir às necessidades básicas da maioria da população mundial, mas, apesar disso, assentar num modelo de produção e consumo que afetam a integridade dos sistemas ecológicos do próprio Planeta, como bem comum da vida, de toda a vida.

A Conferência da ONU se define como de Desenvolvimento Sustentável; no entanto, ela não visa enfrentar as contradições do sistema existente, mas sim alimentar um novo surto de crescimento econômico-financeiro. Business as usual é o que está sendo a referência com a tal economia verde. Rever as bases do insustentável modo de produzir e consumir dominante, além de profundamente injusto, não está na mesa de negociação. Pensa-se que, com a economia capitalista voltando a crescer, será possível erradicar a pobreza – sem diagnosticar que a causa da pobreza é exatamente a lei férrea de tais economias que têm como motor a imprescindível acumulação de capital. Não se trata de primeiro servir às necessidades humanas nem de garantir a sustentabilidade da vida e do Planeta. Trata-se de oportunidade e sustentabilidade para negócios crescentes, rentáveis. Desta vez é toda a natureza que querem mercantilizar.

Contra isso tudo, puxada por vários movimentos sociais, organizações cidadãs e redes, cresce no seio de sociedades civis a consciência de princípios e valores que podem reorganizar a infraestrutura humana da economia e do poder para a sustentabilidade da vida e do Planeta. Cuidar, conviver e compartir é, no cotidiano, o essencial para a vida humana. Deveria ser o fator central de qualquer economia para o bem viver. No entanto, nada mais distante disso do que o mercado e o valor mercantil como regulador da economia. Cuidar, conviver e compartir implicam atividades e práticas que não têm valor para uma economia mercantilizada, nada acrescentando ao tal PIB.

O cuidado pode ser tomado como fundante do viver bem. Trata-se de atividade do dia a dia, do viver humano. O movimento feminista nos lembra que, sem o cuidado, não existiriam bebês e crianças e a vida não se reproduziria. Aliás, sem carinho e amor, o que seria a vida humana? Sem as atividades de apoiar e olhar com carinho, vigiar, cozinhar e servir, limpar, enfim, sem a economia doméstica – totalmente fora dos cálculos do PIB – a própria vida humana não existiria. É nesse espaço privado e não mercantil que se gesta o essencial do humano. Esse trabalho essencial é realizado fundamentalmente pelas mulheres, que carregam o fardo da dupla jornada e sofrem a dominação machista. Estamos, sem dúvida, diante de uma das contradições mais reveladoras do sistema econômico dominante: ele põe a vida de ponta-cabeça, ao invés de servir à vida.

Na verdade, além de desprivatizar as famílias e eliminar a dominação machista no seu interior e na sociedade como um todo, precisamos erigir o princípio do cuidar como central da nova economia, da nova gestão da grande casa (lembrando a etimologia da palavra economia), que é simbiose da vida humana com a natureza, a indispensável vida em comunidade, onde se convive e se compartilha tudo, organizam-se os territórios humanos como forma de viver segundo as potencialidades e limites do lugar que ocupamos no Planeta, a economia e o poder que daí resultam, do local ao mundial.

Cuidar é um imperativo ético para dentro do humano e da nossa relação com a natureza. Sem cuidado, a atmosfera foi colonizada pelas emissões de carbono das grandes corporações econômicas, dos mais ricos e poderosos, pelo consumismo do luxo crescente e do lixo. Sem cuidado, se fez a empreitada colonial de conquista de povos e seus territórios e, hoje, continua a disputa desenfreada, com guerras se necessário, pelos recursos naturais do Planeta. Sem cuidado – a Eco 92 adotou o princípio da precaução, sistematicamente desrespeitado até aqui –, estamos desenvolvendo sementes transgênicas e destruindo a biodiversidade ainda existente. Sem cuidado, estamos poluindo a água, ameaçando a vida nos oceanos, desmatando e criando desertos. A economia verde que sai dos documentos oficiais da ONU ignora todas essas questões vitais para a sustentabilidade.

O cuidar tem como corolários o conviver e o compartilhar. Para florescer, a economia do cuidado depende da comunidade e das relações de amizade, do conviver e compartilhar que a comunidade propicia. Aí florescem a vida cultural, as festas, o sonho, o imaginário, as crenças que dão sentido e direção ao viver. Na vida social e comunitária, desenvolvem-se a cooperação e o interesse comum pela convivência e pelo compartilhamento. Por isso, são indispensáveis para a comunicação, para a linguagem, para o aprendizado. Os conhecimentos, por sua vez, não existiriam, não fosse o compartilhamento. Nada mais absurdo do que uma economia baseada na propriedade intelectual privada, hoje uma grande frente de negócios. A propriedade intelectual de conhecimentos e de cultura é a privatização de uma dimensão essencial ao viver em sociedade.

Cuidar, conviver e compartilhar devem orientar a transformação da economia e do poder, do local ao mundial, para criar bases de sustentabilidade da vida e preservar a integridade da Mãe Terra. Não podemos continuar com uma produção que destrói os nossos “comuns” e, no seu rastro, deixa montanhas de lixo e mares poluídos, florestas queimadas e as entranhas da terra violadas pela mineração sem freios. Precisamos renovar e regenerar, trocar com a natureza, respeitá-la, sem ultrapassar a pegada ecológica para a sua integridade e para gerações futuras. Usar preservando é cuidar, conviver e compartir, entre nós aqui no território e com a humanidade inteira, de hoje e de amanhã. Esse é o segredo do bem viver, felicidade que não se mede pelo PIB, mas pela sustentabilidade em que assenta.

Como desmascarar as negociações oficiais se nada disso será tratado na Conferência da ONU? O desafio é grande para organizações de cidadania ativa, movimentos sociais, redes e fóruns da sociedade civil. O fato é que não podemos esperar mais. Cada um e cada uma podem fazer a sua parte. A resistência e a ofensiva cidadã sempre fazem a diferença, mesmo nas priores condições possíveis. Juntemo-nos a todos os grupos espalhados pelo mundo que ousam dizer que outro mundo é possível.

Publicado em 27 de março de 2012

Publicado em 01 de fevereiro de 2012

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