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Encontro marcado

Alexandre Amorim

Os personagens:

1) Criolo é paulista, trinta e tantos anos, de nome verdadeiro Kleber, rapper, compositor, educador, cantor. Autor de uma das músicas mais bonitas de 2011, a tocante Não existe amor em SP. Ainda como apresentação do nosso personagem, um trecho da canção:

São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP

2) Chico é carioca, chegando aos setenta, registrado Francisco, escritor, compositor e cantor de MPB. Autor de várias das melhores músicas brasileiras, como Meu guri, sobre a mãe de um pequeno assaltante:

Me trouxe uma bolsa
Já com tudo dentro
Chave, caderneta
Terço e patuá
Um lenço e uma penca
De documentos
Pra finalmente
Eu me identificar

A situação:

São dois autores com vidas bastante diferentes, de meios sociais diferentes, assim como são diferentes suas formas de compor. Chico é conhecido, entre outras coisas, por sua habilidade em se colocar no papel do outro, compondo na voz de mulheres, retratando trabalhadores braçais, classes oprimidas e desfavorecidas socialmente e até mesmo como se fosse criança. Criolo batalha para que seu mundo e a vivência que tem sejam reconhecidos – promovendo, inclusive, eventos com rappers. Chico é velho conhecido do público e da mídia; Criolo começa a ser reconhecido agora.

Mas um sabe do valor do outro.

Chico, após lançar mais de quarenta discos, escreve canções mais intimistas, menos políticas – muito embora continue mostrando sua verve de observador do outro, como mostra em seu último CD a excelente Sinhá, em parceria com João Bosco. Criolo ainda olha em volta e sente o quanto é necessário expor as mazelas dos que vivem a seu redor, das dores da pobreza e da exclusão social.

Mas ambos se respeitam e se admiram.

O cenário:

Parada de ônibus na Dutra, de madrugada. Lanchonete que passou por reforma e oferece lanches em um salão, refeições a quilo em outro e lembranças de viagem num terceiro ambiente, todos eles separados por catracas.

A cena:

Criolo bebe água mineral numa mesa com dois amigos. Os três calados, esperando que a voz metálica da caixa de som chame pelos passageiros do ônibus vindo de São Paulo com destino ao Rio. Um carro estaciona perto dos ônibus e Chico sai sozinho. Entra, compra cigarros e chocolates. Os dois cruzam olhares. Chico acena com a cabeça, Criolo responde. Chico oferece um cigarro, de longe. Criolo ri, agradecendo e negando. Mas entende que Chico quer se aproximar. Levanta-se, paga a água, sai das catracas. Os dois vão para o pátio, fora das luzes brancas e azuladas da lanchonete. As luzes, agora, são aquelas que vêm da noite na estrada: faróis, estrelas, um poste mais longe.

– Gostei da sua resposta, Chico.

O cantor entende que o rapper fala de sua resposta à versão que Criolo fez de Cálice, quando cantou trecho da versão de Criolo em seu show. Criolo mudou a letra da música que virou uma bandeira contra a opressão da ditadura militar, composta por Chico e Gilberto Gil. A música usava metaforicamente a frase de Cristo, “afasta de mim esse cálice”, num jogo de palavras em que “cálice” se confundia com o “cale-se” imposto pelos militares. Criolo transformou essa bandeira em outra. Agora, é aquele quem sofre com a opressão da ditadura social quem canta:

há preconceito com o nordestino
há preconceito com o homem negro
há preconceito com o analfabeto
mas não há preconceito se um dos três for rico, pai
a ditadura segue, meu amigo Milton
a repressão segue, meu amigo Chico

Chico ouviu, gostou e respondeu. Sentiu-se lisonjeado de ser lembrado por uma geração que já não tem a canção como valor absoluto, mas entende a música como algo que pode ser diversificado. Ele mesmo já havia feito um pastiche de rap antes e até já havia falado da “morte da canção” em uma entrevista. Talvez tenha sido uma autoironia. Fato é que Chico gostou do que Criolo fez com sua antiga canção, mesmo que Criolo tenha criticado a elite intelectual do país, da qual Chico faz parte:

os saraus tiveram que invadir os butecos
pois biblioteca não era lugar de poesia
biblioteca tinha que ter silêncio
e uma gente que se acha assim muito sabida

Ao contrário de ter se sentido atingido com a crítica, Chico agradece a Criolo, em seu show, por ter sido aceito na nova geração. “Evoé, jovem artista”, ele canta, em seu rap de resposta ao rapper.

– Também gostei muito da sua versão, Criolo. Trouxe minha música para fora do baú, renovou a mensagem.

Chico puxa uma baforada do cigarro.

– E o que você tá fazendo nestas quebradas, Chico?

– Indo visitar um irmão, em São Paulo. Resolvi vir de carro, andar na estrada sozinho. Não fazia isso há muito tempo. Ando muito a pé, mas pegar a estrada me dá preguiça.

– E você tem irmão em São Paulo?

– Tenho. Morei lá por muitos anos. No tempo em que ainda havia amor em SP...

Chico fala e ri. Criolo também. Reconhece a alusão à sua música que fez sucesso nas rádios e na MTV.

– Conhece essa minha letra?

– Claro. Ótima canção.

– Canção?

– É uma canção. Pode ter rap nela, mas tem harmonia, melodia, letra poética, versos cantados. Uma canção moderna. E muito bonita.

– No final, é tudo mensagem. A gente quer passar uma mensagem.

– No final, é arte. Seja lá o que isso for.

A voz metálica chama os passageiros do ônibus em que Criolo está viajando. Ele aperta a mão de Chico.

– Bom te conhecer.

– Muito bom. A gente vai se falando. Quem sabe você vai jogar bola comigo?

– Tá marcado.

Cada um vai para seu lado. Criolo entra no ônibus, já conversando com seus amigos sobre o inusitado encontro. Chico pisa no cigarro e se lembra de que hoje, tempos de politicamente correto, deveria jogar a guimba no lixo. Aliás, não deveria nem estar fumando. Dane-se. Não é a mudança dos tempos que vai apagar a lembrança de um encontro tão bacana. E promissor.

Publicado em 07/02/2012

Publicado em 01 de fevereiro de 2012

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