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Ensinar e aprender a conviver
Alexandre Amorim
Houve um tempo em que dar aula significava fazer o aluno engolir a matéria, não importava como. O método de passagem de informação era, basicamente, impor ao estudante que compreendesse o que o professor ensinava. A relação aluno-professor se dava apenas pelo resultado – se o aluno aprendesse ou gravasse aquela informação, o problema estava resolvido. Alguns teóricos notaram que, em uma sala de aula, o professor tinha um poder infinitamente maior do que o aluno de impor sua visão de mundo. Assim, o abuso desse poder era comum. Desde um abuso bárbaro, como o uso de instrumentos de punição física e ameaças psicológicas, até a instalação em sala de uma conduta arbitrária de decisões e interpretações. Assim, um aluno de escola pública morador de um bairro urbano de classe média do Rio de Janeiro poderia ouvir de sua professora que os Estados Unidos funcionavam bem porque lá os bairros eram divididos de acordo com a cor e a raça de seus habitantes, o que levava ao respeito mútuo.
É claro, o exemplo acima foi vivenciado por mim durante a infância, e até hoje não consegui compreender como manter pessoas em guetos poderia levar ao respeito entre os diferentes. Mas já vivi o suficiente para aprender que esse sistema não é exatamente o que acontece nos Estados Unidos, e sim o que aquela doce professorinha desejava e imaginava como sociedade perfeita, no íntimo de seu coração seminazista.
A partir da formação de teorias educacionais voltadas para a metodologia, o aluno começou a se tornar peça fundamental da educação – e não apenas como o produto final (aquele que deve sair da escola formado e detentor de um conhecimento genérico e estranho a ele mesmo), mas como agente componente da relação pedagógica. Não há como não mencionar o método desenvolvido por Paulo Freire, inspirado na filosofia marxista e, portanto, observador da relação de poder entre as partes. A partir de Freire, não há como negar a presença da personalidade cultural e política do aluno, o que causa uma nova busca de equilíbrio. Freire propõe, inclusive, uma inversão do que era o estabelecido: não mais a opressão do professor e do sistema de ensino, mas a busca pela compreensão do universo do aluno. Investigar e tematizar o que é significativo para o aluno, para que este se torne um indivíduo crítico do próprio sistema em que se acha envolvido. Fortalecer o aluno através dele próprio e dar a ele a ferramenta para que use sua nova força: saber ler, escrever e usar a crítica.
Paulo Freire apontou a necessidade de trazer a realidade do aluno para sua educação. Mas, numa sala de aula, não existe apenas o aluno. Há também o professor. E é imprescindível que se entenda o professor também como personalidade cultural, política e crítica. É de suma importância, para a metodologia da educação e para a análise das relações pedagógicas, que se entenda a impossibilidade de neutralidade de um professor. Assim como um jornalista não consegue ser neutro e acrítico, o professor também não consegue deixar fora de sala de aula suas opiniões e vivências.
Não estou aqui defendendo, muito menos incentivando, que um professor deva ser um instrumento de suas ideologias. Ao contrário, o professor é, antes de tudo, um educador da formação de ideias e crítica. Seu papel primário e principal é ensinar a aprender e a pensar. Mas seria uma ingenuidade quase cruel acreditar que esse professor não é, também, um emissor de sua própria visão do mundo.
O poeta Walt Whitman ficou conhecido por sua luta pelo igualitarismo durante a Guerra Civil norte-americana. Em sua obra, ele celebrava a camaradagem e a harmonia entre brancos, negros e índios, entre homens e mulheres, mas ia além. Whitman desejava viver o que o outro vivia. Desejava ser e sentir o outro. E essa foi a maior crítica que D. H. Lawrence, outro escritor americano, fez a ele: que o poeta tentava simular em si a dor do outro, que o poeta conclamava ter a simpatia, ter a dor com o outro, e não pelo outro. E isso, para Lawrence, é impossível: não se sofre junto com alguém se você não vive o que esse alguém vive.
Pois bem, também o professor não pode simular ser e viver o que não é e não vive. E não pode deixar fora da sala de aula sua personalidade para se tornar mero ator tomado por uma vida que não é a dele. Assim, o aluno deve aprender, também, que existe outro mundo e outra realidade além da sua própria. Aliás, isso ele aprende desde que nasce – por que não aprender também em sala de aula?
O reconhecido e reverenciado método Paulo Freire não pressupõe um anulamento da personalidade do professor, até porque o método não leva em consideração o professor como indivíduo, e sim como ferramenta. É um método voltado ao aluno. Seu mérito está em justamente tirar o aluno de seu lugar passivo e trazê-lo para a transformação social mediante sua conscientização crítica, e não há razão, nem intenção minha, de desvalorizar esse método. Ao contrário, todos ligados à educação – sejam profissionais ou alunos – devem muito a ele. Assim como a sociedade em geral também deve agradecer a Freire sua intenção e realização de uma pedagogia mais libertária.
A problematização exposta aqui é mais uma constatação: o professor não é um papel em branco e não vai buscar os significantes de seus alunos de modo neutro. Passa por seus filtros ideológicos e estéticos toda a informação do universo de seu aluno. O professor de classe média, acostumado a ouvir Chico Buarque e Lenine em seu mp3, não vai aceitar, sem nenhuma interferência, o uso do funk pancadão como instrumento de alfabetização. Claro, cabe ao professor ser tão autocrítico quanto crítico e não deixar sua personalidade (e sua posição de poder) se sobrepor à de seus alunos. Mas a submissão pura e simples à cultura de seus alunos, além de impossível, é até mesmo prejudicial à relação entre estes e o professor. Deixar o funk dos alunos tomar conta de sua aula vai acabar frustrando o professor; deixar a harmonia de Buarque ser ditadora vai fazer fugir os alunos. Mas o uso do ritmo de um e a melodia de outro ou a influência das estéticas literárias quase antagônicas vai acabar acontecendo. Mais uma vez, creio que a dialética venha para nos ajudar a conviver com o outro.
Publicado em 31 de janeiro de 2012
Publicado em 01 de fevereiro de 2012
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