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Para que servem automóveis estrangeiros e moedas europeias?

Alexandre Rodrigues Alves

Minha mãe é professora primária; por comodidade, eu e meu irmão fizemos nosso primário (atual primeiro segmento do Fundamental) na escola pública em que ela trabalhava. Ao contrário do que se podia esperar, a cobrança sobre nós era maior do que sobre os alunos que não eram filhos de professoras (éramos uns cinco filhos de professoras naquela escola). Havia,  para nós dois, a dificuldade adicional de morar longe.

Eu sempre gostei muito de álbum de figurinhas. Não daqueles de ganhar prêmio se completasse a página; meu prazer era conhecer o assunto – ainda que hoje se façam críticas a esse tipo de conhecimento – e obter todas as figurinhas (completar o álbum). Lembro-me de que fiquei muito perto do meu objetivo em um da Copa do Mundo (acho que de 1970) e em outro de História Natural, que tinha mais de quatrocentas imagens de animais e plantas de todas as partes do planeta. Esses guardo comigo, mas havia outros menos cotados, como de personagens da História do Brasil, países e cidades do mundo...

Minha verdadeira glória foi ter completado o de automóveis. Ao lado da foto do carro, havia dados técnicos como preço do carro na moeda do país de origem, potência do motor, combustível utilizado, consumo – num cálculo de litros por 100km (abrindo um parêntese: isso me ajudou muito a aprender divisão, pois eu tinha que fazer a conversão desse valor para o padrão brasileiro, de km por litro).

Numa época em que os carros no Brasil se resumiam a Volkswagen, Ford, Willys, Chevrolet, DKW e Simca (além das Mercedes Benz dos endinheirados), descobrir fabricantes como Skoda, NSU, Lancia, Peugeot, Renault, Ferrari, Rolls Royce, Lamborghini ou De Tomaso fazia a alegria de qualquer aficionado por essas máquinas.

Voltando à escola. Ainda que não levasse o álbum para lá (pois era um livro bem grande, ruim de carregar, formato horizontal, completamente diferente do resto do material), a paixão por automóveis – que se alimentava das miniaturas que eu colecionava e alimentava meu prazer de desenhar carros e ônibus e caminhões – me fazia falar deles em todo lugar e pedir sempre à minha mãe que comprasse envelopes de figurinhas no jornaleiro da esquina da Haddock Lobo, perto da escola. Embora fôssemos tratados como todos os outros alunos, sem regalias ou vantagens, era inevitável que, nos corredores ou fora da escola, uma professora amiga falasse mais carinhosamente conosco ou soubesse um pouco mais de nossa vida.

Pois bem. Um dia, estava posto em sossego em minha sala da terceira série do primário (equivalente ao 4º ano de hoje), fazendo um exercício que estava no quadro-negro, quando entrou a D. Icléa, uma grande professora (nos dois sentidos). Ela dava aula para uma 4ª série e estava ensinando câmbio. Perguntou algo baixinho à D. Gilda, que fez com a cabeça um “não sei” definitivo. Percorreu então, com o olhar, os rostos de todos os alunos. Logo que me encontrou, perguntou: “ô sabichão, você sabe qual é a moeda da Alemanha? Quero dar exemplos de moedas de outros países, já falei do dólar, da libra esterlina, do franco francês, do escudo português, da peseta da Espanha (o euro estava muito longe de nascer), do iene japonês, do peso argentino e não lembro da moeda alemã...”.

Embatuquei. Assim, à queima-roupa, não conseguia lembrar do diabo da moeda da Alemanha. Ela aproveitou pra tripudiar: “Eu tinha certeza que você não sabia!” Despediu-se rapidamente, virou as costas e voltou para seus alunos.

Hoje eu pensaria: pra que uma criança de menos de dez anos quer saber o nome da moeda de um país distante, que pouco influenciava o seu, que nada tinha a ver com a sua realidade, com sua cultura? No calor da pergunta-desafio, tentei lembrar do álbum de figurinhas, dos BMW, Mercedes, Volkswagen, Auto Union (que depois tornou-se a Audi)...

Marco! A moeda da Alemanha era o marco! Apressado, pedi licença à D. Gilda – antigamente se pedia licença à professora pra sair da sala – e fui até a sala da D. Icléa. Bati na porta, pedi licença de novo e quase gritei: “Pode ensinar aos seus alunos que é marco alemão!”. Ela olhou pra mim, riu de lado e disse: “Obrigada pela lembrança”.

Saí dali meio frustrado com a reação dela, mas com a sensação do dever cumprido. Até hoje, D. Icléa, quando encontra minha mãe, lembra essa história.

Publicado em 17/01/2012

Publicado em 17 de janeiro de 2012

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