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Entrevista a uma graduanda de Pedagogia
Há quanto tempo realiza pesquisas sobre a formação de leitores? O que a motivou a isso?
Luzia de Maria: Quando um fato qualquer chama nossa atenção e a ele dedicamos um olhar de interesse, uma sistemática observação e ele nos intriga a ponto de o mantermos presente em nossas reflexões, acho que já podemos considerar isso uma forma inicial de “pesquisa”. Nesse sentido, acho que comecei a “pesquisar” a leitura e a formação de leitores quando eu era ainda uma adolescente, por volta do antigo curso ginasial. É que sou caçula temporã numa família de oito filhos e, graças a isso, aos treze anos eu tinha sobrinhos de várias idades, entre onze anos a ainda bebês. E comecei ali a observar que aquelas crianças cujos pais eram leitores, as que tinham livros em casa, não somente eram mais educadas como tinham desempenho linguístico bem melhor, além de terem mais concentração etc. Além, é claro, de não rasgarem os meus livros quando os encontravam à mão. Também comecei a perceber que eu passava tardes inteiras lendo romances, lia a matéria da prova apenas uma ou duas vezes, e – sempre – me saía muito melhor nas avaliações do que colegas minhas que repetiam em voz alta a matéria da prova a tarde inteira. Muito cedo em minha vida descobri o poder da concentração, do foco, de manter o fluxo e de se dedicar inteiramente a uma leitura, de se entregar de forma altamente concentrada a um texto. Acabo de ler um livro, que se chama A geração superficial – o que a internet está fazendo com os nossos cérebros, de Nicholas Carr e, como ele aponta, o maior perigo da internet é justamente a sua imensa capacidade de nos fazer perder a atenção, sua insistência em nos distrair. Uma leitura na tela do computador dificilmente pode ser concentrada. Milhares de apelos nos atraem – e para a leitura isso é um enorme prejuízo. O que me motivou e despertou meu interesse pela leitura, a buscar conhecimento acerca dela? Como professora de Língua Portuguesa e Literatura, foi simples reconhecer: basta ser um bom observador e qualquer um pode confirmar que os melhores alunos – melhores em todas as disciplinas, os que sabem escrever e falar, argumentar, defender suas ideias – são inevitavelmente leitores. Porque estes são os principais efeitos da leitura frequente e sistemática: o enriquecimento linguístico é patente; a desenvoltura linguística é visível. Afinal, onde ampliar o léxico, como se assenhorear de um vocabulário rico e criar intimidade com múltiplas estruturas sintáticas, se não nas páginas de bons autores, nas páginas da melhor literatura? Para permanentemente me motivar, tenho minha própria história de vida – li entre os oito e nove anos uma coleção de 12 volumes, cada um com mais ou menos 300 páginas e pouquíssimas ilustrações, contendo todos os contos populares, algumas histórias das Mil e uma noites, um volume de teatro para crianças e outro de poesia, emprestada pela minha madrinha, dois volumes de cada vez – e ao chegar ao que hoje se chama 6º ano, já comecei a ouvir elogiosos comentários do tipo “essa menina vai ser escritora, ela tem um dom para escrever...”. Não é dom: é simplesmente o resultado daquela leitura dos 12 volumes de literatura infantil. Interessante é que, 40 anos depois – ao mencionar essa leitura em um discurso de agradecimento a uma homenagem, na cidade em que nasci –, minha madrinha, com quase 90 anos, me presenteou com a tal coleção. Pude também verificar histórias semelhantes com minhas duas filhas, sempre bem-sucedidas em seus percursos estudantis e profissionais – em nossa casa não sabemos o que é “recuperação escolar” – e acompanho agora o “poder ultrajovem” que se anuncia: venho colecionando histórias de surpreendente habilidade linguística de uma leitora de apenas quatro anos, minha neta Letícia. Leitora antes mesmo de ser alfabetizada! Em O clube do livro falo um pouco de sua educação e como penso que deve ser educada uma criança para se tornar leitora.
O que apontam suas pesquisas quando o objeto é a formação literária do professor brasileiro? Em que medida a universidade tem contribuído (positiva ou negativamente) com o desenvolvimento desse hábito?
Luzia de Maria: Em 1989, eu e seis amigas criamos um jornal-revista para falar de leitura aos professores. Chamava-se PRAvaLER e tinha como subtítulo “Educar para a leitura – travessia para a liberdade”. Lá se vão mais de vinte anos. Posso garantir que naquela época, há vinte anos, a situação da leitura e da formação de leitores no país era bem pior. Sou professora da Universidade Federal Fluminense, agora já aposentada, mas posso lhe garantir que a prática de trabalhar com cópias xerox nos cursos universitários – prática que sempre abominei e à qual jamais me rendi – foi durante muitos anos, e em muitos cursos ainda tem sido, um enorme desserviço à formação de universitários leitores. Infelizmente, muitos professores – mesmo no terceiro grau, o universitário – não são leitores. Mal leem ensaios pertinentes ao seu campo de trabalho, quanto mais leitura literária! Nos cursos de Pedagogia, são raros, isso mesmo, raros os professores que são leitores de literatura! Não têm culpa: apenas se mantiveram presos à formação geral que receberam, que não lhes ofereceu nenhuma convivência com a leitura literária. Não sabem eles o quanto suas aulas seriam mais ricas se tivessem esse convívio! Não sabem eles o quanto suas vidas seriam mais ricas! Infelizmente, mesmo nos cursos de Letras observamos que muitos alunos chegam ao final do curso sem terem se tornado leitores literários. Sei que parece um absurdo afirmar isso, mas infelizmente é o que se constata. E confessam isso com naturalidade, como se isso não fosse uma tremenda falha. No livro O clube do livro – ser leitor, que diferença faz, que conquistou o Prêmio Literário Nacional do Pen Clube Do Brasil de 2011, na categoria Ensaio, há um capítulo, que se chama “Quem forma o professor leitor?”, em que comento alguns episódios que confirmam isso que estou afirmando. Leia não somente este capítulo, mas todo o livro, e o trabalho de você poderá se fazer muito mais enriquecido.
Qual a importância e quais os benefícios do incentivo à leitura literária para a formação de um indivíduo, especialmente se for um educador?
Luzia de Maria: A literatura universal é um bem dos mais preciosos, e nós, como seres humanos, somos os beneficiários de tal herança. Passar a vida sem conhecê-la, passar a vida sem usufruir dessa maravilha que nos tem sido oferecida desde séculos é nos restringir ao pequeno, ao menor. E, nesse sentido, lembro-me aqui das palavras de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, na página 115, com as quais me avizinho: “Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou desse jeito.” Antes de mais nada, é preciso vencer a preguiça e desfrutar da beleza com que fomos agraciados: pegar a obra máxima de Guimarães Rosa, por exemplo, ou Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e explorar suas seiscentas e tantas páginas (ambos têm esse quilate), desbravar metáforas e idiossincrasias de linguagem e, só assim, compreender verdadeiramente o que disse o meu mestre João Alexandre Barbosa (da USP): “Não se é o mesmo após ler um bom livro.” Manter a leitura como compromisso diário consigo mesmo, como movimento de perseguir a beleza e buscar sabedoria (essa rara condição que só no diálogo com os grandes podemos conquistar), é um primeiro vislumbre do que se pode alcançar como vida – travessia e viagem na espiral do crescimento. E não esquecer jamais o que disse o poeta Mário Quintana: “Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”. A leitura literária é a possibilidade de diálogo para além do tempo e das distâncias geográficas, capaz de nos aproximar do outro e nos ensinar a nos pormos em lugar do outro. Só quando se é capaz de se pôr na posição do outro pode-se atingir a verdadeira compreensão humana: a literatura pode construir um espaço de encontro, para além das fronteiras sociais e políticas. Em As verdades das mentiras (páginas 380 e 381), Mário Vargas Llosa fala lindamente sobre isso: “Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, entendemo-nos e nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que criaram, aprendemos aquilo que compartilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós, sob o amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor o ser vivo contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das afirmações caipiras do sectarismo religioso ou político ou dos nacionalismos excludentes como esta comprovação incessante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial dos homens e mulheres de todas as geografias e a injustiça que é estabelecer, entre eles, formas de discriminação, sujeição ou exploração. Nada ensina melhor que a literatura a ver, nas diferenças étnicas e culturais, a riqueza do património humano e a valorizá-las como uma manifestação da sua múltipla criatividade. Ler boa literatura é se divertir, sim; porém, é também aprender dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção o que e como somos em nossa integridade humana, com nossos atos e sonhos e fantasmas, separados ou na trama de relações que nos vinculam aos outros, em nossa presença pública e no secreto de nossa consciência, essa complexíssima suma de verdades contraditórias – como as chamava Isaiah Berlin – de que está feita a condição humana. Hoje, esse conhecimento totalizador e ao vivo do ser humano somente se encontra na literatura”.
O que se espera do professor como mediador de leitura?
Luzia de Maria: Primeiro, que ele seja um bom leitor, capaz de ler um texto em voz alta, com entonação perfeita, boa dicção, envolvimento capaz de fazer da voz uma sinfonia que gere sentido e “ganhe” o ouvinte. Enfim, que seja capaz de fazer uma leitura para seus alunos com brilho nos olhos e encantamento na voz. Difícil? Não, se ele for de fato um bom leitor literário e, em minha opinião, essa deveria ser considerada a primeira capacidade a se cobrar de um professor. Não somente de um professor das séries iniciais, porque, imagine você, em que nível um professor não precisaria ser um bom leitor, capaz de uma leitura impecável de um texto, em voz alta? Este é um dado preocupante: em cursos sobre leitura e formação de leitores, vejo que muitos professores não conseguem ler fluente e corretamente um texto em voz alta. Assim, como ser um bom mediador de leitura? Segundo, que ele tenha construído uma extensa bagagem de leitura, livros e publicações adequadas ao nível escolar de seus alunos. Que ele seja capaz de apresentar títulos interessantes e – óbvio – que ele os conheça e aprecie. Como falar de um livro com paixão e encantamento sem o ter lido, sem o ter apreciado? Enfim, pelo campo semântico das palavras que me ocorrem, você já pode perceber por onde transito: falei de “encantamento” mais de uma vez, falei de “gosto pela leitura” (usando o verbo apreciar) e falei de “paixão”. A escola brasileira está carente de encantamento, de gosto pelos livros e pelo conhecimento, de paixão pela leitura. Precisamos “encantar” a escola brasileira, e isso só vai acontecer se abrirmos aos alunos as páginas dos melhores livros. Sei do que falo: livros são multiplicidade de vozes e, por isso, têm múltiplas chances de sucesso! Quem não aprecia Ruth Rocha pode ser que adore Ana Maria Machado. Ziraldo, por que não? Quem não ama Verissimo pode se apaixonar por Drummond! Quem não curte Quintana pode devorar Clarice Lispector! Quem não simpatiza com Machado de Assis pode se tornar fã de José de Alencar e de sua virgem dos lábios de mel! Com tantas e diferentes falas, é possível e simples travar diálogos promissores! Mas é preciso que bons professores – essencialmente leitores – tirem os livros das bibliotecas escolares e os levem para as salas de aula. E os apresentem da melhor maneira possível aos seus alunos.
É possível formar leitores se o próprio professor não tem o hábito de ler?
Luzia de Maria: Vocês devem julgar improvável que eu comece a responder de outra forma que não seja um sonoro não, não é mesmo? Mas a vida é de fato uma grande brincalhona: minha resposta é que pode, sim, se houver vontade. Não posso responder “não” porque fui testemunha de um trabalho assim. A professora contou sua história aos alunos, criou um clima de cumplicidade e sinceridade – eram alunos de ensino médio ou de 8ª série, hoje 9° ano, não me lembro com precisão – e reconheceu que, mesmo sendo formada em Letras por uma universidade federal, não se sentia leitora, não fora estimulada a se tornar leitora, não tinha bagagem de livros para apresentar a eles. Alguns amigos deram apoio: eu fiz uma palestra sobre leitura e sua importância, logo no início da proposta. E, juntos, eles escolheram livros, pedindo sugestões a amigos, buscando em catálogos das editoras etc. Cada aluno comprou um livro e, em clima de grande entusiasmo, todos – inclusive a professora – mergulharam naquele universo novo e voltaram à tona enriquecidos e felizes. Mas é óbvio que, por tudo que já disse antes nesta entrevista, venho dedicando minha vida inteira a tentar convencer os professores de que – se não lhes foi oferecida a possibilidade de se tornarem leitores antes, e se querem agora exercer essa profissão –, para o bem dos alunos, por uma questão de honestidade pessoal com a função, para repousar a cabeça no travesseiro com a alegria do dever bem cumprido, cumpre traçar uma nova rota de vida e caminhar. Caminhar, caminhar, ou seja, ler... ler... e ler. Não há outra via! Ter a coragem de se preparar para o sucesso! Ou, se isso não é possível, optando pela honestidade, ter a coragem de abandonar a profissão e abraçar uma outra!
Há alguma consideração final que a senhora queira fazer?
Luzia de Maria: Gostaria de encontrar a “palavra justa” de Flaubert, capaz de convencer os professores (que por ventura venham a ler este texto) de que a leitura é como uma caminhada por terrenos mágicos, capazes de proporcionar encontros e momentos de raro prazer. Ler alimenta a nossa imaginação e nos ajuda a crescer, enriquece a nossa vida, tornando-nos menos “chatos” aos olhos dos outros. Isso é bom! Podemos nos tornar velhinhos simpáticos, como a Margueritte, do filme Minhas tardes com Margueritte. Deparamo-nos com a beleza e isso nos faz melhores, mais sensíveis, certamente mais humanos! Gostaria de partilhar com os professores um pouco do meu amor aos livros e à leitura, amor que me faz apreciar divertidamente as palavras de Erasmo de Roterdã (humanista holandês, 1469-1536), que disse: “Quando eu tenho pouco dinheiro, compro livros; se sobra alguma coisa, compro roupa e comida”. Amor que me leva a concordar com Victor Hugo (escritor francês, 1802-1885): “Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como um corpo que não come”. E, por último, se até agora nenhuma das palavras aqui escolhidas surtiu efeito, quem sabe a “palavra justa” não esteja na afirmação radical e pungente do poeta russo Joseph Brodsky (1940-1996): “Há crimes piores do que queimar livros. Um deles é não lê-los”.
Depois dessa, um abraço aos leitores! E um viva à leitura!
07/08/2012
Publicado em 07 de agosto de 2012
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