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A representação da dúvida em Emma Zunz, de Jorge Luis Borges

Carolina Natale Toti

Este texto pretende desenvolver uma análise do conto Emma Zunz, publicado em O Aleph (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Luis Borges. O conto relata a trajetória da personagem Emma, uma jovem recatada que, após receber a notícia da morte de seu pai, resolve executar um plano de justiça. Com base na teoria semiótica de linha francesa, este artigo procura demonstrar o modo como se configura a representação da dúvida na narrativa.

A palavra dúvida, no dicionário Michaelis (1998), consta como “Incerteza acerca da realidade de um fato ou da verdade de uma asserção. Dificuldade para se decidir; hesitação”. Essas definições expressam incapacidade de julgar, de resolver e de agir. Exprimem um sujeito indeciso diante de duas ou mais opções, uma situação de tensão na qual estão implicados vários estados: antes de tudo, pressupõe-se a necessidade de resolver/saber frente à incapacidade ou impossibilidade de resolver/saber; a necessidade de decidir/agir frente à incapacidade ou impossibilidade de decidir/agir. Desse modo, parece que a dúvida se embasa nas modalidades de não poder fazer e não poder ser. Contrastam-se aqui: segurança/insegurança e certeza/dúvida, o que pode se traduzir como impotência e impossibilidade. Como se verá adiante, o conto está pleno desses contrastes.

A história é contada por um narrador distanciado que aparentemente pode relatar cada detalhe das ações e até das sensações de Emma. No entanto, em várias passagens ele se mostra incerto, com dúvidas a respeito dos acontecimentos. Em determinado trecho ele mesmo expõe sua incapacidade: “Relatar com alguma fidelidade os fatos daquela tarde seria difícil e talvez improcedente” (BORGES, 2008, p. 55). É possível perceber que desde o início do conto a incerteza está disseminada em diversos níveis. Por exemplo: na carta pela qual a personagem fica sabendo da morte do pai, a letra é “desconhecida”, assinada por “um tal de Fein ou Fain”. Esse desconhecido que a escreveu sequer “podia saber que se dirigia à filha do morto” (BORGES, 2008, p. 53). O leitor é informado pelo narrador de um segredo guardado por Emma: o pai havia jurado que o ladrão era Loewenthal. Isto é tudo que o leitor pode saber a respeito do fato que motiva o plano de justiça da protagonista; não há sequer como deduzir o que aconteceu e o que foi roubado. O narrador se mostra hesitante quando fala sobre o porquê de Emma guardar segredo, hesitação que é reforçada pela repetição da expressão “talvez”:

Talvez evitasse a incredulidade de terceiros; talvez acreditasse que o segredo era um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz retirava desse fato ínfimo um sentimento de poder (BORGES, 2008, p. 54).

Nessa passagem a dúvida se faz presente também na perspectiva de Loewenthal. Essa incerteza é tida pela protagonista como um fator propício para a execução de seu plano.

Ao receber a carta com a notícia do falecimento de seu pai, Emma adquiriu a vontade de se vingar, de querer fazer justiça. A partir daí ela elabora um plano tendo em vista a conjunção com seu objeto de valor, que é a própria justiça. Para levar sua intenção a cabo, a personagem liga para Loewenthal, seu atual patrão, e diz que irá ao escritório para lhe comunicar, em segredo, a greve das funcionárias. Feito isso, ela sai em busca do que seria essencial para o êxito de seu plano. A protagonista vaga por alguns bares e “opta” por um homem. A forma contraditória como a história é contada pelo narrador – que ora sabe, ora conjetura os sentimentos da personagem, ora descreve, ora supõe os passos dela – se deixa ver mais uma vez quando ele faz uma suposição sobre o pensamento dela: “terá pensado Emma Zunz uma única vez no morto que motivara aquele sacrifício? Tenho pra mim que pensou uma vez e que naquele momento seu desesperado propósito correu perigo” (BORGES, 2008, p. 56). Trata-se de uma alegação hipotética do narrador, uma conjetura sobre um possível estado de hesitação ou irresolução da protagonista.

Aqui aparecem contrastes que estão presentes em todo o conto. Em diversas passagens a determinação do narrador em relatar a história se detém diante da incapacidade de fazê-lo. Ele se limita a supor, a deduzir, a imaginar, deixando claro o aspecto incerto do relato. Da mesma forma, o desejo convicto da personagem de realizar seu plano se confronta com várias situações que a deixam em estado de vacilação. Assim, em alguns trechos o leitor se depara com uma narração insegura sobre a insegurança da personagem. Como quando o narrador imagina o estado de Emma: “Tenho pra mim que (...) seu desesperado propósito correu perigo”.

Em seguida, o narrador dá pistas ao leitor de como o plano está arquitetado, afirmando que Emma e o homem por quem ela “optou” serviram de ferramenta um ao outro: “ela serviu para o prazer e ele para a justiça”. Essa ação da protagonista fará sentido para o leitor somente no desfecho do conto. Outra indicação dada sobre a conclusão da história está no parágrafo que resume o que Emma projetou para a ocasião da vingança. É significativa a reiteração do narrador, que introduz e finaliza essa parte com a afirmação repetida de que as coisas não aconteceram como a personagem imaginou. Mais adiante se voltará a isso.

Para que a vingança e a justiça fossem feitas, Emma pretendia que Loewenthal confessasse, sob a mira do revólver, a culpa e o crime. Feito isso, ela atiraria no peito dele e a justiça seria então restabelecida. Mas, conforme o aviso do narrador, as coisas não aconteceram assim. Somente após atirar duas vezes, quando o sangue já corria abundante, Emma começou a acusá-lo. Segundo o narrador, Loewenthal morreu antes que a acusação terminasse, de modo que Emma “nunca soube se ele chegou a compreender” (BORGES, 2008, p. 59). Para a sociedade, ela acusou Loewenthal de estupro, e assim justificou tê-lo assassinado. Aqui fica claro para o leitor o porquê de a protagonista ter se relacionado com o homem desconhecido. Ele foi necessário para comprovar a acusação de estupro.

Uma vez ciente da morte de seu pai, Emma adquire a vontade de fazer justiça, as modalidades de querer fazer e dever fazer. Sendo já competente para saber fazer, resta-lhe adquirir a capacidade de poder fazer. Para conseguir seu objeto de valor e realizar sua performance – a justiça –, a personagem precisa antes se capacitar. Como seu plano implica acusar Loewenthal de estupro, Emma precisa de provas para acusá-lo, e assim se vê obrigada a manter relações sexuais com um homem qualquer. Este surge como um sujeito modalizador, capaz de atualizá-la. Pode-se dizer então que essa circunstância constitui uma situação atualizante. É a partir daí que a protagonista se torna competente, adquirindo a modalidade de poder fazer justiça. Como foi dito pelo próprio narrador, o homem serviu para ela “como instrumento de justiça.”.

Até aqui é possível visualizar quase todas as etapas do programa narrativo. Primeiro, no início do conto, a passagem em que Emma recebe a carta pode ser entendida como a fase da manipulação, uma vez que é nessa circunstância que a personagem persuade a si mesma do que deve fazer. É nessa ocasião que ela assume o compromisso consigo mesma de que a vingança e a justiça devem ser feitas. Depois, a parte em que ela mantém relações sexuais com o homem desconhecido pode ser vista como a fase de competência, já que a partir daí ela se torna um sujeito atualizado. Em seguida, a realização da performance se dá com a execução do plano de justiça, isto é, com o assassinato de Loewenthal.

No caso deste conto, a fase da sanção deve ser avaliada levando em conta não somente que Emma observa o resultado de sua ação, mas também o narrador. É ele quem encerra a história com um parágrafo conclusivo.

Logo após repetir que o plano não se deu como o previsto, o narrador inicia o parágrafo seguinte salientando outro desvio no propósito da personagem: “Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje por ela sofrido” (BORGES, 2008, p. 58). Segue-se a cena do projeto aparentemente frustrado: Loewenthal parece morrer antes que Emma termine a acusação. O parágrafo se encerra com o narrador afirmando a incerteza da protagonista sobre o êxito do plano: “Nunca soube se ele [Loewenthal] chegou a compreender”. Como o leitor foi avisado, as coisas não ocorreram como o previsto. O narrador cerca o relato do assassinato com afirmações do estado de hesitação e dúvida – que por fim se faz permanente – da personagem. Desse modo, parece que, para Emma, o seu objeto de valor, o reestabelecimento da justiça, o êxito de seu plano não chega a ser conquistado, ou melhor, ela não sabe se foi conquistado. O que prevalece é a dúvida.

É possível observar que certas oposições perpassam todo o conto: a necessidade de julgar frente à incapacidade de fazê-lo; a necessidade de saber frente à impossibilidade de saber; o desejo em confronto com a realidade que o impede; a aparente convicção das intenções da personagem em executar seu projeto frente a várias demonstrações de hesitação; a aparente capacidade do narrador de revelar até mesmo os sentimentos da protagonista, em contraste com a recorrente impossibilidade de relatar o percurso dela; e a certeza de ter levado o plano a termo ante a dúvida sobre o alcance do objetivo.

Por fim, Emma conclui sua tarefa: forja a cena do crime, acusa Loewenthal de estupro e assim justifica o assassinato. A despeito de todas as indeterminações, esse desfecho acaba produzindo um efeito de trabalho realizado, de modo que até aqui a sanção parece ser positiva.

Esta é a conclusão do narrador:

Com efeito, a história era incrível, mas se impôs a todos, porque substancialmente era verdade. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios (BORGES, 2008, p. 59).

Este final traz à tona a oposição entre substância e aparência, entre ser e parecer. Agora fica claro que esse contraste se faz presente em toda a narrativa. Desde o início do conto as coisas não são o que parecem ser. Por exemplo: Emma parece ser uma menina pacífica. Quando dos boatos de greve, ela “como sempre, declarou-se contra toda violência” (BORGES, 2008, p. 54). No entanto, ela havia passado a noite anterior planejando o assassinato de Loewenthal e afinal foi capaz de realizá-lo. O narrador também é contraditório. Ele parece ser onisciente e, de fato, em várias passagens o é, mas em outras ele sequer é capaz de descrever as ações da personagem.

O quadro semiótico que opõe o ser e o parecer é esclarecedor, na medida em que levanta outras oposições também presentes no conto, como a verdade, a mentira, o secreto e o falso. Por exemplo, Emma guarda o segredo revelado por seu pai. Ela não o revela “nem à melhor amiga”. Quando Emma liga para Loewenthal, ela mente dizendo que iria até o escritório para comunicar, em segredo, “sem que as outras soubessem”, algo sobre a greve. Loewenthal parece, à vista dos outros, um homem sério, mas, “para uns poucos íntimos, um avarento”. É avarento, mas muito religioso. Ele acreditava ter com Deus um “pacto secreto que o eximia de agir bem”. Emma parece firme em seu propósito de justiçar a morte do pai, mas muitas vezes hesita. Embora leve a termo seu plano, “Nunca soube” se a vingança foi feita. Ela mente dizendo que Loewenthal a estuprou, guardando a verdade em segredo, segredo que o narrador revela para o leitor.

O parágrafo conclusivo do narrador parece querer convencer o leitor de que a protagonista não mentiu de fato. A oposição feita entre substância e aparência, associadas respectivamente ao verdadeiro e ao falso, faz recordar a forte influência de Schopenhauer sobre Borges. O essencial (o tom, o pudor, o ódio) é considerado verdadeiro. O aparente (as circunstâncias, a hora, um ou dois nomes próprios) é falso e julgado como algo sem importância, irrelevante, efêmero. Dessa forma, além de parecer querer persuadir o leitor de que Emma foi verdadeira – note-se que as expressões verdade/verdadeira são repetidas quatro vezes nesse parágrafo –, o narrador parece também convidar o leitor para partilhar certa cumplicidade com a personagem, parece tratar o leitor como um cúmplice do segredo.

Afinal, ao leitor resta a insuperável ambiguidade do texto. A voz paradoxal do narrador não pode oferecer certezas. Ele não parece saber a verdade do que aconteceu, uma vez que não diz se Loewenthal chegou a compreender a acusação de Emma. Não é possível saber se a vingança se consumou de fato. Para isso era preciso pelo menos que o acusado tomasse consciência do motivo pelo qual seria assassinado. Emma queria, além disso, que Loewenthal confessasse “a culpa e o crime”, o que obviamente não aconteceu. O narrador pode afirmar somente a dúvida quando diz que Emma “nunca soube” se conseguiu atingir o objetivo do plano. De qualquer forma, o que se pode ver é que não há como descobrir a realidade. Há apenas a impotência e a impossibilidade de saber. Não há como afirmar se Emma chegou a restituir a honra, a reestabelecer a justiça, a entrar em conjunção com seu objeto de valor. A conclusão do narrador reúne e reforça as oposições, intensifica a ambiguidade de todo o conto e acaba por evidenciar a impossibilidade de avaliar, tanto por parte do narrador quanto da personagem, se a sanção afinal é positiva ou negativa.

Referências

BORGES, Jorge Luis. Emma Zunz. In: O Aleph. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

GREIMAS, A. J. De la colère: étude de sémantique lexicale. In: Du sens II. Paris, Seuil, 1983.

NITRIHUAL VALDEBENITO, Luis Alejandro. Aproximaciones al estudio de la pasión en la obra de Jorge Luis Borges. Duda y desesperanza en El Muerto. Folios [online]. nº 33, 2011. Disponível em: http://www.pedagogica.edu.co/revistas/ojs/index.php/RF/article/view/737.

WEISZFLOG, Walter. Michaelis Português: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

Publicado em 14/08/2012

Publicado em 14 de agosto de 2012

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