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A massa crítica e sua atuação na internet

Juliana Maria Carvalho

Desde a metade do século XX, conhecemos nossa sociedade como “sociedade de consumo”. Há mais ou menos duas décadas, porém, ela ganhou outro apelido: “sociedade da informação”. Esse desenvolvimento econômico e tecnológico do mundo em que vivemos tem gerado consequências que afetam a todos nós principalmente nos aspectos ambiental, social e cultural. Na tentativa de evitar que essas consequências sejam desastrosas para as próximas gerações e visando criar nos jovens o hábito de consumir de forma responsável e crítica é que foi criada a educação para o consumo consciente.

O consumo faz parte da vida do homem desde o início, quando era obrigado a buscar alimentos, água e a se abrigar. Esses elementos eram retirados da natureza e, com o passar dos tempos, foram sendo utilizadas técnicas que os transformassem em bens consumíveis. Atualmente, embora a rapidez com que se desenvolve a tecnologia permita que se criem técnicas cada vez mais sofisticadas, o ser humano ainda precisa retirar da natureza todos os recursos de que necessita para produzir bens. A extração e o descarte desses recursos são os principais problemas gerados por esse modelo de sociedade, mas, além dos problemas ambientais, existem outros que devem ser discutidos para a formação de um consumidor crítico. O consumidor crítico e cidadão exerce o seu papel mobilizando-se, juntamente com outros indivíduos, para priorizar a compra de produtos cujas empresas atendam normas de consumo consciente e cobrar políticas públicas que contribuam para viabilizar o exercício do consumo consciente. Atualmente, a internet permite que pessoas com interesses comuns se agrupem e criem grupos que agem de forma crítica, podendo conseguir coisas muito difíceis para uma pessoa sozinha. Isso ocorre com grupos de consumidores e com criadores que desejam lançar produtos ou serviços novos no mercado. Esses grupos têm sido chamados de massa crítica.

Origem da massa crítica

Se nos voltarmos ao conceito físico de massa crítica, veremos que se trata da quantidade mínima de um material fissionável para que tenha lugar um processo de reação em cadeia.

Existe um fenômeno na China que ilustra perfeitamente no mundo real a revolução social que estamos vivendo no mundo virtual: os ciclistas chineses não podem atravessar os cruzamentos devido ao trânsito de automóveis e à existência de semáforos. Aos poucos, mais e mais ciclistas se amontoam esperando para atravessar a rua, e quando já existe um número suficiente – uma massa crítica – todos se movem juntos com a força de seu número para parar o trânsito enquanto atravessam a rua.

O nome “massa crítica” é citado em um documento de Ted White sobre o ciclismo, Return of the Scorcher no qual se fala sobre esse fenômeno que acontece na China. Ou seja, as bicicletas na China são conduzidas por ciclistas que têm consciência de seu poder como massa. Essa massa crítica é gerada espontaneamente. O fenômeno não fica só aí, mas se estende a outros lugares do mundo. Em setembro de 1992, na cidade de São Francisco, ocorreu um evento que se espalhou rapidamente para muitas outras cidades do mundo. A ideia era bastante simples. Um dia, um grupo de ciclistas se reuniu na cidade para protestar por melhores condições do trânsito, causando vários de problemas ao bom andamento do mesmo. As pessoas gostaram da experiência e decidiram que se converteria em um costume. Assim, desde então, uma vez por mês, elas se reúnem no mesmo lugar e na mesma hora. A iniciativa se estendeu a muitas outras cidades. Trata-se de um passeio coletivo de bicicleta que se celebra em diferentes cidades uma vez ao mês, geralmente na última sexta-feira. Os principais objetivos são aumentar o uso da bicicleta como meio de transporte, criar condições favoráveis para seu uso e tornar mais ecológicos e sustentáveis os sistemas de transporte de pessoas, principalmente no meio urbano. Esse movimento também é conhecido hoje como “massa crítica”. Na atualidade, na maior parte das cidades do mundo há encontros de massa crítica nos quais os ciclistas se juntam e exercem o poder de massa do qual tomaram consciência.

Os ciclistas na internet

Esse é o centro da ideia. Suponha que os ciclistas sejam internautas que se agrupam em um lado da rua. Em determinado momento, eles são suficientes para chegar ao seu objetivo, que pode ser atravessar a rua ou qualquer outro a que se proponham. E quando digo que eles podem conseguir qualquer, quero dizer que talvez a única coisa necessária seja mais ciclistas, ou seja, mais internautas. Alguém pode alegar que os ciclistas são somente isso, ciclistas (ou internautas), e que somente sabem andar de bicicleta (ou navegar na internet). Assim, se o objetivo for construir uma enciclopédia melhor que a Enciclopédia Britânica, poderiam fazê-lo mesmo sem saber como. A diferença entre os ciclistas e os internautas é que os internautas têm a internet, e ela reúne em um só lugar todo o conhecimento disponível. Assim, os internautas dispõem de ferramentas de gestão, edição, comunicação, coordenação, tradução e todo o conhecimento e informação de que necessitam para abordar seu objetivo, de graça e a um clique de distância, em uma era em que dizem que a informação vale mais do que o capital. A Wikipédia é o paradigma de que isso é possível.

Digamos que um ciclista pare em um lado da calçada para atravessar a rua. Ou que um internauta entre na internet para comprar um carro. Quando há muitos ciclistas, eles atravessam a rua. Quando o internauta decide que modelo quer, e se juntam 10 que querem o mesmo modelo, vão à concessionária e compram 10 carros de uma tacada só, com grande desconto para cada um. Além do desconto, compram o modelo que melhor se adapta a suas necessidades, o que menos apresenta defeitos a longo prazo, aquele de que mais gostam – e sabem disso porque a internet lhes informou ou porque há uma massa crítica de usuários desse modelo em determinado site que fez uma avaliação favorável sobre ele. Na internet surgem, a cada dia, redes sociais que funcionam como massa crítica para muitas coisas.

Oferta concentrada, demanda fragmentada: a massa crítica em ação

As novas tecnologias oferecem aos consumidores a oportunidade de se unir e conseguir chegar ao equilíbrio de forças entre oferta e demanda. Uma forma de revolução pacífica para conseguir melhores preços que tornem mais fácil chegar com dinheiro ao final do mês. Essa ideia pode ser ainda mais ambiciosa. Não somente podem conseguir melhores preços como também dizer às empresas o que querem, que produtos devem lançar e com que propriedades, comparar com a concorrência, ver o que outros usuários também estão falando.

As novas tecnologias oferecem às pessoas a oportunidade de se unir e conseguir qualquer coisa. Uma tendência clara dos mercados hoje é a concentração da oferta e a fragmentação da demanda. Cada vez existem mais, por exemplo, grandes fábricas nas quais as quantidades de arroz preparado para micro-ondas são fabricadas cada vez para menos pessoas. Em cada setor, um grupo de empresas concentra toda a oferta, perfeitamente estruturada para ser consumida em doses únicas, de um em um, consumidor a consumidor. Geralmente informam que a oferta e a demanda estão equilibradas para que o preço seja fixado de uma maneira livremente justa. Porém, na verdade, o consumidor normalmente fica muito alheio a isso. Não sabe do produto mais do que o fabricante lhe diz em sua publicidade e não conhece a opinião de outros consumidores. A demanda se configura a partir de unidades de consumo independentes, isto é, lares individuais que não se conectam.

A internet muda esse cenário ao permitir que os usuários conheçam as verdades sobre o que compram e o que opinam outros consumidores com maior ou menor autoridade, além de poderem se reunir para fazer compras em massa, pedir ao fabricante novas funcionalidades aos produtos… Na China, existem clubes de compras, chamados tuangous. Suponha que um consumidor tenha a intenção de comprar uma lavadora-secadora que custa R$ 1.000,00. Pela internet, ele pode se comunicar com várias pessoas de sua localidade que estejam interessadas em comprar o mesmo modelo e marca de lavadora-secadora em um estabelecimento. É necessário dizer ao fabricante que ele tem a intenção de comprar, nesse mesmo instante, 50 lavadoras-secadoras e discutir o preço. Além disso, os chineses fazem o tuangou também em serviços como autoescolas e academias, entre outros. Recente no Brasil, a febre de sites de compras coletivas exemplifica um pouco o tuangou. A diferença é que seus criadores não o fazem com o ponto de vista de integrantes de comunidades, mas têm visão de empresário.

Se atravessarmos a rua em lugar de pensar no que pode fazer uma massa crítica de consumidores graças à internet e no que pode fazer uma massa crítica de empresários, teremos também gratas surpresas. Graças à internet, hoje há cada vez mais projetos nos quais um grupo de voluntários pode se juntar e levá-los adiante. Projetos que antes somente estavam ao alcance das grandes multinacionais.

Cada vez vemos mais exemplos nos quais pessoas aficionadas passam suas horas livres criando projetos simples e adaptados ao que os consumidores querem, e os resultados são muito melhores do que conseguem as grandes empresas com seus projetos de profissionais anônimos trancados em escritórios e sem contato com o público real de seus produtos.

Um grupo de amigos interessados em bricolagem pode se juntar e em suas horas livres construir um porta-aviões, um submarino nuclear ou um foguete espacial? Evidentemente não, isso só está ao alcance dos governos e grandes corporações, sobretudo porque existe uma grande restrição física. No mundo virtual, porém, isto pode ocorrer: o desenvolvimento de um sistema operacional, um servidor web, uma base de dados, um protocolo IP, um navegador, uma enciclopédia, é fácil para os aficionados, que os copiam e melhoram. O feito por internautas em suas horas livres às vezes é muito melhor do que o feito por profissionais. Na realidade, o consumidor se passa para o outro lado: se não gosta do navegador do Windows, ele faz um a seu gosto e com praticidade. O produzido por ele é gratuito e está disponível e os modelos de negócio atuais têm que aprender a conviver com isso. Cada vez vai ser mais difícil proteger a criação com patentes e royalties, pois os modelos de negócio estarão apenas disponíveis na consultoria e em projetos de implantação. Ao final, os custos podem ser parecidos, porém a solução não será um modelo duro, fixo, e, além disso, a empresa terá uma parte do código revisado por milhões de olhos; revisado por várias pessoas que vão modificá-lo na medida em que aparecerem problemas.

Portanto, vemos que, atualmente, a inovação chega das mãos de fóruns e de redes sociais. De uma comunidade criada ao redor de um produto. Profissionais e voluntários fazendo apontamentos muito importantes em suas horas de ócio.

Ainda há muitas perguntas sem resposta. Como é possível que esses supostos aficionados, apaixonados sustentem um sistema operacional como o Linux, que é objetivamente melhor que o Windows Vista desenvolvido pela maior empresa de software do mundo, com investimento de milhões de dólares? Como conciliar o trabalho remunerado com a inovação? Em um mundo com as necessidades básicas cobertas, o salário já não motiva tanto como a paixão por inovar em um âmbito com trabalho voluntário e livre.

Estão as empresas demasiadamente rígidas e alheias ao que os usuários realmente querem? Quando os desenvolvedores são também usuários finais, desenvolvem finalmente o que querem, ainda que seja com trabalho voluntário de aficionados, melhor que os profissionais, que desenvolvem o que dizem os estudos de mercado dos analistas, consultores, os estudos de mercado ou os obscuros interesses da empresa para aumentar os ingressos por cliente?

E o ponto de vista das grandes empresas?

Faz parte da cultura do nosso tempo e da nossa sociedade considerar as empresas multinacionais todo-poderosas. Não sei se você está de acordo, porém creio que hoje em dia isso é parcialmente certo. Os todo-poderosos são outros. O corpo executivo vê o que se passa com base em sua própria visão e, em todo caso, se eles se preocupam realmente com algo é com o acionista; ou melhor, com as ações, para que não percam seu valor, mas se valorizem. Nenhum personagem atuante de uma multinacional tem pleno conhecimento do gosto do cliente. Este é quase um mal necessário. Somente em grandes empresas em que o presidente é o fundador, que veio desde baixo e conhece bem os clientes, isto é diferente.

Normalmente o corpo executivo está composto por economistas e advogados que não conhecem seu próprio produto. O fundador da Ikea, Ingvar Kamprad, começou distribuindo no domicílio de seus vizinhos pequenos objetos de uso cotidiano como canetas e relógios. A empresa aérea Gol, aqui no Brasil, deu às classes C e D o que necessitavam: voar barato e com pagamento em várias prestações, não importa que a alimentação disponível no voo seja de barrinhas de cereal ou que as aeromoças não estejam tão bem vestidas e maquiadas. Ross Perot, quando dirigiu a General Motors, discutia com seu corpo executivo por que eles não queriam ir às concessionárias nos fins de semana se passando por clientes. Ele sempre fazia isso. Hoje em dia, vários empresários mantêm blogs ou um canal nas redes sociais em que constantemente possam ouvir a opinião de seus consumidores e muitos inclusive a tornam públicas.

Ser líder de uma multinacional supõe equilíbrio entre fazê-la cada vez mais rentável e dar aos clientes o que querem. Creio que cada vez mais as empresas se esquecem deste último e oferecem aos clientes o que é melhor (mais vantajoso) para elas. Na realidade, essas coisas que eles imaginam serem mais vantajosas para a empresa são uma péssima estratégia. Apenas rendem “pão para hoje e fome para amanhã”.

Um exemplo claro disso é a indústria da música. Tentam revalorizar as ações consolidando um negócio que não tem mais futuro (a venda de CDs e DVDs com alto preço) em lugar de modificá-lo dando aos clientes o que eles realmente querem: músicas para baixar na internet com preços acessíveis, cifras, material interativo... Ainda que a ação pudesse não render tanto no princípio, seria uma estratégia que teria projeção no futuro.

As empresas terão que aprender a viver com este cenário: criar comunidades ao redor dos seus produtos fazendo marketing bidirecional, pois a voz dos clientes tem muito poder. Elas precisam ter cuidado e não desdenhar uma massa crítica de clientes, porque eles podem se juntar e acabar com a empresa. Ao contrário: ela deve escutá-los, buscar a bidirecionalidade, porque eles já têm voz – e é muito alta.

Em todo caso, não esqueça: ao comprar um produto ou uma ideia, invista em criar uma comunidade, uma massa crítica ao redor do que pretende comprar. Faça blogs, fóruns, wikis, dialogue diretamente com outros interessados. Coisas incríveis podem ocorrer, como uma inovação que acontece de graça e leva o produto a ter funcionalidades que atendem precisamente ao que os clientes querem, com preço justo e sem desperdício.

Publicado em 21 de agosto de 2012

Publicado em 21 de agosto de 2012

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