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O mito decisivo

Alexandre Amorim

A persistência do homem perante o absurdo da vida, proposta pelo filósofo francês Albert Camus, se origina do desconforto de uma resposta não dada: “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo” (1989, p. 46), i.e. , nasce da sensação do homem de que seus questionamentos perante a vida não serão respondidos. Esse sentimento do absurdo nasce da relação do homem com o mundo, do confronto entre o querer do homem e o que o mundo lhe oferece. Segundo Camus, no entanto, o homem deve persistir, porque está vivo e deve ter coragem e consciência para desfrutar desse fato – coragem para viver sem apelações e consciência para saber os seus limites. A resposta do questionamento sobre o que foi apresentado não é satisfatória, porque o homem não consegue medi-la, mas esse homem vai continuar procurando satisfazer-se através da admiração pelo mundo e por sua própria coragem.

Descobrir-se na situação do absurdo analisada por Camus é compreender que não há mais respostas além da própria vida a ser vivida e sua multiplicidade. A condição do homem que se descobriu livre das amarras dogmáticas da metafísica e desprovido das respostas que poderiam ser encontradas no futuro ou em outra possível dimensão da vida trouxe-lhe a responsabilidade sobre seu próprio destino. Se não existe o dogma, já que as respostas exatas oferecidas pela religião e pela ciência já sucumbiram aos seus próprios reexames, ainda existe a transcendência dos sentimentos humanos e, ao mesmo tempo, não há mais regras que aquietem esse homem em relação a eles. Se não existe um sentido unificado para a vida, nem mesmo um sentido eterno para cada homem que se pergunta a seu respeito, o confronto com o destino é constante. A liberdade do homem em determinar que nenhuma pergunta foi respondida é a mesma que “faz do destino um assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens” (1989, p. 144). Está em nossas mãos o papel de vivermos nossas vidas, conscientes de seus irrefutáveis dilemas e lúcidos de nosso caminhar. Somos como o mítico Sísifo, que, após desobedecer aos deuses, é condenado a enfrentar cotidianamente sua rotina de rolar o rochedo até o cume de uma montanha, de onde irá rolar até o sopé e deverá novamente ser levado ao alto por ele. Para Camus, Sísifo é o herói absurdo,

tanto por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível, em que todo ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo (1989, p. 142).

Mito que torna infinita sua vida demarcada pela falta de um sentido e torna múltipla sua rotina. A cada chegada e cada partida, esse protagonista faz face ao seu destino e o enfrenta sozinho. Não renuncia à vida – antes, luta por ela, mesmo que seja fugindo de alguma ameaça. Nas suas estâncias, o personagem convive com as suas paixões e pode vislumbrar sua relação com o mundo. O rochedo que se solta das mãos de Sísifo é seu próprio significado; seu destino é verificá-lo e perdê-lo para que possa reinterpretá-lo.

Sua relação com o mundo torna-se um eterno descobrir e seus questionamentos terão novas respostas. Não existe mais a explicação, mas a descrição da experiência. “Para o homem absurdo, já não se trata de explicar e resolver, mas de experimentar e descrever. Tudo começa pela indiferença lúcida” (1989, p. 116). Essa indiferença lúcida é a força motriz, desprendida de qualquer moral que ate a uma situação, mas consciente de seu lugar nela, mesmo que o “seu lugar” seja um ponto indefinido entre o lugar devido e o lugar desejado.

“Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário é que é propriamente o sentimento da absurdidade” (1989, p. 26), não importa buscar a solução para o confronto, mas saber que ele existe e provar desse confronto. Vislumbrar as relações com o mundo e descobrir suas paixões, mesmo que passageiras. No sentimento do absurdo, há lugar para a indiferença, porque nosso destino está marcado com o signo do irresoluto. Mas há também espaço para as paixões, porque a lucidez do homem absurdo o faz ver que, a partir de sua liberdade, é ele, e somente ele, quem vai experimentar as suas escolhas:

esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz (1989, p. 145).

Seu caminhar é a descrição de sua condição, sua condição é o estar a caminho dos seus significados. Seu universo está livre de regras impostas a partir de modelos, porque ele mesmo livrou-se de seu modelo. E, se não há mais a que se referir, sua própria busca torna-se sua referência. Enquanto o personagem verifica constantemente seu destino e observa os sentidos múltiplos de sua vida, ele se torna solitário em sua busca, mas ao mesmo tempo vaga consciente de seu mundo. Encontramos o perambular desse personagem examinado e reexaminado pelos seus leitores e estudiosos: a empatia causada no leitor mostra que Sísifo tornou-se sedutor o suficiente para que seja interpretado.

Bibliografia

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobe o absurdo. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

Publicado em 28 de agosto de 2012

Publicado em 28 de agosto de 2012

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