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O ensino primário obrigatório em terras mineiras: os debates educacionais no século XIX

Cíntia Borges de Almeida

Mestre em Educação (UERJ), membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação

O presente trabalho visa compreender melhor os debates em torno da obrigatoriedade do ensino primário em Minas Gerais, buscando analisar os discursos dos presidentes da Província a partir dos relatórios dirigidos à Assembleia Legislativa. Este estudo foi publicado nos Anais da 34ª Reunião Anual da ANPEd, em 2011.

Os argumentos dos políticos e/ou intelectuais que defendiam a obrigatoriedade do ensino primário estavam apoiados na ideia da instrução como instrumento para a formação de “cidadãos ordeiros e civilizados”. Tal perspectiva pode estar relacionada a um projeto de sociedade para o qual era imprescindível formar, desde a infância, um povo disciplinado, um povo governado.

O objetivo deste estudo é analisar o tema da obrigatoriedade a partir do conceito de governamentalidade apresentado por Michel Foucault em seu curso no Collège de France (1978). Problematizando a ideia de que universalizar o acesso à “educação” representa apenas uma “iniciativa emancipatória”, nos termos iluministas, a hipótese que defendemos é que tornar o ensino obrigatório como ideal é uma estratégia de governo dos outros. Nessa perspectiva, nós entendemos a utilização da instrução primária como uma ferramenta. Logo, tornava necessário disciplinar, ordenar, moralizar a conduta e a vida. A população seria moldada dentro dos preceitos esperados pelo Estado, e a obrigatoriedade do ensino seria o dispositivo de segurança adotado pelo governo para garantir o cumprimento dos desígnios do projeto de nação. Foucault (2008) aponta que os dispositivos visam ao controle dos riscos e à promoção da vida, pela gestão dos processos biológicos (nascimento, mortalidade, saúde, duração da vida etc.).

Partindo desses pressupostos, deparamo-nos com a Lei Mineira nº 13 e o seu Regulamento nº 3 do ano de 1835, que instituíram e regularam a política de instrução primária na Província. Essa lei determinava que todas as crianças “livres” em idade escolar (de 8 a 14 anos) em condições de saúde “aptas” eram obrigadas a frequentar as escolas primárias. Nesses documentos, a criação e a habilitação de um “corpo fiscal” e de professores eram vistas como propiciadoras de garantia da frequência e da matrícula de todos os sujeitos em idade escolar, dentro das determinações impostas pela lei. Os professores eram responsáveis por fiscalizar a matrícula e a frequência, doutrinar a mocidade, convocar os pais e conscientizá-los da importância da instrução, além de terem o dever de servir como “modelo” de virtude, moralidade e distinção aos seus alunos. Já os delegados literários, os inspetores municipais, párocos e juízes de paz, ainda que tivessem funções específicas, deviam zelar e vigiar o cumprimento da obrigatoriedade. No entanto, segundo os relatórios, não foi o que sucedeu. Não somente a população infringiu a lei, como também os próprios agentes responsáveis pela instrução a transgrediram.

No relatório de 1840 (do presidente Bernardo Jacintho da Veiga) foi sugerido o método simultâneo: a passagem das atribuições dos delegados para as Câmaras e para o Conselho Local, a criação de uma inspetoria da instrução pública e, por último, que os artigos da Lei nº 13 relativos às multas que os pais sofreriam por não darem instrução primária aos filhos se tornassem exequíveis e reais (1840, p. XLIV-XLV). Pelo que lemos no relatório, é possível pensar a obrigatoriedade como estratégia de controle da população. Primeiramente, o presidente Bernardo J. Veiga falou da necessidade do método simultâneo. No entanto, em sua descrição, ficou mais evidente o seu interesse no regime disciplinar proporcionado pelo método do que propriamente na possibilidade do método de ampliar o número de alunos em uma só sala. Em segundo lugar, ele pensou numa organização de inspetoria, de modo que, ao atribuir funções de inspeção à municipalidade e a um Conselho Local formado por homens da localidade, a fiscalização seria mais intensa. Por último, o presidente exigiu o cumprimento das multas, evidenciando sua intenção de ver progredir a instrução entre a população.

Dando continuidade à análise, em 1844 o presidente José S. d’Andrea criticou o procedimento da obrigatoriedade e denunciou a prática dos professores de burlar os mapas de matrícula e frequência.

Como pelas leis mineiras devem ser abolidas as escolas que não tiverem ao menos 24 discípulos, são obrigados os chefes de família a mandarem seus filhos ás escollas, e tem os mestres gratificações além dos ordenados, segundo o numero dos discípulos que as frequentão: tudo se arranja muito bem. Os pais matriculão os filhos e não os mandão á escola; e os mestres enchem as suas relações de nomes de indivíduos que existem, sim, mas que nunca lhes entrão em casa, e põem-lhes os dias de frequência que bem lhes parece (1844).

Tendo passado dez anos da denúncia acerca da “dita” irregularidade dos professores, vemos nos documentos a preocupação em acirrar a fiscalização do ensino, o que nos leva a pensar em medidas de controle e prevenção. O regulamento nº 28, de 10 de janeiro de 1854, além de aumentar a vigilância nas escolas sobre os mapas de frequência, sobre os livros de matrícula e utensílios utilizados nas aulas, o adiantamento dos alunos, sobre a capacidade das aulas e dos professores e a presença de inspetores no interior da escola, expressou preocupação com a habilitação dos professores e sua idoneidade, podendo-se pensar na existência de um crivo na permissão para lecionar.

Atentos às considerações de alguns autores (CHARTIER, 1990; LE GOFF, 1996; FOUCAULT, 1996) quanto ao cuidado que precisamos ter na análise e nas interpretações dos documentos, nos seus significados, nos recursos linguísticos aplicados neles, compreendemos que os discursos não são neutros; é preciso buscar suas intencionalidades. Acontece a mesma coisa com as leis que, muitas vezes, apresentam dissincronia com a realidade ou sequer chegam a ser praticadas.

O discurso do presidente P. Vasconcellos, assim como outros analisados, incitou a vigilância do ensino. No entanto, não podemos afirmar se os estímulos partiram dos motivos anunciados, limitando-nos a apresentar os discursos:

A fiscalização do ensino passou por consideráveis melhoramentos; da inércia escandalosa que jazia com detrimento da vigilância para a actividade animada [...] se na pratica falharem disposições tão prudentemente calculadas para que a vigilância do ensino seja conscienciosa, confessarei então, que o mal que á muito sentimos, e deploramos, é sem remédio (1854, p. S4-3).

Os relatórios descreveram a década de 1860 como uma vivência de buliçosos debates em defesa da obrigatoriedade da instrução elementar e de reviravoltas na legislação, ora aumentando a fiscalização e adotando medidas conscienciosas à necessidade do controle do Estado, ora afrouxando essa vigilância, como foi o caso das exigências na formação do professor. A Lei nº 1.064, de 4 de abril de 1860, foi a alavanca de novas discussões observáveis nos relatórios posteriores.

Um dado interessante divulgado nos textos oficiais trata da redução da frequência e matrícula nas escolas. Se nos concentrarmos na ênfase dada pelos presidentes e nas possíveis relações apresentadas entre estatística escolar e deficiência do ensino, podemos conjeturar que a intenção dos relatórios era fazer com que fossem relacionados os dados à diminuição da fiscalização, assim como reflexo da Lei nº 1.064, que atenuou as exigências impostas para o cargo de professor. A fala do terceiro vice-presidente Joaquim Camillo T. Motta permite-nos pensar numa insatisfação com a lei que foi ‘condizente’ com a má formação dos professores e, consequentemente, com a má ‘qualidade’ da instrução primária.

Há muito se diz – e nós temos experimentado – a escola é o mestre: n’aquella se reverberão todos os vícios e defeitos [...] e é incontestavelmente uma das mais profundas raízes do mal entre nós: o pessoal encarregado do magistério, especialmente na instrução primaria, é em geral ignorante e mal educado [...] muitos remédios já tem sido applicados, e quase nenhum tem approveitado completamente (1862, p. 18-19).

O relatório de 1868 (do presidente José da Costa Machado de Souza atribuiu o “naufrágio” da frequência à deficiente fiscalização do ensino, impulsionada pelo Regulamento nº 56, de 10 de maio de 1867, que revogou as funções dos delegados dos círculos literários.

Passaram-se os anos e o problema se repetia. Em 1875, o presidente Pedro V. de Azevedo defendeu a obrigatoriedade, a competência do Estado e sua “luta” em defesa da instrução, além de criticar a falta de comprometimento dos professores na missão de civilizar.

Não são escolas que nos faltão, mas professores [...]. Antes poucas escolas e bem providas, do que muitas com professores que não são dignos da missão que lhes está confiada. Os vícios que a criança adquire na escola, provenientes de sua má direcção, tarde ou nunca se consegue corrigir (1875, p. 20).

Em 1878, uma nova lei foi sancionada para organizar o ramo de serviço do ensino. O corpo do texto da Lei nº 2.476, de 9 de novembro, preocupou-se em adaptar o ensino às necessidades surgidas pelo aumento da população e pela disseminação das ideias modernas postas em prática nos países mais adiantados. O principal a ser feito era tornar praticável e efetiva a obrigatoriedade do ensino. O relatório de 1879 (do presidente José Gomes Rebello Horta, 1879) estava atento para o mais grave dos males que urgia ser remediado: a falta de frequência. “Esse resultado constristador não devi ser atribuído ao regimento, ao magistério, a defeitos orgânicos da instituição; a causa esta na inexecução do ensino obrigatório” (1879, p. 29-30).

O fim do Império se aproximava, mas a preocupação sobre o projeto civilizatório permanecia. Não era possível permitir que a população “contaminasse” a sociedade com sua ignorância. Assim, o relatório de 1883 do presidente Antônio G. Chaves denunciou a decadência da instrução popular, enfatizando o “remédio” para esse “mal”:

Nenhuma reforma porém, entre nós, será profícua sem que se attenda, principalmente, a constituição do magistério e ao alargamento do ensino obrigatório. De que servem brilhantes programmas [...] quando a idoneidade do mestre não se eleva e a obrigatoriedade do ensino é letra vã em nossos regulamentos? [...]. Por outro lado, um sistema efficaz de inspecção é indispensável para manter o nível do magistério, a pureza e regularidade do ensino (1883, p. 11).

Nossa compreensão a partir da análise dos discursos é de que eles parecem ‘escamotear’ ações e intenções, as quais podem ser identificadas como a atualização de práticas divisórias, pois se há sujeitos ordeiros e civilizados, há o seu inverso; estratégias de distribuição dos sujeitos nos espaços, a fim de controlar suas atividades e regular sua eficácia. Enquanto a obrigatoriedade do ensino funcionaria como mecanismo de segurança, uma técnica de governo da população, o seu efeito representaria, então, a atuação de um tipo de poder que disciplina, que atua por meio da regulação dos comportamentos, da identificação das subjetividades, estimulando e refreando, prescrevendo e proscrevendo condutas, bem como estabelecendo um campo de saberes tidos como indispensáveis, com vistas ao governo dos indivíduos.

Referências bibliográficas:

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população: curso no Collège de France (1977-1978); Tradução. São Paulo: Martins Fontes: 2008.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996.

Fontes eletrônicas:

University of Chicago – Center for Research Libraries – Brazilian Government Document Digitization Project. Ministerial Reports - Império, 1832-1888. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/predpub.html. Acesso em dezembro de 2010.

Publicado em 11 de setembro de 2012

Publicado em 11 de setembro de 2012

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