Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Da fiscalização à crítica da lei: análise dos papéis exercidos pelos inspetores escolares a partir de seus relatórios (1894-1901)

Marcelo Gomes da Silva

Mestre em Educação (UERJ)

Neste trabalho faço algumas reflexões a partir das análises dos relatórios de inspetores estaduais, geralmente entendidos como componentes de uma maquinaria disciplinar, que descrevem e dão visibilidade a um conjunto de determinadas informações referentes ao corpo docente e às suas práticas, colocando-as em um campo de vigilância (BORGES, 2007). Os inspetores podem ser compreendidos tanto como agentes do governo, aqueles que fiscalizam, ordenam e atuam no cumprimento da lei, quanto ocupantes de outro lugar de atuação, o crítico, o endossante do coro das reclamações dos professores e, em certa medida, denunciantes das precariedades nas condições de trabalho dos professores em Minas Gerais.

As fontes utilizadas para este trabalho encontram-se sob a guarda do Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, localizadas no Fundo Secretaria do Interior, Série Instrução Pública, contendo os relatórios dos inspetores estaduais Manuel de Paula Lima (1894), Theodoro Caetano da Silva Coelho (1896) e Estevam de Oliveira (1900 e 1901), referentes à cidade de Juiz de Fora.

Os inspetores escolares como agentes fiscalizadores

Pode-se perceber nos relatórios a constante preocupação em regulamentar a instrução e a consciência daqueles que escreveram acerca da contribuição de seus cargos, propondo muitas vezes ao governo medidas para sanar os problemas recorrentes encontrados nas inspeções. Como exemplo, destaca-se a conclusão do relatório do inspetor Manuel de Paula Lima (1894):

ao confeccionar o presente relatório, só tive em vista chamar a atenção do Governo para algumas irregularidades que tenha notado nesta circunscrição, e tratando em particular de algumas escolas que já visitei, só tive em mente propor medidas que se afiguram indispensáveis para regular o andamento das mesmas.

Regulamentar a instrução era uma preocupação constante do governo do estado, refletida nas falas dos inspetores, levando-os a delatar a intensa precariedade das escolas e também a indicar possíveis avanços ou sinais de regularidades ao destacar que, na maioria das escolas visitadas, as matérias seguiam o regimento imposto pela secretaria por “consulta[rem] as exigências da pedagogia moderna” e os “compêndios [...] aprovados pelo Conselho Superior”, como está no relatório do inspetor Theodoro Coelho (1896).

Nota-se, portanto, que a fala dos inspetores era pautada na lei, afirmando sua posição de agente fiscalizador, responsável por garantir o bom funcionamento das escolas, exercendo uma posição de superioridade aos professores, inclusive explicando em alguns momentos como eles deveriam agir.

A lisura do cargo exigia uma postura que garantisse a imagem do inspetor como uma pessoa justa e imparcial nas decisões concernentes à sua função, ou seja, na fiscalização e constatação de irregularidades frente ao estabelecido pelo regimento em vigor.

Estudando a frequência legal e a escrituração do arquivo, deparou-se-me desde logo a falta gravíssima de estar conservado em branco o ponto diário, de janeiro até agora, não só por decisão do professor, mas ainda por intenção de dolo, porquanto, interpelando-o eu a cerca ou tão grave falta, respondeu-me cínico e com revoltante desembaraço que, por acordo com o inspetor municipal, havia deliberado deixar em branco aquele livro, visto como não tendo frequência à escola, fácil e seria depois encher os boletins trimestrais e mapas do semestre [...]. Perguntei mais ao Sr. inspetor escolar (note-se que estes dois funcionários pertencem ao partido a que estou ligado). Faço esta declaração a fim de patentear minha imparcialidade, como, estando ele investido de um cargo de confiança do governo, havia lançado o seu visto no último boletim de 31/03, inquestionavelmente falso. [...] A vista disto e não me parecendo aplicável ao professor a penalidade do art. 129 do reg., por não lhe haver sido aplicada a dos art. antecedentes, proponho a suspensão dessa escola, por incidir na disposição do art. 48 § 1º (Theodoro Coelho, 1896).

O reconhecimento da importância do seu cargo é latente nessa fala, pois, ao afirmar sua imparcialidade, o inspetor “ajuíza do que vê, ancorado em sua experiência e nos projetos em que acredita” (SCHUELER; GONDRA, 2010, p. 91). Outra questão recorrente e que pode ser percebida no trecho citado é a aplicação da lei pelo ato de descumprimento de uma função; no caso acima, foi sugerido o fechamento das escolas, mas não a punição dos agentes. Há de se pensar: se apenas o professor tivesse transgredido o regulamento, ainda assim, o ele ficaria livre da punição?

A suposta imparcialidade dos inspetores, no seu papel de julgar as penalidades, estava inserida em um discurso moralista que submetia os professores(as) a um determinado padrão de comportamento. As observações feitas nos relatórios sobre as professoras são indícios desse discurso moral, apresentando-as como “solteira, honesta, inteligente, dedicada ao ensino e geralmente considerada” (Manoel de Paula Lima, 1894).

Nesse quesito, a fiscalização era exercida por toda a comunidade, que denunciava os possíveis desvios de conduta. No trecho a seguir, o inspetor Estevam de Oliveira (1901) relatou em “nota reservada” uma descrição recebida por ele sobre o suposto comportamento de uma professora no distrito de Sarandy, município de Juiz de Fora:

a respeito do procedimento moral dessa professora tive más informações, que me foram ministradas verbalmente por um cavalheiro seu conterrâneo, casado com uma sua parenta. [...] Disse-me o cavaleiro [...] que esta parenta de sua mulher, hoje professora do Sarandy [...] e que em casa de seu próprio pai, depois de desvirginada, por um médico viveu em estado de quase mancebia como amante [...]. Que depois disto amasiou-se com outro padre. [...] Que a professora acompanhou o padre a Ouro Preto, a pretexto de estudar na Escola Normal daquela cidade, e que dele teve ali um filho. Que ainda acusado por ele informante, retirou-se o padre com a sua amasia de Ouro Preto para Barbacena, e desta cidade para São João Del-Rei, onde ela fez exames e se habilitou pra o exercício do magistério. Que em todas essas localidades o padre ou fazia passar, ora por este, ora por aquele próximo parentesco, e assim justificou a proteção e o interesse dispensado à professora. [...] E efetivamente esta moça foi nomeada professora por intermédio do integro senador Dr. Agostinho Cortes, em cujo município o padre mora, perante quem, como também no Sarandy, se faz passar por irmão natural dela. [...] Forneço estas notas à secretaria e ela ordenará o que devo fazer.

Um possível outro lugar exercido pelos inspetores

É predominante, nos relatórios analisados, a posição dos inspetores no sentido do que denominamos agente fiscalizador, porém percebem-se, em outros momentos, esses sujeitos ocupando outro lugar, no qual apresentam uma fala crítica acerca de diferentes pontos, ainda que esses pontos emergissem do universo legal. No trecho citado a seguir, o inspetor Manoel de Paula Lima (1894) faz uma consideração sobre um artigo da Lei nº 41de 1892, reconhecendo os impedimentos de sua aplicação e as dificuldades enfrentadas pelos professores:

Em primeiro lugar, porém, seja-me permitido tratar da impraticabilidade de algumas disposições da Lei 41, de 3 de agosto de 1892 [...]. Dispõe o art. 88, letra C: “o ensino primário nas escolas urbanas, compreende-se [...]”. Junte-se a isto o trabalho que tem um professor com o ensino das primeiras letras e o tempo que inevitavelmente há de gastar para corrigir escritas [...], o duplo do tempo de que dispõe ser-lhe-ía insuficiente ainda para o desempenho de sua tarefa. Deixe agora de parte estas considerações e pergunto aos que sistematicamente defenderam o art. que sou forçado a condenar: o homem que julgar-se nos casos de lecionar todas as disciplinas de que trata este art. aceitará uma nomeação para professor de Instrução Primária? [...] É forçoso então chegarmos a esta conclusão lógica e inevitável: a autoridade vê que o regulamento não é respeitado e não pode reagir, vê que a lei não é cumprida e cala-se!

Os inspetores, portanto, também podem ser entendidos desempenhando um duplo papel, o que lhes foi designado, de fazer cumprir o regimento, e, esboçando críticas ao próprio, ancorados na crença da necessidade de mudanças no ensino, sendo pouco complacentes com as mazelas da instrução, o que consideravam atraso e incompetência (VELOSO, 2009). Para fazer cumprir a lei era preciso haver condições para exercê-la; portanto, Manuel de Paula Lima, apesar de esboçar críticas à lei de 1892, ele a faz no cumprimento de sua função. Apesar disso, suas considerações soam como denúncias de uma deficiência e precariedade conhecidas por eles. Talvez por esse fato, eles insistiam em explicitar falhas nos setores reguladores, como a existência de discrepância entre os poderes municipais e estaduais, que, “como [era] sabido, poucas [eram] as autoridades locais que se interessa[vam] pelo regular andamento das escolas públicas, muitas das quais passa[vam] dois, três e mais anos sem uma única visita destas autoridades”.

Esse descaso das autoridades era refletido nas condições de trabalho dos professores, como observado na descrição das escolas nos relatórios, nas quais majoritariamente os prédios eram de propriedade dos professores. As mobílias eram imprestáveis, insuficientes, obtidas por subscrição popular e muitas delas com bancos toscos; por sua vez, os livros didáticos eram fornecidos por particulares ou pais de alunos, quando não faltavam.

Conclusão

Tendo em vista que os relatórios são produzidos pelos inspetores e que reclamações de professores também emergem deles, pode-se entender tais recorrências como uma causa do professorado endossada pelos inspetores, pois no ato da inspeção além de agente fiscalizador, eles também eram os mediadores entre os professores e o governo, e de certa forma era por eles que as reivindicações se encaminhavam:

Há em relação aos professores primários uma reclamação que me parece de toda justiça ser atendida: é a consignação no orçamento de uma quota, destinada ao auxílio de aluguel da casa. Essa despesa é atualmente feita pelos professores, e em certas zonas, sobretudo nesta, observa-lhes grande parte dos vencimentos (Relatório do inspetor Theodoro Coelho, 1896).

Com base nas falas de alguns inspetores, observadas em seus relatórios, destacando a importância deste suporte documental como fonte para a história da educação, devido à sua riqueza de detalhes, é perceptível a relevância dos papéis dos inspetores. É possível considerá-los, além de agentes fiscalizadores, também no papel de críticos e de denunciantes das precárias condições de trabalho dos professores em Minas Gerais.

Referências bibliográficas

BORGES, Angélica. Ordem no ensino: a organização da inspeção de professores na Corte (1854-1865). Reunião Anual da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 30, 2007, Caxambu.

SCHUELER, Alessandra F. Martinez de; GONDRA, José Gonçalves. Olhar o outro, ver a si: um professor primário brasileiro no “Velho Mundo” (1890-1892).Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, nº 22, p. 87-112, 2010.

VELOSO, Geisa Magela. Inspeção escolar e as estratégias de demarcação de espaço de poder e autonomia profissional (1912-1914). Congresso de Pesquisa e Ensino de História da Educação em Minas Gerais, 5; Montes Claros: Unimontes, 2009.

Publicado em 18 de setembro de 2012

Publicado em 18 de setembro de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.