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Interpretação de texto – qual é o limite?

Alexandre Amorim

O termo hermenêutica tem por etimologia a palavra grega hermeneutike, com o significado de “a arte de interpretar”. No uso diário, passou a ter seu sentido ligado à interpretação de textos. A composição do termo está ligada ao deus Hermes, da mitologia grega. Protetor dos rebanhos em sua função primordial, Hermes também é considerado emissário dos deuses e condutor das almas. É notável que estas duas últimas funções estejam ligadas ao mesmo deus: se Hermes é considerado um intérprete dos desejos olímpicos, e serve, assim, como intermediário entre deuses e mortais, ele também é um condutor das almas humanas para o Hades ou para o Olimpo – ou seja, cabe ao deus conduzir o homem em sua moral e em seu destino, mesmo que ainda caiba a esse homem o arbítrio de seus atos.

Como se vê, desde o berço da civilização ocidental é necessária a presença de um intermediário para que houvesse a compreensão e a interpretação da vontade dos deuses. Isto é, para que haja interpretação do divino é suposto que haja uma vontade expressa dos deuses, um intermediário dessa vontade e um receptor da vontade intermediada. Com a conquista do Ocidente pela ideologia cristã, passou-se a tomar essa vontade expressa como verdade absoluta, como a “palavra de Deus”. O termo hermenêutica é, inclusive, largamente utilizado como interpretação de textos religiosos e, por extensão, de textos jurídicos – textos elaborados para servirem como lei (o que também pode ser considerado uma expressão da verdade). Pode-se afirmar que a hermenêutica passou a ser o meio pelo qual se chega à verdade dos textos.

No entanto, é preciso que a interpretação deixe de ser uma ferramenta de busca e realização de uma verdade absoluta para ser um ato de convivência com o que foi expresso. A “vontade expressa” dos deuses se torna mensagem a ser compreendida e interpretada pelo homem em seu mundo e em seu tempo. A arte de interpretar, agora, também faz parte do arbítrio: a escolha moral – e, portanto, a interpretação do seu destino – está nas mãos do homem. A hermenêutica, como aqui se propõe, deixa de ser um manual e passa a ser uma ferramenta crítica.

Em termos literários, a vontade expressa é traduzida como o texto em si, e o intermediário é composto pelo que podemos chamar de “entorno” do texto: uma complexa trama que envolve desde o próprio objeto contentor do texto – o livro – até a cristalização de uma interpretação daquele texto – o cânone, passando pela didática e pelo senso comum, que carregam em si uma opinião formada, não se sabe muito bem como e por quem.

Note-se que o próprio livro é formado por elementos desse entorno: as abas do livro trazem teorias e resumos da obra, e comumente encontra-se um prólogo explicativo do texto a ser lido. Como se não bastasse toda essa “preparação” para o texto, em sala de aula ainda existe o professor, que muitas vezes atua como decifrador do código do texto, ao invés de ser um desenvolvedor da função crítica do aluno. Se o texto é a expressão de algo a ser interpretado, dificilmente essa expressão chegará ao leitor sem uma intermediação, e por isso – para que o leitor possa empregar suas funções perceptiva, crítica e criadora – é necessário que o leitor se resguarde de qualquer obediência cega ao mensageiro.

O leitor de ficção desenvolve com a palavra uma relação de eterno movimento. Ao ser recebida, através do texto, é a palavra que vai causar no leitor a necessidade de deslocamento. O homem-leitor envereda por uma construção fictícia – e convive com ela, desconstruindo sua própria estrutura pelo prazer de descobrir novas relações de ser com o mundo. A palavra conduz o homem à hermenêutica para que ele se abra mais uma vez para o estar, considerando o estado de estar como o momento de convivência com o outro.

Avaliar o texto é submetê-lo a seus valores, é medir o enunciado com ferramentas próprias e dar-lhe o valor arbitrário de seu julgamento. Não haverá conjugação de valores que transforme uma crítica em universal. A conjugação, aqui, é entre o subjetivo de quem lê e o objetivo do texto. A simbiose entre a subjetividade e toda a gama de informação sobre aquele texto acaba por se tornar também subjetividade, uma vez que o indivíduo filtra também a dita informação. Saber, por exemplo, que Guimarães Rosa se aventurou realmente em um aboio no sertão mineiro, fez anotações e adquiriu ali conhecimento para escrever Grande Sertão: Veredas pode levar o leitor a considerar o sertão, pode fazer com que procure realçar a visão do cidadão do mundo que observa aquele sertão e pode também fazer o leitor conjugar essas ideias. A legislação está em suas mãos, mesmo que confrontada mais à frente por novas interpretações.

Para que realize uma interpretação à altura da obra, ou seja, para que a ficção encontre em seu receptor também a ficção, o leitor se dedica à criatividade. A hermenêutica, no campo da ficção, não pode se resumir a perceber e criticar, porque essas duas funções não respondem completamente à necessidade do leitor de experimentar a obra. A angústia do leitor somente é curada pela sua comunicação com a obra no mesmo nível – o nível ficcional. A realidade para onde o leitor trouxe a obra é insuficiente para se experimentar essa obra. Receber o texto de ficção significa também ter que se mover em espaços por onde esse texto vai levá-lo. A criação durante o ato hermenêutico é o sinal de aceitação do texto, no sentido de que ele merece ser lido, e aceitar o texto é gesto fundamental para que se realize a interpretação.

Percepção, crítica e criação, vistos como elementos da hermenêutica, se apresentam em momentos distintos durante a leitura de um texto, mas se revezam e se complementam na busca de um conforto do leitor – um conforto proveniente da satisfação intelectual e sensível desse leitor, ou, como resumiu Hans Robert Jauss, um “prazer estético”. Parte dessa satisfação ocorre quando a crítica provoca o leitor a examinar o que foi percebido, mas para que esse exame se realize o ato criador do leitor faz-se necessário, pois o texto de ficção não sobrevive a uma mera verificação. A capacidade de criação do leitor por meio da percepção, compreensão e interpretação de uma obra é um modo de dar a esse leitor uma visão mais nobre da vida. Sua vivência é reanimada pela arte, pela sua crítica e sua criação. A hermenêutica faz do leitor um ser atento e forte.

As diferentes interpretações passeiam pelo texto. Têm a mesma vontade, mas não os mesmos objetivos. As forças se multiplicam, os quereres proliferam: não há sinal de síntese e, no entanto, o mundo se move, continua. Os intérpretes falam e ouvem antes, durante e após sua própria leitura de um determinado texto. A alteridade está presente durante todo o tempo, e não é por isso que a leitura vai se tornar menos prazerosa ou menos necessária. Ter sua própria leitura é o primeiro passo para ser aceito no mundo literário, que continua sedutor. Ter a própria leitura é aceitar a sedução do livro.

Mas é preciso saber que, antes dessa sedução, haverá outras. Haverá conversas e sugestões sobre aquele livro, haverá resumos feitos por terceiros, haverá debates e haverá professores sugerindo interpretações. Haverá seduções que não chegam aos pés da maior sedução, que é ler a primeira frase de um texto de ficção.

O leitor, já inserido no texto, encontra vários obstáculos à sua avaliação, mas seu ato de interpretar não cessa. A complexidade de perspectivas presentes no mundo em relação a uma obra de arte não faz sucumbir a nossa própria vontade de traduzi-la em nossos termos. Uma babel de interpretações renova o ânimo de quem se sente enobrecido com a tarefa de novamente tentar legislar e criar sua perspectiva. Fazer-se ouvir em meio a tantos e mostrar sua nova obra de arte: sua própria interpretação.

Publicado em 18 de setembro de 2012

Publicado em 18 de setembro de 2012

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