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O jogo Vida versus Morte no texto narrativo de Lya Luft
Patrícia Sotello Soares
Antonio Abellán, autor da ilustração "La partida de ajedrez", nasceu em Cartagena (Espanha) em 1964. Já participou de exposições individuais e coletivas em várias cidades espanholas, alemãs, suíças e belgas.
Tendo em vista que a literatura feminina não apenas traz à tona, mas questiona de maneira incisiva o chamado “destino de mulher”, busca-se compreender a evolução da obra romanesca de Lya Luft – composta de duas fases: a primeira, que corresponde à década de 1980, e a segunda, que se inicia na década de 1990 – no que concerne à sua importância em termos de conflitos pertencentes ao universo feminino.
Nos anos 1990, Lya Luft afirmou que sua obra estava passando por uma virada: suas personagens estariam mais responsáveis por seu destino, recriando o mundo que irrompe de sua palavra (Luft, 1999). Foi esse enunciado da escritora, acrescido à observação de seu peculiar discurso denunciatório, que suscitou a incursão no “jogo” – suas personagens surgem inseridas em um jogo Vida versus Morte em que a moral patriarcal é quem dita as regras – constante em sua obra. Uma hipótese a ser comprovada é a de que as personagens femininas, ora uma “legião de perdedoras”, não só começariam a encontrar as respostas para suas indagações como iniciariam uma libertação das sufocantes relações de gênero, instaurando, assim, um desequilíbrio do patriarcado e, consequentemente, seu declínio.
A importância deste estudo reside no esclarecimento do papel da voz de Lya Luft como representante da chamada “literatura do outro”, pois atualmente sua obra funciona como um ponto de referência nos estudos da literatura de autoria feminina justamente pelo questionamento elaborado acerca da condição da mulher – ainda à margem e submissa – na sociedade patriarcal, apesar de sua conscientização e busca por uma identidade própria.
Seguindo as pegadas deixadas por Clarice Lispector, Lya Luft elabora sua proposta desconstrutora do patriarcado representando a família como forte obstáculo à emancipação e, mesmo, à felicidade – é ela, a família, e as relações deterioradas advindas desse espaço, a origem de todos os recalques.
Década de 1980: As parceiras – a não transcendência feminina
Ao longo dos anos 1980, Lya Luft produziu cinco romances: As parceiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), O quarto fechado (1984) e Exílio (1987). Esses textos expressam o questionamento da autora no que diz respeito às relações de gênero, em que não é possível encontrarem-se soluções para as dificuldades geradas pela consciência feminina face ao domínio masculino. Suas protagonistas, mulheres em sua totalidade, vivenciam a não transcendência, pois são abatidas dentro do espaço familiar moralista e falido, usado como simbologia para a sociedade repressora.
A obra luftiana da década de 1980 é marcada, ainda, pela presença da circularidade e pela recorrência de temas. As protagonistas-narradoras vivem um caos interior e tentam recuperar o elo perdido entre o eu e o mundo por meio do encontro com o passado, na tentativa de entender o presente, ao qual sempre retornam. Esse resgate do passado se dá pela culpa sentida por sua incapacidade de reter o tempo feliz perdido, quando existiu. São inaptas, ainda, no lidar com a morte e, mesmo, com o amor: “– Você quer ser a minha amada, Anelise? – acho que não teria forças nem para isso. Cinzas, camadas e mais camadas sobre as coisas boas” (Luft, 2003, p. 47). É o resultado da posição feminina à esquerda da sociedade, como “o outro”.
Para ilustrar essa primeira fase da escritura de Lya Luft, foi escolhido para ser incursionado o romance As parceiras (1980), uma vez que o pretendido é salientar a evolução do texto da autora, e o romance em questão é apenas o primeiro de uma série de cinco que apresentam mulheres vitimadas pelo jogo social patriarcal, mesmo quando já estão emancipadas devido às mudanças instauradas na sociedade pelas conquistas femininas, não diferindo dos demais em sua análise – trabalho já elaborado por Maria Osana de Medeiros Costa – no tocante a denúncias e questionamentos.
Sua tessitura é um jogo que se abre em duas dimensões: social e artística. As inúmeras e complexas imagens lúdicas aludem tanto às jogadas sociais, em que a mulher, vítima da cultura, faz parte do tenso jogo de máscaras social quanto ao jogo artístico da linguagem, ou seja, a busca da própria identidade. De outro lado, as imagens grotescas também possuem dupla função: satírica, pois o discurso denunciatório e de ridicularização das instituições sociais surge por meio da deformação; e de contraste, na composição de um universo bizarro por intermédio do corpo feminino, da vida social e do ato da criação.
Assim, o leitor se vê diante de um romance que mostra o jogo em que Vida e Morte são cúmplices na autoria das perdas femininas: conclusão concebida a partir do próprio título: As parceiras. A narrativa luftiana é elaborada à imagem de um jogo de azar: a representação das relações sociais em que a mulher é obrigada a desempenhar os papéis impostos pela sociedade patriarcal, cumprindo assim seu “destino de mulher”, em que é a personagem-peça que será lograda pelas jogadoras sempre incógnitas: “É como se a vida fosse um jogo em que as peças mudam, mas as jogadoras são as mesmas. Incógnitas” (p. 15). E ainda: “E eu nunca me aproximara muito de Deus: medo de descobrir que em lugar dele nada havia senão duas velhas caspentas jogando no tabuleiro em que as sombras feito uns bonequinhos corriam, saltavam, devoravam-se” (p. 57).
As parceiras apresenta uma protagonista-narradora, Anelise, que inicia sua “tessitura” retomando o passado em busca do nó deixado por sua avó Catarina, a peça principal do jogo: “Para mim, a peça mais importante sempre fora minha avó” (p. 42). O objetivo de Anelise é encontrar o próprio fio, ou seja, sua identidade: “Mas eu tenho muito que fazer: descobrir como tudo começou, como acabou. [...] Se dou com a ponta errada do fio, se descubro o lance perverso da jogada, a peça de azar, quem sabe consigo sobreviver” (p. 16).
O casamento configura-se como o espaço da perda feminina, “o beco sem saída” (p. 41), em que a mulher é a grande vítima: “Não tem volta, não se pode fingir que não houve casamento [...]. Não tem volta, a gente vira bicho acuado, tantas vezes me senti assim: um bicho encurralado num canto” (p. 85).
Anelise, em sua busca, constata que jogaram com a avó um “jogo sujo” (p. 11). Ela fora vítima de uma “jogada” de sua mãe ao transformá-la em objeto, dando-a em casamento a um homem mais velho que a violentava. Há aqui uma denúncia aos valores culturais e à moral patriarcal que fazem da mulher um ser secundário. Por isso, Catarina sentia “um fundo terror do sexo e da vida” (p. 13), que a fez refugiar-se no sótão, transformado no lugar da fantasia, onde sublima o desejo de retornar à infância precocemente roubada: “Ali ela construiu uma dimensão em que só cabiam os seus interlocutores invisíveis” (p. 14). Com isso, revela a falência da instituição casamento, cujas relações estão deterioradas. Para ela não houve “nenhuma salvação” (p. 46), apesar de, no sótão, ter descoberto a escrita feminina, a do olhar enviesado: “pouco antes de morrer começara com uma nova mania: escrever. [...] num talhe apressado, [...] como se um vento forte soprasse da esquerda” (p. 44). Tentou ainda uma saída pela homossexualidade, que também lhe fora negada: “Catarina [...] foi encontrada na cama em atitudes suspeitas com a enfermeira mocinha [...]; Ninguém soube detalhes, a Fräulein não os daria. Expulsara a enfermeira” (p. 45), restando-lhe apenas o suicídio. É a primeira personagem-peça a sair do jogo, porém permanece ao longo de toda a narrativa estabelecendo um jogo de caráter lúdico com Anelise: enquanto a neta passa o “filme” da vida da avó, esta se manifesta na imagem de uma veranista de quem Anelise deseja descobrir a identidade. No final, o reconhecimento acontece simbolizado no gesto de dar as mãos.
Catarina é a matriz de “uma família de perdedoras” (p. 78), composta por “um bando de mulheres malsinadas” (p. 30), que começam, uma a uma, a entrar no jogo: “As três filhas de Catarina casariam cedo. Beatriz, por três semanas apenas. Tia Dora, mais de uma vez. Minha mãe, com um homem que a protegeria da fragilidade numa existência quase tão irreal quanto aquela do sótão” (p. 18). Agora, o casamento é apresentado como a “carta alta” em que todas apostam, apostando, assim, na vida.
Assim como o casamento, a concepção também é uma aposta na vida. Por isso, nenhuma das mulheres da família é bem-sucedida nesse quesito. Catarina concebe as quatro filhas por causa da violação de seu corpo. Beatriz, a Tia Beata, sequer consegue perder a virgindade, sublimando seu desejo por meio da religião e da criação da irmã caçula, Sibila, retardada e anã, “a concepção grotesca da vida social” (Costa, 1996, p. 38). Dora, apesar dos vários casamentos, não dá à luz um filho seu, adotando Otávio. Norma, mãe de Vânia e Anelise, vive alheia à maternidade, uma mulher frágil que precisa de cuidados. Vânia não concebe por impedimento do marido, que não quer arriscar ter como descendente alguém que herde a loucura de Catarina ou o retardamento de Sibila. Anelise vê suas tentativas de engravidar resultarem em abortos, metáforas para suas perdas, até o nascimento do filho Lalo, “um vegetal” (p. 103), que morre aos dois anos de idade.
Década de 1990: A sentinela e O ponto cego – o apoderamento de si mesma
Ao longo da década de 1990, Lya Luft produziu apenas dois romances: A sentinela (1994) e O ponto cego (1999). Contudo, esses textos são bastante representativos, pois, além de continuarem expressando o questionamento da autora no tocante às relações de gênero como origem dos conflitos, agora já se verifica uma mudança significativa quanto à solução narrativa das tensões dramáticas. Esses dois romances oferecem desfechos diferentes dos apresentados nos cinco romances da década de 1980, sugerindo inclusive novas construções identitárias fundamentadas na compreensão da condição feminina por parte das próprias personagens, resultando em relações familiares mais verdadeiras: “A sensibilidade [...] aliada ao amor [...] permeia as relações de parentesco, eliminando-lhes o ranço patriarcal” (Xavier, 1998, p. 120).
A tessitura do texto luftiano da década de 1990 continua sendo o jogo Vida versus Morte, cujas jogadas, entretanto, se modificaram. As personagens já começam a se desvencilhar das imposições familiares e das regras do jogo social, não mais cedendo a condicionamentos. É o início de sua transcendência, fato atestado pelas palavras da própria autora:
O que posso dizer é que, mais uma vez, tento mergulhar na chamada alma humana [...]. O amor é fruto de êxtases e tormentos, e, mais do que em meus outros livros, os personagens são também senhores de suas opções. Talvez esta seja uma virada em minha obra: personagens não mais exclusivamente tangidos por fatalidades, mas responsáveis. [...] alguém nasce em si e de si mesmo e [...] lança-se na vida e recria o mundo. O seu mundo, que miticamente irrompe de sua voz. De sua palavra (Luft, 1999).
Semelhantes em sua construção narrativa, A sentinela e O ponto cego, entretanto, diferem em relação a seus protagonistas e à forma como as personagens se posicionam no “tabuleiro”.
A sentinela (1994) apresenta uma protagonista-narradora, Nora, vítima do desamor materno e de desencontros amorosos, que se emaranha nos fios da memória, porém consegue desfazer os nós e encontrar os rumos por meio do jogo artístico: inaugura uma tecelagem, que funciona como símbolo para a construção da narrativa enunciada no presente, já que, agora, a autoconfiança permite o enfrentamento do “destino de mulher”: “Estou bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem espanto os trechos a percorrer” (p. 30).
“A arte, tecendo palavras, fios, sons, é a única capaz de enfrentar a vigilância mortal da ‘sentinela’” (Xavier, 1999). O fazer artístico se abre como a possibilidade da troca das relações de gênero pelas relações afetivas baseadas na afinidade, deixando a personagem livre para viver o desconhecido, visualizando, assim, uma vida rica e plena: “Distendo braços e pernas, deitada de costas respiro como quem emerge de um mergulho. Amanhece pela janela aberta; gosto de dormir assim, exposta ao céu” (p. 12).
O ponto cego (1999) inova quando surge com um protagonista-narrador: Menino, que se recusa a crescer para não fazer parte do desagradável mundo dos adultos, após o também inovador desfecho do drama com a partida da Mãe: “eu decidi parar de crescer. Foi quando minha Mãe não procurou logo por mim naquele nosso jogo. Dessa vez ela não entrou na brincadeira: não se interessava mais” (p. 15), antes submissa ao poder do Pai: “Acho que na sua cabeça minha Mãe voltaria, em breve ou algum dia, pois ele não podia imaginar que, tão submissa sempre, tivesse rompido o cabresto e disparado pela vida num caminho só dela” (p. 136).
O jogo a que Menino se refere é o jogo Vida versus Morte, o jogo das imposições sociais em que o “destino de mulher” é ser uma “boa mãe”, além de esposa dedicada e competente dona de casa: “o que resta a uma Mãe senão cuidar do seu Menino?” (p. 15).
Menino está em busca de uma identidade existencial não estereotipada pela sociedade patriarcal; por isso, também ele, à guisa das protagonistas-narradoras luftianas, “tece e trama” com os fios da memória, refazendo sua trajetória, descobrindo que “tudo isso é um jogo. Um jogo muito perigoso” (p. 31). Sempre pequeno, o estranho Menino, “alguém fora do padrão, alguém especial” (p. 17), tem uma visão privilegiada, a do “olhar enviesado”: “sendo adulto eu perderia a minha perspectiva” (p. 15-16), a do ponto cego, “um fenômeno da visão humana segundo o qual, conforme convergência e refração, pode-se ver o que habitualmente permanece oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na miragem” (p. 63). Habita um “lugar em que não se vê o trivial nem o concreto, mas o atrás e o avesso” (p. 24); por isso, pode fazer sua explícita condenação do patriarcado, representado na figura da personagem Pai: “meu Pai tinha direito ao espaço: o melhor lugar à mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação” (p. 18). O Pai, com “seu único olho azul conferindo” (p. 22), necessita controlar tudo e todos, pois uma insegurança o assombra, revelando também sua fraqueza: “Meu Pai também carregava a sua dor” (p. 22).
O Pai também é ludibriado no jogo, porém fingia não perceber, “assim pensava enganar a morte” (p. 29). É dessa forma que substitui a preferência à filha falecida pela segunda filha, bem mais velha que Menino. Nela depositou sua esperança: “Ela era o futuro, era o homem, herdeira da força, dos desejos e projetos” (p. 17). Mas também “teria de ser provada e comprovada pela dor” (p. 125): “Minha irmã estava viúva muito antes de se casar” (p. 125). Moço, seu namorado, desaparecera nas águas do rio próximo ao sítio da família. As máscaras usadas para a satisfação do Pai, a representação do enquadramento às regras não foram suficientes para impedir que também ela ingressasse no “tabuleiro”, transformando-se em uma personagem-peça a ser traída pela Morte, “pois nem tudo pode ser desinventado depois que se iniciou” (p. 86).
Pai e Mãe vivem um relacionamento superficial, “um casal com segredo e descompasso. Um par sem alegria” (p. 19). Cada um desempenha seu papel de forma a manter as aparências. A filha primogênita falecida, Letícia, cujo nome significa Alegria, representa a falência de sua relação e, consequentemente, do casamento: “Então ali estava enterrada a alegria dela e a de meu Pai” (p. 24), no cemitério.
A personagem Avó, mãe de Mãe, sucumbe ao “olhar reto”, o olhar masculino que estereotipa. Em busca da eterna juventude apregoada na sociedade patriarcal, que faz da mulher um objeto, se submete a infinitas cirurgias plásticas, “parecia estar sempre procurando remendar a sua insuportável realidade” (p. 44), na busca por uma identidade falsa não mais permitida a ela devido à idade. Fica louca ao não saber mais quem é: “de tanto ser remendado o rosto de minha Avó foi se tornando outro” (p. 47). Não se embrenhou na busca pelas tramas de uma identidade feminina verdadeira e se perdeu entre as máscaras da identidade feminina arquetípica submetida ao olhar masculino.
Tio Nando, irmão de Pai, é “um homem esquivo e calado, tem os dois olhos e são pretos, deles escorre uma tristeza permanente” (p. 85). Também ele é uma personagem-peça do jogo que, apostando na vida por meio do casamento e da paternidade, se vê logrado: “passara duplamente pelo solene ritual da morte” (p. 97), ao ter mulher e filho também mortos no rio próximo ao sítio da família. Por ser uma personagem masculina, não compreende as perdas (im)previsíveis: “ – Foi uma grande traição” (p. 99).
Para Elódia Xavier (2002, p. 165), Menino banaliza os valores androcêntricos, desconstruindo a família patriarcal: “Para mim meu Pai era um deus, pois comandava os destinos, e minha Mãe o servia” (p. 62). Com sua função sarcástica e ridicularizadora e, portanto, desconstrutora dos valores patriarcais, Menino faz sua crítica tanto no plano da linguagem: “Eu não queria ser como meu Pai, que pensa que tudo controla, mas deixa escapar o essencial” (p. 16) como por meio do próprio corpo, à semelhança de Sibila em As parceiras, pela deformação, pelo grotesco: “corpo mirrado, olhos de pássaro, nariz adunco. [...] quase calvo” (p. 139). Assim como ela, não participa das jogadas sociais: “Minha Mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel. Meu Pai era dos maus. Ele manejava o poder. Minha irmã era uma invenção dele, a personagem. Minha Avó era a doidinha. [...] Eu não era nem bom nem mau: eu estava de fora” (p. 28-29).
Apesar de recluso, diferentemente da anã, Menino não é alienado nem alheio aos acontecimentos: “começo a ver que mais do que narrei estou sendo narrado” (p. 77). Possui uma visão bastante abrangente do “jogo”, visualizando todas as suas personagens-peças, desde o início com As parceiras: “Uma família inteira foi morar em meu quarto, numa casinha de papelão que construí [...]. A mulher, os gêmeos, o padre, o pai doloroso, a mãe morta, a beata, a menina debiloide, todos” (p. 81). Sabe que há uma chance de sobreviver: “Começo a chorar [...]. Era por não ter sabido antes que o diferente podia ser legitimado” (p. 82). Porém “não posso mostrar fraqueza ou vou ser moído e esfarelado” (p. 83). Caso sobreviva, “no tempo devido essa criança vai atingir a sua altura normal, nem de mais nem de menos” (p. 87).
O patriarcado, na figura do Pai, tem seus dias contados, pois, ante o sofrimento da Mãe, Menino profetiza, pressentindo o (in)esperado desfecho da história de seu Pai: “– Não faz mal, um dia você vai sofrer como todo mundo, vai ser roubado, um dia você vai ser logrado também” (p. 61). Seu declínio é certo, já que se sustenta “sobre esse pedestal precário” (p. 89). Pensando no Pai, Menino lembra que “seus pés são pequenos” (p. 89).
Assim como Anelise (As parceiras) e Dora (A sentinela), Mãe também se enreda nos fios da memória tentando desfazer os nós a fim de encontrar seu rumo: “quando pensa que ninguém vê minha Mãe tira a máscara e é infeliz. Mói e remói a amargura do passado, tenta desenredar seu futuro” (p. 67).
O encontro com Moço, o namorado da filha, é crucial: “minha Mãe e o Moço se olharam pela primeira vez – e foram tragados” (p. 123). A partir daí, para Mãe “tudo começou a se desalinhavar” (p. 122). Diferentemente das outras personagens femininas de Lya Luft, o destino de Mãe, que se ocupou “desenredando os fios todos da sua decisão” (p. 135), fora audacioso: “se recusou a continuar pagando o injusto preço. E foi viver a sua história. [...] Ela finalmente para si mesma disse: Sim” (p. 142).
Conclusão
A elaboração do texto de Lya Luft imita um jogo de azar, a representação das relações sociais em que a mulher interpreta os papéis impostos pelo patriarcado, cuja metáfora é o tabuleiro. Homens e mulheres são personagens-peças dispostos da seguinte forma: homens à direita, mulheres à esquerda. Vida e Morte são jogadoras incógnitas, cuja finalidade é derrubar as personagens-peças femininas de forma que o domínio do jogo seja masculino.
Iniciado o “jogo”, em 1980, com o romance As parceiras, o que se vê são personagens-peças femininas sendo logradas ao cumprirem seu “destino de mulher”, submissas às personagens-peças masculinas. O percurso por este texto-jogo luftiano mostrou uma “legião de perdedoras”. A família e, sobretudo, a instituição do casamento são definidos como a causa para os conflitos femininos. Este último configurou como o “beco sem saída” em que a mulher é vítima de um “jogo sujo”.
Vivendo um momento de caos interior, as personagens-peças femininas podem ser vistas se emaranhando nos fios da memória com o objetivo de desatar os nós elaborados pela moral patriarcal. Esta, o árbitro que dita as regras do jogo social de forma cortante, fazendo-as portar tantas máscaras, que chegam ao ponto de não saber mais quem são (se é que um dia o souberam).
A elas restam meios de sobrevivência que ou lhes impelem o desempenho dos papéis impostos pelo homem ou a ruptura e a emancipação pela marginalização por parte da família. De verdade, nisso tudo, é que sempre serão “o outro”. Esse, um fardo bastante pesado que as faz ingressar na busca por uma identidade própria por meio da linguagem do inconsciente.
As protagonistas luftianas da década de 1980 não conseguem transcender, sucumbindo ao sistema repressor. Entretanto, o “jogo” tecido por Lya Luft parece estar longe de acabar. Tampouco o homem pode ser declarado vencedor. O que estava oculto ao olhar masculino, já que não enxerga através do “ponto cego” e, por isso, imprevisto para ele, era a compreensão da condição da mulher no “tabuleiro” por parte das personagens-peças femininas.
A partir do romance A sentinela, em 1994, por meio da linguagem e do fazer artístico, elas se capacitam de forma a desatar os nós de suas tramas, o que resulta tanto em relações familiares mais afins como na libertação das amarras do casamento. É o início da sua transcendência.
Em 1999, em O ponto cego, as personagens-peças femininas encontram finalmente uma forma de ludibriar as parceiras, obtendo uma chance à vida plena. À Morte só resta permanecer de sentinela, talvez à espreita de um deslize qualquer que lhe permita entrar novamente em ação. Com a saída das personagens-peças femininas do frágil tabuleiro da sociedade patriarcal, quem fica exposto às jogadoras incansáveis e traiçoeiras são as personagens-peças masculinas, que começam a ser logradas e traídas: é o princípio do declínio do patriarcado, anunciado nos anos 1980, que agora se consolida.
Lya Luft realiza uma obra em que cada novo livro surge como complemento ao anterior; por isso, suas personagens iniciais entram na busca de sua identidade existencial, deparando-se com os conflitos básicos entre a Vida e a Morte e, após serem “provadas e comprovadas”, acabam encontrando soluções para os impasses ocasionados pelas relações de gênero, permitindo-se a busca pelo desconhecido.
As palavras da autora em relação à virada em sua obra, cujas personagens surgem mais responsáveis por seu destino, são comprovadas pela identificação da evolução ocorrida em sua tessitura no que tange às novas construções identitárias de suas personagens bem como às inovações apresentadas em termos de desfecho do conflito narrativo.
Finalizando, é sabido que Menino, apesar de pertencer ao sexo masculino, possui fala feminina, já que seu discurso é muito próximo daquele das também protagonistas de Lya Luft. Entretanto, assim como a indagação apresentada por Elódia Xavier (1999), fazendo referência àquelas inovações luftianas: “Seriam estas diferenças sintomáticas da construção de uma nova identidade feminina mais livre do peso das relações de gênero?”, uma outra indagação surge: Seria Menino o anúncio de um “novo homem”, aquele pela primeira vez envolvido em uma construção identitária à luz da consciência “do outro”, já que irrompido dos escombros de um patriarcado em declínio, e por isso deslocado, devido ao surgimento de uma “nova mulher”?
Referências
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Publicado em 18 de setembro de 2012
Publicado em 18 de setembro de 2012
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