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Letras de música, poemas e poesia

Alexandre Amorim

Há uma confusão semântica entre o termo poema e o termo poesia. Um poema é poesia, mas a poesia não se resume a um poema. Poesia pode significar a composição em versos ou aquilo que nos leva a uma determinada apreciação estética, um sentimento de arrebatamento por uma obra artística. Sendo assim, pode-se dizer, genericamente, que o filme Amarcord, de Fellini, ou o quadro Noite Estrelada, de Van Gogh, são poesia. Está nessas obras uma expressão artística que enleva e atrai para a apreciação estética, que nos “prepara” para uma sensibilidade poética do mundo. A enlevação estética aponta para um sentimento poético.

O poema, por sua vez, é uma composição em verso. Pode ter uma forma definida com métrica e rimas obedecendo a um padrão, como um soneto, por exemplo:

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.

Nesse Velho Tema, de Vicente de Carvalho, a paixão que separa a mulher amada das outras é o mote de um poema formal. Mas os poemas podem não ter rimas ou mesmo métrica. Manuel Bandeira usou os ditos versos livres para se manifestar contra a formalização do poema, em Poética:

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.

São formas diferentes, contendo versos e certo ritmo. E não se enganem em relação aos temas: um poema sem métrica ou versos pode falar de amor, como Inconfesso desejo, de Drummond, e um poema formal pode ser satírico, como vários na obra de Gregório de Matos.

Alguns poemas podem ser musicados. Na Grécia ou na Idade Média, era comum que poemas fossem cantados. Não é tarefa das mais difíceis encaixar a música no poema, uma vez que ele traga ritmo e métrica definidos. Mas, então, qual a diferença entre um poema e uma letra de canção? Tendo em vista que tanto poemas quanto letras de música estão livres de seguir uma formalidade estética que inclua métrica e rima, parece que nenhuma.

Mas, se analisarmos a composição de cada um desses tipos, podemos apontar a diferença entre eles na sua intenção. A letra de uma canção deve obedecer à música composta para que ela se encaixe. Obviamente, a poesia contida em um poema pode estar contida em uma letra de canção.

Reza a lenda que o poeta João Cabral de Melo Neto não gostava de música. No entanto, para a peça Morte e Vida Severina, montada nos anos 60, Chico Buarque musicou seus poemas. Mesmo que o poeta não tenha gostado, seus poemas se tornaram letras de canções. Em alguns poucos casos, versos tiveram que ser modificados ou mesmo omitidos. Mas existe alguém que afirme que, após terem sido musicados, os poemas deixaram de ser poemas?

Chico Buarque, o responsável pelas músicas da peça, é um dos maiores letristas da MPB. Entretanto, não gosta de ser chamado de poeta. “Eu trabalho em cima da música”. E afirma que as palavras só acontecem por causa da música. Se o ritmo, que é musical, é uma necessidade comum aos dois modos de fazer poesia, muitas vezes a letra da canção precisa se encaixar em melodia e harmonia. Isto é, uma letra obedece a algumas necessidades diferentes de um poema. Talvez esteja aí a diferença.

Vinícius de Moraes, que transitou pelas duas cidadelas, já dizia a jornalistas mais ignorantes que, em termos de valor, não há diferença alguma. “Que besteira”, ele vociferava, “Eu sei que não há diferença, assim como Drummond sabe e João Cabral sabe”. O poetinha falava com propriedade e se irritava quando algum jornalista ou acadêmico queria mostrar que sua arte como poeta era maior do sua arte como letrista. Porque, se existe diferença na composição das duas expressões, não há como medir valoração estética. Podemos, é claro, usar ferramentas da estética para valorizar mais ou menos um poema, porém, do mesmo modo, podemos fazê-lo com letras de canções.

A poesia, no entanto, está em ambos.

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Publicado em 25 de setembro

Publicado em 25 de setembro de 2012

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