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Calor e temperatura no ensino da Termodinâmica: o senso comum e o conceito científico

Érica Cruz

Licenciada em Química (UENF); professora da rede estadual

O estudo da termodinâmica envolve o uso de conceitos como energia, calor e temperatura, que já estamos acostumados a empregar no nosso dia a dia. Essas palavras, no entanto, nem sempre têm o mesmo significado na ciência e na linguagem comum. Isso tem sido causa de dificuldades no ensino de Química, pois muitas vezes não se alcança o resultado esperado em sala de aula devido ao fato de professor e aluno não se entenderem sobre o significado das palavras. Neste trabalho apresentamos uma pesquisa com os alunos da 7ª e 8ª série do Ensino Fundamental com o propósito de verificar se realmente existe dificuldade para compreender a diferença entre os termos calor e temperatura. Observou-se que, mesmo após aula expositiva sobre o significado de "calor", em que o professor esteve atento à necessidade de esclarecer as diferenças entre a linguagem coloquial e científica, os alunos ainda apresentaram dificuldade em compreender corretamente o significado do termo.

Introdução

Quando dois sistemas com temperaturas diferentes são colocados em contato, a temperatura de ambos no equilíbrio será a média ponderada das temperaturas iniciais. Esse fenômeno é observado frequentemente e o homem, há muito tempo, tem procurado entendê-lo de maneira profunda. Até o início do século XIX, esse fenômeno era explicado afirmando que todos os corpos possuíam uma substância material chamada calórico. Acreditava-se que um corpo com temperatura mais alta possuía mais calórico do que outra com temperatura mais baixa. Quando os dois corpos eram colocados em contato, o corpo rico em calórico cedia parte dessa substância ao outro, até que ambos atingissem a mesma temperatura. A teoria do calórico foi capaz de descrever de maneira satisfatória muitos processos, tais como a condução de calor ou a mistura de substâncias em um calorímetro. Entretanto, o conceito de calor como substância, cuja quantidade total permanecia constante, não sobreviveu aos fatos experimentais (Oliveira, 1998). A teoria do calórico, pensado como substância, foi abandonada em favor da teoria do calor, pensado como transferência de energia entre sistemas a diferentes temperaturas, “principalmente pelo fato de a primeira não conseguir explicar o aquecimento de objetos por outras formas que não uma fonte de calor, por exemplo, por atrito” (Mortimer; Machado, 1999 e 2003).

“A primeira evidência conclusiva de que o calor não poderia ser uma substância foi apresentada por Benjamin Thompson (1753-1814), americano que, posteriormente, tornou-se o Conde Rumford da Baviera” (Mortimer; Machado, 1999 e 2003). De acordo com Mortimer e Machado,

O conde Rumford (1753-1814), engenheiro americano exilado na Inglaterra, introduziu a ideia de que calor era transferência de energia e não substância em 1798, ao atribuir o aquecimento de peças metálicas, quando perfuradas, à energia mecânica empregada em sua perfuração (Mortimer; Machado, 1999 e 2003).

Temperatura é a medida da energia cinética associada ao movimento aleatório das partículas que compõem um dado sistema físico. Quando dois sistemas estão na mesma temperatura, eles estão em equilíbrio térmico e não há transferência de calor. Quando existe diferença de temperatura, o calor será transferido do sistema de temperatura maior para o sistema de temperatura menor até atingir um novo equilíbrio térmico.

A temperatura está ligada à quantidade de energia cinética num sistema. Quanto mais flui energia para um sistema, mais a sua temperatura aumenta. Ao contrário, perda de energia provoca abaixamento da temperatura do sistema. Na escala microscópica, essa energia corresponde à agitação dos átomos e moléculas do sistema. Assim, a elevação da temperatura de um sistema corresponde ao aumento da velocidade, vibração e rotação dos átomos ou moléculas. Muitas propriedades físicas da matéria, como as fases sólida, líquida, gasosa ou plasma, densidade, solubilidade, pressão de vapor e condutividade elétrica dependem da temperatura. A temperatura influencia também a constante de velocidade e o equilíbrio de uma reação química. A temperatura é uma propriedade intensiva de um sistema, o que significa que ela não depende do tamanho ou da quantidade de matéria no sistema (Feltre, 1983).

A unidade básica de temperatura é o Kelvin (K). Um Kelvin é rigorosamente definido como o 1/273,16 avos da temperatura do ponto triplo da água. A temperatura 0 K é chamada zero absoluto; corresponde ao ponto em que átomos e moléculas não possuem nenhuma energia cinética, ou seja, estão completamente parados. Para aplicações diárias, é sempre conveniente utilizar a escala Celsius, na qual 0º corresponde à temperatura em que a água congela e 100º corresponde ao ponto de ebulição da água ao nível do mar. Nessa escala, a diferença de temperatura de 1ºC equivale a 1 K. A escala Celsius é essencialmente a mesma que a escala Kelvin, porém com uma diferença na temperatura de congelamento da água de + 273,16 K (Levine, 1988).

Calor e temperatura são conceitos diferentes

A energia não pode ser criada nem destruída, apenas passar de uma forma para outra. Pode, também, ser transferida de um corpo para outro.

O calor é um processo de transferência de energia de um corpo com temperatura maior para outro com temperatura menor, sendo o melhor exemplo de que a energia pode ser transferida.

“O ramo da ciência que trata das mudanças de energia que acompanham processos físicos e químicos chama-se Termodinâmica” (Quagliano; Vallarino, 1979). Os corpos são constituídos de partículas denominadas átomos, que se agrupam formando moléculas. As moléculas apresentam movimento característico de cada material: nos sólidos, esse movimento é bem pequeno; nos líquidos, as partículas têm maior liberdade de movimento; nos gases, as partículas têm movimento intenso. “O movimento das moléculas é denominado agitação térmica” (Cruz, 2002). E a agitação térmica está relacionada à percepção que temos de quente e frio. Um fenômeno que ajuda a perceber isso é a expansão dos corpos, que geralmente ocorre quando a temperatura aumenta. “O aumento do estado de agitação das partículas de um corpo faz com que elas ocupem maior espaço, aumentando as dimensões do corpo. A grandeza que permite avaliar o estado de agitação das moléculas de um corpo é a temperatura” (Cruz, 2002).

De acordo com Cruz, um exemplo seria
uma barra de ferro quente mergulhada

em uma vasilha contendo água fria. Suponha que pudéssemos penetrar no interior da matéria, onde estão as moléculas ou partículas. O que veríamos? Quanto mais aquecido estiver o corpo, maior será a vibração de suas moléculas. Dentro da barra observaríamos os átomos do ferro vibrando e transferindo sua energia às moléculas da água, que passariam a vibrar mais intensamente. Enquanto a vibração das moléculas da água fosse aumentando, observaríamos a diminuição da vibração das moléculas do metal (Cruz, 2002).

Em resumo, quando a barra de ferro quente é colocada na água fria, há transferência de energia cinética do ferro quente para a água fria, fazendo com que o ferro diminua a temperatura e a água aumenta a sua. “A essa transferência de energia damos o nome de calor” (Cruz, 2002).

Obviamente esse fenômeno não ocorre apenas entre o ferro quente e a água fria, mas com quaisquer corpos que estejam a temperaturas diferentes; e cessa quando atinge o equilíbrio térmico, isto é, quando ambos atingem a mesma temperatura.

“Calor é o nome dado à transferência de energia de um corpo a outro. É energia em trânsito” (Russel, 1994).

“Temperatura é a grandeza física que permite medir a energia cinética das partículas de um corpo, a energia de movimento das partículas” (Cruz, 2002).

O conceito científico e o senso comum

Conforme podemos observar em Laburu e Heller,

embora, nos últimos anos, alguns cientistas tenham contribuído para o aprimoramento do ensino de Ciências, de maneira geral a ciência é vista como algo estático, um conjunto de verdades imutáveis, de estruturas conceituais congeladas no tempo. Muitas vezes não tem nenhuma relação com os contextos históricos, sociais e tecnológicos em que a ciência é construída e aplicada (Laburu, 1995; Heller, 1989 e 1991).

A ausência de diálogo entre a realidade criada pela ciência e a realidade da vida cotidiana, entre a linguagem científica e a linguagem cotidiana não possibilita ao aluno rever seu conhecimento à luz das novidades que aprende nas aulas de Química. Não há também diálogo entre as teorias científicas e os fenômenos, entre os princípios científicos e os contextos sociais e tecnológicos em que eles se materializam (Develay, 1990).

Tudo isso torna a ciência escolar algo desinteressante e sem sentido para a grande maioria dos estudantes. Ao fracassarem nas disciplinas de Física, Química e Biologia, os alunos internalizam a incapacidade e o discurso de que a ciência é para alguns poucos iluminados (Tunes, 1995).

O estudo da termodinâmica envolve o uso de alguns conceitos – energia, calor, temperatura – que já estamos acostumados a usar no nosso dia a dia. Essas palavras, no entanto, não têm o mesmo significado na ciência e na linguagem comum. Isso tem sido causa de dificuldades no ensino de Química, pois na maioria das vezes o professor trabalha conceitos mais avançados, como calor de reação, Lei de Hess etc. sem uma revisão dos conceitos mais básicos (Vygotsky, 1987).

Conclusões

É recomendável para nós, professores, deixar claro para o aluno que a transferência de calor sempre ocorre do corpo de maior temperatura para o corpo de menor temperatura. Em ciência, ao contrário do que fazemos na vida cotidiana, não admitimos a existência de dois processos de transferência de energia – calor e frio. No rigor da termodinâmica não existe transferência de frio, somente de calor.

É importante que nós ofereçamos atividades que favoreçam os alunos a perceber a relação entre os conceitos científicos de calor e temperatura. Não logramos êxito em substituir o conceito popular de calor pelo conceito científico.

Referências

ANDRÉ, M. E. D. A. (1993) Os estudos etnográficos e a reconstrução do saber didático. Ano 12, nº 19, p. 17-21.

CRUZ, D. (2002). Ciências e Educação Ambiental. São Paulo: Ática.

DEVELAY, M.; ASTOLFI, J. (1990). A didática das ciências. Campinas: Papirus.

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FELTRE, R. (1983) Físico-Química. São Paulo: Moderna.

FOUCAULT, M. A. (1986). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

HELLER, A. (1989) O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

HELLER, A. (1991) Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península.

LABURU, C. E. (1995). Uma descrição da forma do pensamento dos alunos em sala de aula. Revista Brasileira de Ensino de Física. v. 17, nº 3, p. 243-253.

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RUSSEL, J. B.(1994). Química Geral. Rio de Janeiro: Makron Books, p. 110 – 135.

TUNES, E. (1995). Os conceitos científicos e o desenvolvimento do pensamento verbal. Cadernos CEDES, p. 29-39.

VYGOTSKY, L. S. (1987) Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, p. 20-58.

Publicado em 2 de outubro de 2012

Publicado em 02 de outubro de 2012

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