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A obrigatoriedade do aprender: uma política de Estado contrária aos ideais emancipatórios de Rancière
Cíntia Borges de Almeida
Mestre em Educação (UERJ), membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação
O objetivo deste trabalho, que foi apresentado no seminário Estatuto Filosófico, na UERJ, em 2010, é relacionar o tema da obrigatoriedade do ensino às questões trabalhadas no livro O mestre ignorante, de Jacques Rancière. Partindo da análise realizada na obra sobre os conceitos de emancipação e embrutecimento, o texto visou aproximar ou distanciar a política de Estado da obrigação escolar dos tais conceitos. Para cumprir uma relação mais satisfatória entre o objeto de pesquisa e o livro em questão, alguns recortes serão estipulados, como o cenário, tempo e grau de escolaridade. Foi escolhido o Brasil como espaço, a transição Império/República como marco temporal – mais precisamente o período de 1870 a 1910 – e o ensino primário obrigatório, devido à sua acessibilidade para um maior contingente de população no período citado.
O livro de Rancière trabalha com algumas posições que são discutidas neste texto, como o caso de concepções e afirmações que são contrárias ao sistema de ensino estabelecido e vivenciado no Brasil de 2012, mas também contrárias às instituições de ensino impostas e apresentadas em vários momentos e que a história da Educação do Brasil tenta fazer circular, como as distintas organizações e processos escolares dentro dos moldes meritocráticos ou ainda dentro de um modelo que, por muitas vezes, tentou preservar “certa” autonomia de seus alunos, mas que apresentava a figura do professor como mediador dessa relação.
O espaço escolar e a escolarização propriamente dita sempre foram vistas como fundamentais para o processo cognitivo desses alunos. Seu desenvolvimento intelectual necessitava dessa relação sujeito-escola, assim como essa relação passava a ser imprescindível para o desenvolvimento da sociedade que se buscava aperfeiçoar. A instrução atendia a duas vias importantes: intelectualizar o sujeito e normalizá-lo e discipliná-lo para uma sociedade à qual ele precisava adaptar-se e ser útil para seus ideais de modernidade e civilidade. Com esse entendimento funcional do papel da escola, é possível observar o distanciamento da proposta de Rancière, que denomina esse processo como “embrutecimento do indivíduo”.
Ele afirma que o que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência. Essa ideia, num sistema educacional em que predomina a meritocracia, não funciona. Partir do pressuposto de que alguém precisa ser obrigado a se instruir é se pautar no entendimento de que a instrução e a escolarização são requisitos indispensáveis dentro do sistema meritocrático, em que, diferentemente do avistado por Rancière, as diferenças estão postas e apenas os mais capazes intelectualmente, partindo de um julgamento já preestabelecido, conseguem ser reconhecidos como “superiores”.
Rancière também fala sobre o ensino universal e critica a instituição. Logo, ele se posiciona contra as instituições escolares, seja pela sua forma, por suas normas, pelo seu papel subordinado às ordens superiores, seja por um intuito de normalizar seus alunos, não permitindo que eles tenham suas paixões, suas vontades manifestadas, tolhendo qualquer manifestação cultural e intelectual dos discentes que estejam fora dos padrões estabelecidos pela instituição. Mas o que ele entende por “ensino universal”?
Não há homem sobre a Terra que não tenha aprendido alguma coisa por si mesmo e sem mestre explicador. Chamemos essa maneira de aprender de “ensino universal” e poderemos afirmar: o “ensino universal” existe, de fato, desde o começo do mundo, ao lado de todos os métodos explicadores (RANCIÈRE, 2002, p. 35).
Entretanto, não era sua ideia fazer do ensino universal a única alternativa, um modelo de redenção. “Também se aprendem coisas na escola dos embrutecedores”, segundo Rancière. Embora o autor afirme que o professor não seja emancipador, ele também não nega a sua contribuição (grifo nosso). Ele ressalta que o professor, inserido na instituição de regras e normas, também está sujeito a obedecê-las; por isso, se embrutece e não pode emancipar. “Um professor não é nem mais nem menos inteligente do que qualquer outro homem” (p. 37). Ele geralmente fornece uma grande quantidade de fatos à observação daqueles que procuram, afirma o autor, reiterando a ideia de que não devemos confundir o professor com o emancipador: um professor é alguém que desempenha uma função social no âmbito de uma instituição. E não há instituição boa. Sobre essa afirmativa, podemos observar a fala de Rancière acerca do papel da instituição – logo, sobre o seu poder embrutecedor:
O ensino universal não é nem pode ser um método social. Ele não pode ser difundido nas instituições da sociedade, nem por iniciativa delas. Não que os emancipados não sejam respeitosos da ordem social; eles sabem que, de toda maneira, ela é menos nociva do que a desordem. Mas é tudo o que lhe concedem, e decerto nenhuma instituição poder-se-ia contentar com tão pouco. Não é suficiente que a desigualdade se faça respeitar: ela quer ser objeto de crença e de amor. Ela quer ser explicada. Toda instituição é uma explicação em ato da sociedade, uma encenação da desigualdade. Seu princípio é e será sempre antiético ao do método fundado sobre a opinião da igualdade e da recusa das explicações. O ensino universal pode ser dirigido a indivíduos, jamais a sociedades (p. 146).
Ao afirmar que não há instituição boa e idônea, que seja capaz de emancipar um sujeito, Rancière se posiciona contra a obrigatoriedade escolar, já que não vê na escola uma função que não seja a do embrutecimento. Partindo desse pensamento, podemos perceber a obrigatoriedade como uma estratégia de governo para civilizar, instruir, “moldar”, ou seja, vigiar e transformar os sujeitos, colocando-os de acordo com os interesses de uma sociedade capitalista e meritocrática.
Pensar a obrigatoriedade do ensino requer compreensão da sua função social, conhecimento dos agentes envolvidos e de seus interesses sobre de tal opção política. Além da elucidação do contexto no qual essa política surge como fator relevante para os novos ideais de educação, é fundamental compreendê-la como inserida no movimento que fundamentou alguns princípios que defendiam, com base nessa política compulsória, uma tentativa de garantir o direito educacional para todos os cidadãos.
A circulação de ideias sobre a necessidade da ampliação do acesso à escolarização das diversas camadas da população deve ser entendida como partícipe do conjunto de medidas que intenta o processo civilizatório, presente em diferentes países desde meados do século XVIII, que envolve um sem-número de investimentos, por uma multiplicidade de instrumentos ou meios, que visam, como já foi visto, promover algo que podemos definir como domesticação ou civilização do humano. Como um projeto tipicamente humanista, o processo civilizatório ou civilizador representa uma marca da modernização das sociedades, o que, em linhas bem gerais, envolve uma profunda mudança comportamental, um investimento na promoção do controle social e do autocontrole, por assim dizer, existencial do indivíduo sobre si mesmo. Há, assim, estreita relação entre os ideais civilizatórios, a mudança das condutas e a formação de uma noção de nação. No Brasil, a gratuidade do ensino primário para todos os cidadãos brasileiros foi garantida somente após a sua Independência, em 1822, por força da Constituição de 1824 e da 1ª Lei Geral da Instrução Pública, que ampliaram as escolas primárias.
Apesar da insistente defesa do ensino obrigatório, a segunda metade do século XIX foi marcada por outras posições frente às políticas educacionais, posições estas contrárias ao ensino primário compulsório. Assim, vale ressaltar os argumentos em defesa e aqueles contra a obrigatoriedade. Havia os grupos de intelectuais e políticos da época que a defendiam, com seus argumentos em torno da questão do direito de fazer valer a inserção do sujeito na sociedade pela instrução, assim como havia aqueles que eram contrários à obrigatoriedade, vendo nessa política uma arbitrariedade do direito de escolha de cada indivíduo.
A concentração do poder nas mãos do Estado tornou-se, nesse momento, a questão central para os intelectuais e políticos do período, fazendo com que muitos deles de posicionassem contra esse fortalecimento do Estado, assim como contra o monopólio estatal da instrução. É importante enfatizar que os discursos direcionavam para o entendimento de que a obrigatoriedade do ensino para efetivar e alcançar os objetivos esperados devia ser controlada pelo Estado, a fim de que se conseguisse que tal política acontecesse de forma efetiva e uniforme em todas as regiões do país e conduzisse a instrução dentro de um padrão estabelecido.
Por esse motivo – por a instrução ter que ser uma política estatal e, consequentemente, fortalecer o Estado dando a ele o poder de legislar e “conduzir condutas” – houve resistência a implementar a obrigatoriedade, haja vista que a instrução estava sendo pensada como instrumento que beneficiaria primeiro o Estado, depois a população. Não se estava pensando no direito do indivíduo e sim na sociedade. A instrução garantiria ao Estado o controle da população. Nesse sentido, a instrução não estaria sendo pensada para a emancipação do sujeito.
Pensando junto a Rancière, a obrigatoriedade do ensino possibilitaria ao Estado o embrutecimento da população, já que não permitiria que as vontades dos indivíduos fossem colocadas em prática. O Estado determinaria como a população deveria se conduzir, se instruir, se disciplinar, se “moldar”. Esse molde, esse pensamento determinado não visava e não permitia que a capacidade intelectual fosse manifestada; ela deveria ser condicionada nos parâmetros esperados de sociedade ordeira e disciplinada.
O que é preciso para organizar a instrução que o governo deve ao povo e que pretende fornecer segundo os melhores métodos? Nada, respondeu o Fundador; o governo não deve instrução ao povo, pela simples razão de que não se deve às pessoas aquilo que elas podem conquistar por si próprias. Ora, a instrução é como a liberdade: não se concede, conquista-se (RANCIÈRE, 2002, p. 148).
De acordo com essa passagem, é possível analisar alguns destaques feitos por Rancière em seu livro; ali ele deixa claro que a instrução e a emancipação não devem ser administradas por uma segunda ou terceira via; devem, sim, ser conquistas individuais. Nessa direção, a obrigatoriedade do ensino, ao determinar um método, um espaço, um mediador e inúmeros outros elementos de normatização, não pode ser uma medida considerada emancipadora. O ensino compulsório embrutece por retirar do indivíduo o direito de suas escolhas, de suas oportunidades de experiência, caso elas estejam fora do padrão estabelecido como correto. O Estado, ao adotar a obrigatoriedade do ensino, constrói um modelo de escolarização; ao estipular uma forma, parte do pressuposto que tal forma seja a mais apropriada e eficiente para o desenvolvimento intelectual de seus alunos, mas principalmente, acredita que esta rotulação seja a mais eficaz para atender aos interesses da sociedade.
Assim, a educação pode vir a se tornar excludente e seletiva, já que não considera a individualidade dos sujeitos, permitindo que apenas alguns dos indivíduos envolvidos nesse processo consigam atingir os objetivos esperados pelo Estado e pela sociedade, e os sujeitos que não satisfazem e não atendem as expectativas são considerados inferiores, menos capazes, contra a ordem.
Segundo o autor, “se o homem obedecesse à razão, leis, magistrados, tudo seria inútil, mas as paixões o conduzem: ele se revolta, e por isso é punido de maneira humilhante” (p. 117). Ou seja, aquele que não se adapta às normas estipuladas, aquele que permite que sua vontade seja manifestada e contraria os objetivos esperados é penalizado. No caso da escolarização, que funciona a partir de um sistema meritocrático, esse homem é considerado inapto, inferior, incapaz, não qualificado para os preceitos estipulados pela sociedade.
Os intelectuais e políticos do final do Império e início da República defendiam que o ensino primário, ainda que oficial, privado ou público, deveria ser laico, livre e gratuito. Essa defesa se apoia numa recusa ao caráter obrigatório do ensino, já que, para eles, a obrigatoriedade agride a organização familiar. No entanto, os defensores da obrigatoriedade do ensino primário pensavam que a gratuidade da educação, debatida no início da República e idealizada como forma de instruir o povo e de garantir sua organização social, caso não estivesse vinculada a tal premissa compulsória, tornar-se-ia um contrassenso, pois o Estado estaria privilegiando as classes mais abastadas, porque, sem a obrigatoriedade do ensino, apenas as pessoas com melhores condições sociais permaneceriam investindo na instrução, enquanto parte da sociedade menos favorecida economicamente continuaria a investir no trabalho.
As lutas e disputas em torno da obrigatoriedade ou não do ensino, acerca de como a educação deveria ser constituída e de que parcela da população deveria atender, apontam para elementos comprobatórios de que o tema não é meramente uma iniciativa estatal, jurídica, de ampliação e garantia de direitos, mas fundamentalmente uma estratégia de governo, uma questão de governo.
Formar um povo tido como ordeiro ou civilizado, ao invés do discurso emancipatório do Iluminismo – que vê na educação uma forma privilegiada de saída da menoridade – é um procedimento disciplinar claramente afeito aos objetivos de governo, tal como apresentamos aqui. Regular condutas, promover estilos de vida e impedir outros, forjar uma subjetividade cidadã, ordeira, civilizada tipifica a obrigatoriedade do ensino como uma estratégia de poder como tantas outras. São claros os indícios que identificam que há relação entre o projeto de nação que o Brasil queria ser e o tipo de sujeito que queria forjar.
As últimas explanações apresentadas aqui deixam claro que a obrigatoriedade, assim como defendida por Rancière, não pode ser pensada como emancipadora. Ainda que seu discurso tenha sido dentro dos preceitos de direito do cidadão e da igualdade de todos de se escolarizarem, de buscarem as mesmas oportunidades e chances de reconhecimento, isso apenas “camufla” o verdadeiro interesse por trás dessa escolarização abrangente. O objetivo esperado com essa obrigação escolar era, possivelmente, organizar e disciplinar essa população, esses homens que, ao se contraporem às ordens estipuladas, estavam se mostrando sujeitos inferiores e indesejáveis para a sociedade.
Para concluir, embora se tenha realizado apenas uma discussão inicial sobre a relação obrigatoriedade/emancipação, é importante frisar que a proposta de Rancière não busca institucionalizar a igualdade, mas investir no desenvolvimento da vontade individual. Essa proposta mostra a obrigatoriedade do ensino e a escolarização padronizada como arbitrárias e estipuladas pelo Estado, sendo embrutecedoras, já que não permitem o desenvolvimento intelectual do indivíduo – que não deve ser moldado, e sim construído por si próprio.
A proposta aqui levantada não deve ser finalizada, considerada uma discussão posta, imutável, fechada para novas considerações. Pelo contrário, trata-se de um debate inicial, com poucos aprofundamentos e que deve ser deixado em aberto para que novas e possíveis análises sobre a discussão aqui introduzida possam ser pensadas e trazidas para a arena de reflexões.
Esse é o conhecimento que foi possível ser desenvolvido a partir da leitura do livro de Rancière, se for considerado apenas um dos vieses de interpretação e uma das muitas relações temáticas capazes de serem cruzadas com a abordagem lançada. Se estamos certos ou errados não é a discussão. Este trabalho consiste em uma vontade, um sentimento que permitiu desenvolver tais considerações e a pauta do assunto escolhido, lembrando que “O homem é uma vontade servida por uma inteligência” (RANCIÈRE, 2002, p. 83). Se não nos deixarmos embrutecer, muitos outros desejos poderão impulsionar novas reflexões, análises, pensamentos...
Referência
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Publicado em 9 de outubro de 2012.
Publicado em 09 de outubro de 2012
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