Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O jogo do “Perdi”

Alexandre Amorim

Dizem que dois colegas, ao perderem o último trem que os levaria de volta para casa e terem que passar a noite na estação, inventaram uma brincadeira: já que iam passar a noite naquela situação lamentável, quem se lembrasse primeiro de tal condição perderia o jogo. Não se sabe se essa lenda é verdadeira, mas o fato é que, pelo menos desde os primeiros anos do século XXI, existe um jogo cujo objetivo é esquecer que você está jogando. Em escolas, não é raro ouvir um adolescente dizer, do nada: “perdi!”, expressão que é acompanhada de vaias e reclamações de seus colegas, justamente porque o primeiro lembrou a todos que estão jogando.

A regra do jogo é muito simples: basta esquecer que está jogando. Caso você se lembre, perde.

Para os fãs de John Lennon, é fácil associar essa ideia a uma de suas últimas músicas, Beautiful boy, que traz o verso “life is what happens to you while you’re busy making other plans” (a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo planos). Isto é, a vida é formada de tudo que fazemos, engloba cada momento nosso e se perfaz de todos esses momentos, enquanto acreditamos estar isolados em uma determinada situação. Essa interpretação passa pelo conceito de “duração”, de Henri Bergson, afirmando que a vida é

uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, uma vez tendo-os ultrapassado, eu me volto para observar-lhe os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão solidamente organizados, tão profundamente animados com uma vida comum que eu não teria podido dizer onde qualquer um deles termina, onde começa o outro. Na realidade, nenhum deles acaba ou começa, mas todos se prolongam uns nos outros (BERGSON, 1974).

Nossa vida é contínua, apesar de termos a impressão de que ela é composta de acontecimentos estanques. Um exemplo muito claro disso, embora possa parecer contraditório, é a ocorrência da morte. Nossa morte acontece desde o momento em que somos gerados; sua “duração” se faz durante toda a nossa vida, enquanto nossas células vão se desgastando ou nosso coração se entupindo ou um câncer vai deteriorando nosso sistema corpóreo. E, no entanto, nos parece que a morte é um acontecimento único, em um momento determinado. Como no jogo, parece que a morte de alguém nos lembra que, no jogo da vida, aquela pessoa “perdeu”.

E ninguém gosta de perder. Mesmo assim, a questão da consciência nos aflige. A sucessão de estados que se prolongam uns nos outros, como diz Bergson, nos aproxima de uma percepção de algo que foge ao nosso controle. O sentimento de que existe algo maior do que acontecimentos isolados, e que denominamos passado(s), presente e futuro(s), nos traz a sensação de impotência perante nossa própria existência. Assim é o jogo: não há como não perder, como não ter a sensação de que você está dentro do jogo, a não ser que você o esqueça.

Aos leitores que perceberam que o único tempo em que não incluí o plural foi o presente, explico: aos que não se conscientizam do contínuo, da sucessão da vida, o presente é singular. Existem fatos vividos no passado e fatos a serem vividos no futuro, mas o presente é apenas um fato – isolado, único. Essa é a perigosa ilusão de quem está jogando/vivendo: achar que está localizado em um tempo fora de sua própria vida, de seu próprio jogo, ou que é maior do que ela/ele. Não é: sua vida abarca mais do que o momento. Seu presente é feito de presentes, que vêm de seus passados, que acontecem agora, que vêm de seus futuros (ou pelo menos de seus futuros desejados). Seus fatos estão todos formando sua amálgama, que é sua vida. O que é o jogo senão saber que estamos jogando? O que é a vida senão saber que estamos vivendo?

Não há razão para concluir, no entanto, que essa linha de pensamento é metafísica ou mesmo religiosa. A vida é maior do que o indivíduo localizado no tempo porque ela é esse indivíduo em sua forma, em sua “duração” – é a vida de suas experiências, desejos, medos e todo o arsenal formador desse indivíduo. Se esse sujeito abre seus olhos e se dá conta de que está aqui agora envolto, sendo parte e formado por sua vida, ele tem a consciência de que está além de qualquer posição única sua, de que ele é o todo de sua vida. Ele sabe que está jogando. Mas será possível viver permanentemente em estado consciente da vida? Como viver em um contínuo permanente?

Se a vida é um contínuo, como preenchê-lo? Talvez essa seja a verdadeira questão. Os dois colegas na estação do trem inventaram um jogo para se aliviar do fardo que é estar consciente de sua condição. Alguns filósofos ponderam que a arte é a sublimação da arte, talvez justamente por isso – por sublimar a condição tacanha de nascer, viver e morrer.

Termino esse artigo sem resposta à condição trágica da vida, a não ser vivê-la. E peço desculpas aos leitores que, neste momento, devem estar desolados, pensando: “droga, perdi!”.

Bibliografia

BERGSON, H. Introdução à Metafísica. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

Publicado em 9 de outubro de 2012.

Publicado em 09 de outubro de 2012

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.