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Todos os jornais do mundo

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia do IFRN

O jornal impresso ainda hoje é um dos meus objetos de reverência. Sei que sua morte já foi decretada pelos arautos integrados da tecnologia, e é bem provável que eles tenham razão e o jornal impresso vá mesmo morrer, como um dia o códex de capa de madeira revestido de couro de carneiro, ou mesmo os rolos de papiro copiados e recopiados pelos monges medievais nas vigílias noturnas da memória.

Mesmo assim, enquanto existir tinta sobre o papel impresso, em revistas ou jornais, estarei eu diante de uma banca ou na porta do condomínio esperando o motoqueiro chegar com as manchetes do dia.

Talvez eu seja, amigo velho, pela força das minhas memórias de infância, só mais um representante da última geração do século XX que se acostumou a enxergar o mundo através dos ícones da grande indústria de massa. Vinis nas lojas de disco, as fitas de videocassete alugadas nas locadoras, os jornais impressos que chegavam pela manhã e as revistas nas bancas de domingo.

O fato é que os jornais, com seu cheiro de tinta e seu papel fino de embrulhar peixe, se tornaram na modernidade, para muitas famílias, o substituto ritual das orações matinais. Não se saía de casa, no século XX, sem antes dar uma olhada nas manchetes que vinham grafadas em letras escandalosas e que pautavam o espaço da discussão pública nas praças e nos cafés. Eram os jornais impressos, com suas tiragens volumosas, que estabeleciam as coordenadas do espaço público no qual a luta política e cultural se materializava.

Hoje, os jornais diminuem a cada dia sua tiragem impressa e migram para os espaços virtuais, como marcas, perfis no Twitter, páginas no Facebook. Se por um lado esses perfis acumulam muitos seguidores nas redes, por outro não contêm, pela sua própria natureza virtual, nenhum traço de materialidade ritualística que a leitura das versões impressas dos jornais costumava carregar.

Não há mais um momento para se ler o jornal. Ele chega para você a toda hora, fraturado, aos pedaços, fragmentado como a informação que circula na rede.

Quem sou eu, amigo velho, para brigar com essa tempestade chamada progresso? Por mais anacrônico que eu seja, não sou louco o suficiente para pensar que há possibilidade imediata de escapar desse processo de interação. A rede já nos capturou e, agora que estamos amarrados a seus fios, escapar não será uma tarefa fácil.

Assumir a rede como canal de veiculação do jornal não é uma opção; é uma contingência da história, movida hoje mais do que nunca pelo mercado que controla o Estado e define as práticas públicas de nossa civilização tecnocapitalista.

Sem o aspecto ritualístico da oração matinal do jornal impresso, a leitura jornalística vai se tornando só mais uma compulsão, como tantas outras nesta sociedade de apetites, cercada pelas pulsões incontroláveis do baixo ventre que se solta obscenamente entre as prateleiras de enlatados virtuais.

Nessa compulsão de atualizar o Facebook, de checar o Twitter a cada segundo, o jornal se comunica conosco em pacotes que se misturam aos milhares de outros pacotes, como um tsunami de informação que recebemos em rede. No mundo virtual, os velhos jornais com cheiro de tinta diluem-se no imenso barulho semiótico que emerge de nossa conectividade maníaca. Um longo, constante e monolítico falatório que funciona como o gigantesco ruído de fundo de nossa civilização.

Na rede, o jornal deixa de ser jornal e passa a ser site, blog, perfil. Em casa, ao lado do sofá, ele ainda resiste; teimoso, em sua constante luta contra a tempestade da história, que o arrasta sem pudor ou remorso em direção ao desconhecido.

Publicado em 16 de outubro de 2012

Publicado em 16 de outubro de 2012

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