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Esse obscuro objeto de amor

Mariana Cruz

Cidadão Kane é considerado um dos mais importantes filmes de todos os tempos. A direção de Orson Welles é um marco do ponto de vista da narrativa e dos enquadramentos cinematográficos. Mas não é sobre tais inovações na história da sétima arte que o presente texto irá tratar, e sim sobre a pergunta que perpassa toda a história do filme e que só no final é dada a nós, espectadores – e somente a nós. Logo nos momentos iniciais do longa, o personagem principal pronuncia a palavra “Rosebud” e morre em seguida. A fim de saber quem foi realmente Charles F. Kane, esse grande magnata dos meios de comunicação, um jornalista busca entender o significado dessa sua palavra derradeira.

“O filme termina e ninguém revela o mistério de “Rosebud”. Somente ao espectador é revelado o significado da palavra, nos últimos segundos do filme, o que o leva à reflexão não durante, mas após o término do filme”, comenta Vitor Junior em uma resenha sobre a película.

Na última cena, o que se vê são vários objetos pertencentes a Kane sendo incinerados, dentre os quais um simples trenó igual àquele com que ele brincava quando era criança no dia em que foi retirado de seu humilde lar para ser criado por empresários (a fim de conseguir gerir, quando se tornasse adulto, a grande fortuna ganha pela sua mãe em um golpe de sorte). A câmera se aproxima e podemos ler a marca do trenó: Rosebud. O trenó queima e o filme acaba. Esse simples objeto parece, nesse momento, ter sido a coisa mais importante de um dos homens mais poderosos do mundo, um dos maiores colecionadores de estátuas e obras de arte de sua época. O trenó tinha mais valor para ele do que qualquer outro bem material que ele obteve em toda a sua suntuosa vida.

Assim como Kane, muitos de nós também temos nossos rosebuds. Minha filha tinha uma boneca, a Maricota, que misteriosamente sumiu de casa. Era uma dessas bonecas que imitam bebê. Foi comprada na Saara e era apenas mais uma entre as tantas outras que ela possui, longe de ser a mais bonita ou a mais cara. Por ser uma de suas bonecas mais antigas, já estava sujinha e riscada, mas, sabe-se lá por quê, a Maricota fora eleita a preferida. Há mais de um ano a boneca foi perdida e até hoje minha filha pergunta sobre seu paradeiro. Pelo menos agora não chora mais, mas às vezes ela fica calada e eu pergunto o que houve e ela diz que está triste porque quer a Maricota de volta. O tio, tocado por essa falta, já deu uma boneca maior e mais bonita na tentativa de substituí-la, mas ela, apesar de ter gostado do presente, nem de longe deu a importância que dava à Maricota. Nem mesmo quis dar-lhe o mesmo nome, como sugerimos.

Outro caso dessa inexplicável afeição a objetos sem muito valor aconteceu na primeira edição do BBB (apesar de reconhecer as bizarrices do programa, não quer dizer que não se possa traçar um paralelo entre ele e o filme de Orson Welles), em que o participante Kléber Bambam construiu para si uma boneca de sucata, a Maria Eugênia. Em um determinado momento, ela foi retirada da casa e o robusto rapaz caiu em prantos, chorou compulsivamente pedindo para que a produção trouxesse sua boneca de volta. Ele passou toda a temporada do programa interagindo com ela até o final, quando venceu a edição e a levou para casa.

Mas não é só com crianças ou com adultos carentes que acontece tal apego. Uma amiga, sem nenhuma carência materna, professora de Economia de uma conceituada faculdade, casada, mãe de dois filhos, não dorme sem seu velho e surrado travesseiro de seus tempos de criança; leva-o inclusive em suas viagens internacionais. O travesseiro já esteve em Nova York, Paris, Marrocos, México e outros lugares do globo.

No mundo dos desenhos animados, como não citar a forte e geniosa Mônica, que tem como ponto fraco seu coelhinho Sansão, e o bom conselheiro Linus, amigo de Charlie Brown, que sempre traz consigo seu cobertor?

Afinal, qual a importância de tais objetos de estimação, muitos deles surrados, sem nenhum valor material, mas de que não nos conseguimos nos separar ao longo dos anos e que preferimos a qualquer outro? O que tais objetos têm que nos impedem de nos desfazermos deles? Não vendemos e nem doamos em hipótese alguma. Parece que trazem em si um acalanto, algo de uma infância que não volta mais, um aconchego de colo de mãe. Como diz o jornalista ao final do filme, intrigado por não ter encontrado pista alguma sobre o significado da palavra: “talvez Rosebud fosse algo que (Kane) não conseguiu ou perdeu”. E a chave do mistério é dada por um velho amigo do milionário: “Tudo o que ele queria na vida era amor”.

Publicado em 23/10/2012

Publicado em 23 de outubro de 2012

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