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Percurso de vida

Alexandre Amorim

“O senhor trouxe seu currículo?”

Essa pergunta congela José desde sua aorta até as pequenas varizes do seu tornozelo. Até sua ponte de safena se fecha. Não, ele não tem vergonha da vida profissional. Pelo contrário, é formado em faculdade de excelência reconhecida, sua pós-graduação foi concluída com mérito e teve bons empregadores. A indústria farmacêutica já escreveu três cartas de recomendação, a serem entregues a um novo empregador.

Mas o novo empregador quer ver seu currículo.

José abre a maleta em que carrega seus documentos, seus óculos de leitura e sua velha gramática de latim. Desde garoto, estuda etimologia. O pai brincava, dizendo que ele foi fazer Farmácia pelos nomes em latim dos compostos químicos. Saudades do pai, que o ensinou a ter gosto pelas palavras.

Ensinou a José, logo na primeira entrevista de emprego, que curriculum era sinônimo de “percurso”, que aquelas folhas com suas experiências resumiam a trajetória de sua vida. Curriculum vitae, percurso de uma vida. José sorri, lembrando-se do pai, e entrega o currículo de cinco páginas ao entrevistador.

“Dez páginas?!”

“Pois é, eu resumi um pouco, para não ficar uma leitura muito enfadonha.”

“Muito o quê?”

“Chata. Aborrecida”. José tem essa mania de dar pelo menos dois sinônimos a um termo quando tem que explicá-lo.

“Mas dez páginas é muita coisa. O senhor não pode me resumir, falando, mesmo?” O entrevistador ri, tentando ser simpático e disfarçar sua ignorância e preguiça.

José suspira. Começa a falar da faculdade, mas o entrevistador interrompe. Pede que relate a razão de ter saído do último emprego. “Vamos logo ao que interessa”, o entrevistador continua com o riso boçal.

“Briguei com um colega, por burrice”, José explica.

“Ah, é burrice, mesmo. Quem parte para briga perde a razão”.

“A burrice foi do meu colega. Não quis ler o relatório sobre efeitos colaterais e acabou por vender um produto que causava úlcera”.

O entrevistador se recompõe, faz-se de sério e competente. “Um absurdo, realmente”.

“Um absurdo”, José repete.

“E aí? Foi despedido da empresa?”

“Fui”.

O entrevistador pergunta o porque. José suspira.

“Já expliquei. Briga com o colega”.

“Mas uma briguinha é razão de demissão?”

“Também acho que não. Mas o sangue deixou minha chefe mal impressionada”.

“Sangue?!”

“O vidro do remédio cortou o supercílio esquerdo do meu colega”.

“O quê?”

“Sobrolho. Sobrancelha.”

“O senhor cortou a sobrancelha do seu colega de trabalho?”

“Não. O vidro escapou da minha mão, porque eu o estava chacoalhando veementemente, de raiva”.

“O senhor perde a calma muito fácil?”

“Muito”.

“Então, talvez aqui não seja o lugar ideal para o senhor”.

“Talvez. Mas como saber?”

“Como assim, Seu José?”

“O senhor ainda nem leu meu currículo”.

“Pode deixar, vou ler. Ligamos para o senhor”.

José deixa o currículo sobre a mesa do entrevistador, levanta-se da cadeira e, mesmo depois de alguns passos fora do escritório, ainda consegue ouvir o barulho de papel sendo rasgado e jogado na lixeira.

Desse modo, entrevistadores de emprego deixam de conhecer o percurso de vida de milhares de pessoas tão interessantes quanto nosso querido, embora nervoso, José.

Publicado em 30/10/2012

Publicado em 30 de outubro de 2012

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