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Cerimônia do Adeus

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia do IFRN

“Deve ser muito embaraçoso ser ateu e materialista e ainda assim falar português”. Essa talvez seja a mais evidente conclusão a que a gente chega quando lê Adeus a Emmanuel Lévinas.

O livro é constituído pelo discurso pronunciado por Jaques Derrida no cemitério de Pantin, no dia 27 de dezembro de 1995, por ocasião da morte de Lévinas; junto com o texto A palavra acolhimento, lido pelo próprio Derrida um ano depois da morte do amigo em um encontro acadêmico.

Não se trata apenas de um elogio fúnebre de um dos maiores pensadores judeus do século XX para outro igualmente grande pensador judeu. Filósofos também aproveitam a hora da morte para praticar o seu esporte preferido, que é levar o pensamento a seus limites, sempre que algo ou alguém oferece uma abertura para que a imaginação e a linguagem possam se libertar de suas cadeias cotidianas.

Por isso Derrida pensa a palavra a-Deus, com todo o constrangimento que ela contém. Como é possível, diante da morte de um amigo, dizer “até logo”, quando se assume a crença metafísica de que só há este mundo, de que só temos esta vida, de que só há esta experiência radical de existir? E como dizer “a-Deus” se essa despedida definitiva, em nossas línguas neolatinas, implica o traço de uma entrega, de um abandonar, de um direcionar o morto a um Deus em que não se acredita?

Derrida escreve: “Antes e para além da ‘existência’ de Deus, fora de sua provável improbabilidade, até no ateísmo mais vigilante, senão no mais desesperado, o ‘mais sóbrio’, o dizer a-Deus significaria essa hospitalidade”.

Hospitalidade, recolhimento, entrega. Despedir-se é, de um modo ou de outro, apostar nessa entrega, nessa hospitalidade, nesse acolhimento. Saber-se estranho nesse mundo, estrangeiro nessa terra, exilado nesse tempo. A gente entrega a Deus os nossos mortos porque não há como fugir do paradoxo de que o definitivo é sempre um campo de morada, um lugar para se estar, um espaço de pertencimento.

Pela epifania dos rostos humanos, o sujeito que pensa e fala, que anda pelo mundo como se tivesse uma seiva, como se carregasse uma luz, como se fosse um mistério do mundo em sua irredutível complexidade, é sempre um hóspede. Sempre um passageiro que atravessa a vida com o ritmo das estações, com a marcação dos momentos.

O tempo das nossas palavras é muito estranho, amigo velho, para que a gente possa sonhar em com um sistema que nos liberte de Deus. Ele anda conosco, mesmo por entre as brechas das palavras que nós usamos quando tentamos escapar da Sua presença.

Publicado em 04/12/2012

Publicado em 04 de dezembro de 2012

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