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Nietzsche, o leitor e a vontade de poder

Alexandre Amorim

Começo este artigo com uma provocação de Roland Barthes:

os signos e as armas são a mesma coisa; todo combate é semântico, todo sentido é guerreiro; o significado é o nervo da guerra, a guerra é a própria estrutura do sentido; estamos atualmente na guerra não do sentido (uma guerra para abolir o sentido), mas dos sentidos: significados enfrentam-se, munidos de todas as espécies de armas possíveis (militares, econômicas, ideológicas, até mesmo neuróticas) (2004, p. 91).

O teórico francês parece concordar com a concorrência nitzscheana de vontades, em que a relação de vontades que disputam determinada soberania é contínua, porém plástica, isto é, a correlação de forças dessas vontades se modifica à medida que se modificam as vontades, mas o relacionamento entre elas vai sempre existir.

A vontade de poder é força criadora e guia, porque “a vontade de poder é ao mesmo tempo o elemento genético da força e o princípio da síntese das forças” (DELEUZE, 1976, p. 42). Para que se explique melhor, é interessante citar a tradução do alemão Wille zur Macht, que varia entre “vontade de poder” e “vontade de potência”. O termo potência parece ser o menos esclarecedor, uma vez que pode se prender à ideia de capacidade, de algo ainda sem realização. Utilizar o termo poder engloba dois sentidos interessantes que parecem cabíveis no intuito de Nietzsche: poder como soberania, uma vez que a vontade de poder está sempre relacionada ao soberano, que impõe sua vontade à outra (mesmo que esta também seja sua), e poder como vigor ou força.

Portanto, a vontade dá origem a uma força que irá se relacionar a outras forças (geridas por outras vontades), e cabe a esta primeira vontade se manter forte o bastante para que se sobreponha às outras. Deve-se deixar claro que essas vontades confrontantes podem pertencer a pessoas diferentes, à mesma pessoa ou até mesmo a uma pessoa e ao mundo, uma vez que a vida traz suas vontades de poder em sua eterna tentativa de soberania. Deve-se, também, observar que os confrontos (e mesmo as vontades) não são fixos em tempo ou qualidade, isto é, são mutáveis em qualquer momento de sua existência:

é um princípio essencialmente plástico, que não é mais amplo do que aquilo que condiciona, que se metamorfoseia com o condicionado. [...] A vontade de poder nunca é, na verdade, separável de tais ou quais forças determinadas, de suas quantidades, de suas qualidades, de suas direções; nunca é superior às determinações que ela opera numa relação de forças, sempre plástica e em metamorfose (DELEUZE, 1976, p. 41).

A relação da vontade de poder com outras vontades é tão dinâmica e violenta quanto sua relação com o próprio objeto. A soberania a ser conquistada depende dessa vontade e de sua síntese com seu entorno, como o próprio Nietzsche defende, em um fragmento póstumo:

todo corpo específico anseia tornar-se senhor, expandir sua força (sua vontade de poder) sobre todo o espaço e repelir tudo o que resiste à sua expansão. Mas ele se choca permanentemente com iguais anseios de outros corpos e termina por se arranjar (“reunir”) com aqueles que lhe são suficientemente aparentados: assim eles conspiram juntos pelo poder e o processo segue adiante (MULLER-LAUTER, 1997, p. 94).

Se o homem-leitor, ao interpretar, precisa justamente colocar sua percepção à mercê de sua vontade para chegar a um acordo entre seus anseios e a vontade expressa do texto, a relação entre hermenêutica e vontade de poder se inicia, portanto, em anseios que se chocam, se ajustam e conspiram para que o processo prossiga. Mas a relação é duradoura, se observarmos que Nietzsche também declara que “o valor do mundo jaz em nossa interpretação, que as interpretações de até aqui são avaliações perspectivas, graças às quais nós nos conservamos na vida, isto é, na vontade de poder” (MULLER-LAUTER, 1997, p. 148).

Há no intérprete a vontade soberana de sua interpretação. Na sua relação com o mundo (com o texto, com outra interpretação) é que ele vai se ater ao fato de que sua interpretação é uma “avaliação perspectiva”, e portanto deve ser submetida a outras tantas forças. Não até que se chegue a uma síntese final, como em um processo dialético, porque nenhuma interpretação pode ser considerada interpretação final de algo. A diferença entre o processo da vontade de poder e a dialética está justamente no fato de que não se deve esperar da vontade um fim. Como disse Nietzsche, o processo “segue adiante”, continua como o rio de Heráclito. A interpretação não deve obediência à vontade primeva do texto (se é que esta existiu) nem a si mesma.

O homem-leitor, ao perceber o texto, já traz consigo sua soberania em andamento, mas também seu eterno exercício de saber a alteridade e de saber-se alteridade. Portanto, o texto chega ao leitor como um novo exercício de interpretação. É o momento da ficção que torna a relação com o texto uma relação diferente com a alteridade, uma vez que essa relação precisa da boa vontade do leitor para com o texto. A vontade de poder do leitor quer se expandir e encontra a enunciação ficcional, que necessita da aquiescência desse leitor. É um exercício deste – com sua crítica, seu afeto e sua imaginação – que permitirá um embate entre as vontades de poder. O soberano aceita que o texto seja uma nova perspectiva de um assunto, e percebe nele seu interesse. Compreende, nessa nova perspectiva, um modo de verificar sua própria força criadora e crítica. A ficção é recebida pela vontade de poder como parte de seu engrandecimento.

O homem-leitor toma para si o texto, abarca a ficção e, a partir deles, renova sua soberania ao criticar e criar. A interpretação é uma atuação da vontade de poder e, por fim, sua expressão. Atua na condição de “multiplicidade das forças em combate umas com as outras” (MULLER-LAUTER, 1997, p. 74) e expressa o que se conformou – naquele determinado momento, e só ali – como resultado das forças do texto e do receptor-crítico-criador. A força do texto não pode sair soberana do processo interpretativo, porque “em última instância, ninguém pode escutar mais das coisas, livros incluídos, do que aquilo que já sabe. Não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência” (NIETZSCHE, 1995, p. 53), isto é, o homem-leitor, em sua interpretação, é ainda soberano, porque o texto lhe foi submetido. Não se quer dizer com isso que o texto tenha sido derrotado ou mesmo desprezado. Ao contrário, o enunciado agora é integrante da soberania do homem-leitor que, como intérprete, carrega consigo também o texto em si. Não a essência do texto, que é inexistente, mas seu enunciado, sua linguagem e gramática, lidas agora com a voz do intérprete, como afirma Deleuze (1976): “o sentido de alguma coisa é a relação desta coisa com a força que se apodera dela, o valor de alguma coisa é a hierarquia das forças que se exprimem na coisa enquanto fenômeno complexo”.

Fundamental, também, é esclarecer que essa soberania da interpretação é fugaz como qualquer força. A estabilidade da interpretação é inexistente, uma vez que, como vontade de poder, interpretar é devir. “Toda força está numa relação essencial com uma outra força. O ser da força é o plural” (DELEUZE, 1976, p. 5), portanto a interpretação resiste até o próximo ato de interpretar aquele enunciado ou reelaborar a interpretação propriamente dita. Resiste até o momento de confronto com nova força.

E, no entanto, a interpretação é também expressão da vontade de poder, antes de tudo porque “a vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de poder” (MULLER-LAUTER, 1997, p. 54), e assim o leitor submete o texto à sua vontade, mas principalmente porque a interpretação faz do homem-leitor um legislador de ideias e o enobrece como criador. Os termos nietzscheanos (o legislador, o nobre) são usados aqui com o propósito de relacionar a crítica e a criação no ato da hermenêutica com o conceito de vontade de poder. No processo de interpretação, criticar e criar parecem ser os momentos em que a vontade de poder se instaura como força criadora que é. A pluralidade de fenômenos (e, portanto, de influências, ou seja, de forças) envolvidos nesse processo é incontável, mas aqui é necessário se deter na figura do intérprete, na sua busca pela avaliação e na sua resposta imaginativa ao texto.

Na hermenêutica está também a força criadora. Como resposta ao texto ficcional, não basta o crítico, ainda que imbuído de lógica e afeto. A criação é necessária para que a ficção também se represente no jogo entre leitor e texto, para que na “excitação da vontade” preconizada por Nietzsche possa acontecer no leitor sua própria verve artística. A criação, então, é que torna o homem nobre, por enxergar a tragicidade e vivê-la. Saber ler é enxergar que a vida em si não é nobre, mas oferece seu lado trágico para que possa vir a ser. Não porque somente a morte é nobre, mas porque viver sobre o trágico o é. O homem-leitor cria ao interpretar, e através da criação enobrece, comunga com a alteridade. O sentido da narrativa está para ser preenchido:

A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve (BARTHES, 2004, p. 57).

E esse preenchimento cabe ao homem-leitor, nobre no momento da interpretação. A criação enobrece porque provoca em cada um de nós uma das múltiplas forças que nos faz resistir, a força artística, que Nietzsche afirma enobrecer a vida. A capacidade de criação do leitor por meio da percepção, compreensão e interpretação de uma obra é um modo de dar a esse leitor uma visão mais nobre da vida. A vontade de poder é reanimada pela arte, pela sua crítica e sua criação. A hermenêutica faz do leitor um ser atento e forte.

Referências

BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. 2ª ed. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-106.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 1965.

MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo, Annablume, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Publicado em 4 de dezembro de 2012.

Publicado em 04 de dezembro de 2012

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