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Pensando a ética na contemporaneidade

Janaina Pires Garcia

Mestre PPGE/UFRJ, Doutoranda PPGE/UFRJ, Professora de Sociologia no Ensino Médio

Neste trabalho me proponho a analisar o texto de Pedro Goergen, Educação para a responsabilidade social: pontos de partida para uma nova ética, que tenta vislumbrar outras perspectivas de ética para além do que ele chama de perspectivas do “intervalo pós-moderno”, refletindo a respeito de propostas de ética diferentes que vêm ocorrendo no cenário contemporâneo.

Num mundo de tantas decepções, ilusões, individualismo, egocentrismo, desconstrução de valores (modernos), será possível imaginar valores como a sociabilidade e a solidariedade no panorama contemporâneo? Será possível pensar em novos modelos de comportamento menos centrados no eu e mais voltados para o coletivo? E como essa ética vigente está contextualizada na escola? Tais questionamentos serão trazidos à luz de diferentes referenciais teóricos, dentre eles Kant, Habermas, Lipovetsky e Maffesoli.

Logo no início, o autor defende que a possibilidade de uma nova ética é possível, caracterizando-se como um otimista. Assim, ele traça três objetivos principais que, na verdade, são as três partes do texto: numa primeira instância, Goergen aponta as dificuldades da construção de uma identidade ética em meio a um mundo de contradições e incertezas; numa segunda instância, busca demonstrar a tentativa hedonista de criar um novo modelo ético; e na última instância ele mapeia alguns aspectos da nossa cultura para vislumbrarmos novas perspectivas de ética.

Antes mesmo de entrar nas partes já referidas, Goergen adverte os leitores:

Adianto ao leitor que não encontrará no texto nem o saudosismo dos bons tempos nem a visão romântica de um eminente futuro cor de rosa. Encontrará apenas uma leitura animada por possibilidades pelas quais penso que vale a pena lutar. Isto me parecia importante para a escola enquanto formadora de cidadãos (Goergen, 2011, p. 94).

A primeira parte do texto está focada na dificuldade da construção de uma ética universal num mundo de contradições e ambiguidades, em que existem outros mecanismos de socialização, como os meios de comunicação de massa.

Goergen expõe de forma clara essa questão:

Torna-se intrigante a questão de como, no interior de uma mesma sociedade, é possível tanta ambiguidade. A resposta, na verdade, é simples, se admitirmos que a sociedade se compõe de camadas ou classes heterogêneas, cujos projetos e expectativas sociais e éticas são distintos e conflitantes (Goergen, 2011, p. 99).

Tal proposta de diferentes éticas expostas por diferentes grupos sociais está presente no pensamento do pós-moderno Maffesoli, o qual veremos mais adiante. Entretanto, o problema que Goergen coloca aqui para reflexão é o pensamento de aderir a uma ética universal num mundo tão conflitante de interesses e valores.

As ideias de Kant expostas nesta parte do texto mostram como esse filósofo almejava uma ética comum a todos os indivíduos. Kant, na sua teoria da razão prática, potencializa inicialmente a ideia do ser perfectível: aperfeiçoar-se por meio dela e tornar-se um ser perfeito. A perfeição como ideal norteador faz o ser humano perseguir tal ideal, porém sabemos que nunca vamos alcançá-lo. A tentativa de Kant era imunizar os homens contra as contingências, elevando à potência máxima o homem à imagem de Deus. Logo, se todos os homens almejam melhorar-se, com objetivo de alcançar a perfeição, teríamos uma lei universal e, consequentemente, uma ética universal exposta no imperativo categórico, que tem como máxima: “Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio” (Kant, 2006).

Na visão kantiana, o homem, para ser um sujeito ético, por exemplo, não pode roubar; porém, se um homem rouba um pedaço de pão para se alimentar, ou melhor, para sobreviver, como é o caso do personagem principal da obra de Émile Zola, Os miseráveis, será que esse mesmo homem deixou de ser ético? Por essas e outras questões é que a teoria kantiana foi duramente criticada, pelo seu extremo rigor.

Dessa forma, o que se coloca é que, da maneira como vivemos hoje, estabelecer regras como essas propostas pelo pensamento kantiano, não flexíveis, como padrão de comportamento, torna-se inviável.

Como bem explicita Goergen, “essa confiança numa razão capaz de encontrar regras à prova de qualquer instabilidade e ambivalência, anunciada no início da modernidade, parece estar hoje profundamente abalada” (2011, p. 103).

No meio de tempos tão caóticos no quesito valores, de tanta instabilidade e insegurança, como pensar em princípios éticos que sirvam de base para toda a sociedade? Essa é a questão que Goergen deixa em aberto para nós, leitores, refletirmos.

Na segunda parte do texto, o autor explora o hedonismo como fundamentação ética. O hedonismo (hedoné em grego) é uma doutrina filosófica que prevê o prazer como principal objetivo a ser alcançado na vida. Desde suas origens teve mais de uma definição, gerando controvérsias e distorções acerca do termo.

O conceito de hedonismo surge na Grécia Antiga, principalmente em Aristipo de Cirene e em Epicuro, criando duas correntes de pensamento diferentes para o mesmo conceito (Marias, 2004). Para Aristipo de Cirene (435-335 a.C), a alma possuía dois estados: o prazer (movimento brando do amor) e a dor (movimento rude do amor), considerando o prazer como bem supremo de todos os seres. Segundo esse mesmo filósofo, o prazer era algo efêmero; por isso, deveria ser aproveitado ao máximo, isto é, o homem deve desfrutar do presente, pois só o presente lhe pertence realmente.

A outra corrente do pensamento hedonista clássico, baseada no pensamento de Epicuro, possuía um olhar diferenciado para o prazer: o prazer deve ser regido pela razão, o que implica uma moderação. Tal prazer não seria aplicável somente no presente, mas também nas recordações ou na esperança. Assim, para Epicuro, o prazer se torna um critério das ações humanas.

Seguindo essa linha de raciocínio, no texto de Goergen encontramos referências ao conceito do hedonismo num primeiro momento mais relacionado ao contexto de ética e, num segundo momento, mais concatenado ao vislumbre de uma ética contemporânea baseada nos valores já apregoados pelos pensadores do hedonismo clássico, porém com novas nuances e tendências.

Para relacionar ética e hedonismo, o autor se ampara nos estudos de Aristóteles, Ética e Nicômanos, enfatizando que

o ser humano quando chega ao mundo já encontra a pólis com seu ethos, com suas tradições, valores e costumes constituídos, aos quais deve adaptar-se. Ética designa, antes de tudo isso, acostumar-se ao ethos, aos costumes e valores vigentes na pólis ou comunidade, como diríamos hoje. É somente na comunidade que, segundo Aristóteles, o homem pode atingir a verdadeira felicidade (Goergen, 2011, p. 104).

É justamente nessa passagem do autor que temos o gancho para pensar na mudança ou distorção do conceito do hedonismo clássico, pois para Aristóteles o prazer, bem supremo da vida, estava relacionado à vida coletiva, à pólis, e o que observamos hoje é exatamente ao contrário, a despolitização da vida pública, em que a felicidade, o prazer de estar em comunidade desapareceu, dando lugar ao que tomo a liberdade de chamar aqui de hedonismo hipermoderno, em homenagem a Gilles Lipovetsky. Como bem é apresentado no texto, “o indivíduo existe como uma mônada (Leibniz) autônoma, lado a lado com outras tantas mônadas, com as quais se relaciona como exterioridades” (Goergen, 2011, p. 105).

Essa passagem do texto mostra como a sociedade contemporânea vive, como é dito no linguajar popular, “cada um no seu quadrado”. E, contradizendo o pensamento do qual Goergen compartilha, de que o indivíduo não se constitui sem o outro, que desde o início das nossas vidas respiramos alteridade, o indivíduo dos nossos tempos sente mais prazer em estar sozinho do que em grupo. Sente mais prazer em estar conectado 24 horas do dia nas redes sociais ou em salas de chat virtualmente do que presencialmente, só para citar um exemplo mais corriqueiro. O que se observa é um distanciamento da vida pública e uma adaptação ao isolamento social, em que as “mônadas humanas absorvem a si mesmas e se adaptam ao mundo em que nascem e vivem” (Goergen, 2011, p. 107).

O problema é que o eu isolado não existe, pois vivemos num emaranhado de relações sociais. Entretanto, observamos a emergência do individualismo em detrimento dos vínculos com a tradição e dos valores coletivos.

Segundo Lipovetsky, muito bem citado no texto, “hoje vivemos para nós próprios, sem nos preocuparmos com as nossas tradições nem com a nossa posteridade: o sentido histórico sofre a mesma deserção que os valores e as deserções sociais” (1989, p. 49).

Tudo isto se liga a uma nova ética na nossa sociedade, nas palavras de Lipovetsky, uma sociedade que tem como herói Narciso, personagem da mitologia greco-romana que se apaixonou pela imagem de si mesmo.

Assim, como aponta Goergen, orientado pelas ideias de Lipovetsky e de Maffesoli, vivemos numa sociedade marcada por uma tendência narcísica, de culto ao corpo, do culto do eu, onde o egotismo se faz predominante, levando o indivíduo à sua potência máxima, gerando consequentemente uma hipertrofia do ego, na qual o indivíduo é tudo e o coletivo é nada.

O autor do texto percebe nisso uma nova ética permissiva e hedonista, em que o culto ao prazer e ao aqui e agora são as únicas coisas que importam, o que se reflete na juventude atual, que só procura o prazer, o reconhecimento pessoal, o poder e o que traz satisfação de forma imediata.

Numa sociedade em que não há mais valores solidários, mas valores individuais, cria-se uma nova “consciência cool” (Lipovetsky, 1989, p. 54), criando um novo ethos em que o que é “rápido, eficiente e lucrativo tem aprovação ética” (Goergen, 2011, p. 111). Cada indivíduo cultua a sua própria verdade, sua própria ética, tornando as relações sociais desprovidas do princípio de alteridade e antissociais.

Logo, se nos encontramos submersos numa ética que tem como principais pilares o individualismo, o egotismo, o narcisismo e o hedonismo, podemos imaginar que tais tendências se encontram igualmente fortes na área educacional, pois “a educação torna-se a busca de instrumentalização pessoal para competir por um lugar no interior de um sistema que oprime a todos” (Goergen, 2011, p. 114).

Essa lógica individualista na escola faz aumentar a competitividade entre os alunos, abrindo mão de projetos sociais e coletivos em que eles poderiam exercitar o princípio da alteridade, o que faz trazer à tona o caráter utilitarista da instituição.

Na terceira e última parte do texto, o autor faz um discussão entre o pensamento moderno e pós-moderno, criticando de modo feroz o que ele intitulou “intervalo pós-moderno” (Goergen, 2011, p. 115) e as alternativas para que outra ética possa emergir da educação.

Para esse autor,

o esforço pós-moderno de explicação das circunstâncias contemporâneas representa uma leitura predominantemente descritiva, determinista e sistêmica da realidade que não percebe as contradições mais e mais visíveis que a habitam (Goergen, 2011, p. 115).

Nessa passagem fica clara a posição do autor em relação ao esgotamento do modelo pós-moderno e o seu descontentamento com o estado das coisas atuais quando chama a ética atual, pautada nos valores pós-modernos, de “ética débil” (Goergen, 2011, p. 115). A partir disso, ele começa a discorrer sobre a oposição moderno versus pós-moderno. Na sua opinião, a aposta da modernidade, baseada na razão instrumental, era criar condições de vida melhores, mais justas e felizes. Era também uma aposta no progresso da ciência, que levaria toda sociedade ao bem-estar. Uma visão particular de mundo nascida no Iluminismo, a qual propunha uma verdade universal que poderia ser descoberta, conhecida e compreendida pelos meios racionais e científicos (Johnson, 1995, p. 152). Porém, no meio do século XX, esse modelo esgotou-se, não conseguindo explicar uma gama de fenômenos da nova sociedade pós-industrial emergente da década de 1950. O conceito de pós-moderno começou a brotar e teve seu principal expoente na obra A condição pós-moderna, de Jean François Lyotard.

O pós-modernismo se posiciona contra as metanarrativas – isto é, uma teoria que explicaria todo o conhecimento ou se colocaria de forma superior para explicar determinados fenômenos, como é o caso do iluminismo, do marxismo, resumindo, das grandes ideologias da História – e prevê o fracasso da racionalidade e do postulado de uma verdade universal (as coisas podem ser relativizadas, quer dizer, uma versão de moralidade, beleza ou realidade não é pior nem melhor do que outra).

Assim, para Goergen,

o pós-modernismo decreta o passado como morto e extinto e anuncia a chegada do reino da autonomia e liberdade como se este pudesse ser alcançado pela simples superação dos enquadramentos religiosos, sociais, políticos e ideológicos tradicionais (Goergen, 2011, p. 117).

Nesse sentido, o pós-modernismo, para o autor, baseado nas leituras de Lipovetsky, está muito mais associado a uma nova lógica da sedução, da hedonização da vida, do individualismo, da espetacularização, de repulsa ao passado e de um presenteísmo ao extremo. Dessa forma, Goergen toma de empréstimo o pensamento de Maffesoli, quando este diz da necessidade de “modelar um ethos” (Goergen, 2011, p. 120) nos tempos atuais.

Essa ideia de modelagem do ethos está presente no conceito de ética do próprio Maffesoli, uma “ética da estética” (Maffesoli, 1990). Tal conceito de ética é baseado nas emoções, em que os indivíduos, não se identificando mais com as instituições sociais e políticas, reúnem-se em tribos, onde conseguem criar laços de identificação, interesses e desejos, mesmo que de modo, às vezes, agressivo. Seguindo esse raciocínio, cada grupo tem sua ética específica, deteriorando a ideia de sociabilidade e cooperação, emergindo uma nova realidade: a de um indivíduo que vive para a “tribo” e não mais para o bem comum.

Na contramão dessas tendências, Goergen acredita que é possível, nos dias atuais, o surgimento de uma ética calcada em valores universais, pela racionalidade argumentativa. Para isso, se apoia na teoria da “razão comunicativa”, de Habermas (1987). A Escola de Frankfurt, da qual fazia parte Habermas, ao fazer a crítica da razão instrumental, não renunciava ao projeto de emancipação do homem, e tal projeto de emancipação ainda obedece a uma norma moderna, a uma visão de mundo moderna. Mesmo assim, Habermas avança em sua teoria: existe uma “razão comunicativa” capaz de sobrepor-se a uma razão instrumental.

Partindo das ideias de razão argumentativa e razão comunicativa, Goergen coloca a seguinte questão: seria possível retomar o projeto moderno sem ser redentor em contexto educacional? O autor, assim como Lipovetsky, pensa o projeto da modernidade em novas bases; pensa o coletivo e formas de organização social em outras bases. A saída seria o “giro pedagógico” (Goergen, 2011, p. 123), trabalhando com a ideia do razoável ao invés do absoluto, com a teoria da argumentação para lidar com discursos contrários. Uma intervenção que não está interessada em impor valores, mas no convencimento, por meio de um processo dialógico, de “negociação das distâncias” (Meyer, 1998), em que o mais adequado seria envolver o outro, o diferente. Logo, Goergen acredita numa ética universal, baseada nos preceitos de Habermas, que perpassaria todas as éticas, de cada tribo, refletindo a respeito de um universalismo a posteriori.

Por esse prisma, para fechar as ideias principais do texto, o educador/professor não poderia abrir mão de um projeto de transformação; todavia, ele continuaria ainda nas bases do projeto moderno de emancipação do homem, visando a uma sociedade ideal, e não real. O projeto pós-moderno, que vai contra as metanarrativas e os projetos emancipatórios, é muito mais realista, porém não seria justo pensar que o professor/educador não é mais capaz de transformar.

Agora, com um olhar mais crítico, discordo de várias ideias trazidas no trabalho de Goergen.

A primeira delas é acreditar que a lógica do individualismo que reina atualmente na sociedade é originária de uma vertente pós-modernista. Segundo Lipovetsky (2009), o individualismo possessivo do século XVIII, de John Locke, e a formação de um Estado liberal que incentivava a propriedade privada e “os vícios particulares enquanto instrumentos para a prosperidade geral” (Lipovetsky, 2009, p. 3) já estabeleciam, desde aquela época, a ordem do egoísmo. E as sociedades modernas foram fundadas nos direitos soberanos dos indivíduos, mesmo que para isso sublimassem a sujeição incondicional ao dever.

A segunda crítica é em relação ao conceito de pós-moderno exposto pelo autor. Ele diz que o “pós-moderno decreta o passado morto e extinto”. Na minha opinião, ele foi bastante infeliz com essa argumentação. O próprio termo “pós” significa alguma coisa que é após outra, isto é, algo que vem depois. Logo, pós-moderno deveria ser entendido como algo que vem após a modernidade, no sentido de uma continuação, de um fluxo, e não de ruptura total com o passado.

Nesse sentido, Lipovetsky (2004) traz o conceito de hipermodernidade, pois, para ele, a pós-modernidade nunca existiu. A hipermodernidade seria uma extensão de três aspectos marcantes da modernidade: o individualismo, o tecnicismo e o mercado. Todo o pensamento da modernidade do século XVIII estava centrado na ideia de um futuro, de construir bases sólidas para um futuro melhor; entretanto, o que se observou nos anos de 1950, 60, 70 era uma sociedade muito mais focada no presente – hedonismo, consumo, liberação sexual. Isso legitimou a ideia de pós-moderno nesse período histórico, porém, de acordo com Lipovetsky, os fatos estavam certos, mas com a conceituação errada, porque nada disso é pós-moderno; na verdade, o que se apresenta é outra modernidade.

Essa nova face da modernidade não destrói a original, não substitui os antigos valores, apenas os radicaliza ao extremo: a velocidade de tudo na nossa sociedade é tão grande que tudo parece ser levado ao extremo: hipertexto, hipermercados, hiperterrorismo etc. Não há esgotamento do espírito moderno; muito pelo contrário, o “hiper” é a modernidade ao extremo.

A terceira crítica concerne ao conceito de hedonismo trabalhado no texto. A meu ver, faltou a problematização do referido conceito nos dias atuais. Será que houve distorção, má compreensão ou novas interpretações do referido termo?

Como já havia comentado, o hedonismo possui duas correntes principais; a sociedade moderna, baseada na razão instrumental, logicamente preferiu adotar o modelo epicurista de hedonismo. Tal modelo prega uma forma de prazer puro, extinguindo toda forma de sensualidade, para dar lugar a prazeres mais espirituais, em que as paixões violentas ficam excluídas. O prazer, nessa corrente de pensamento, deveria ser estável e duradouro, deixando o homem dono de si, porém sem deixá-lo perturbado. O ideal é, portanto, o homem moderado, que conserva o equilíbrio diante de qualquer circunstância (Marias, 2004).

Todavia, será que é esse o modelo de hedonismo que está presente entre nós? Será o modelo de Aristipo de Cirene? Será uma mistura dos dois ou nada disso? Acredito que estejamos vivendo uma forma de hedonismo hipermoderno. Aristipo de Cirene tendia a entender as paixões e os prazeres como coisas efêmeras, e por isso o homem deveria aproveitá-las ao máximo; entretanto, na contemporaneidade essa busca pelo prazer é levada ao extremo. Nós não nos satisfazemos com um período de prazer intenso aproveitando ao máximo aquele momento; nós queremos prolongá-lo ao extremo, vivendo somente sob a ótica do princípio do prazer de Freud. O princípio do prazer, buscando somente a gratificação de forma imediata, querendo o objeto de desejo cada vez mais, nunca encontrando a satisfação, tende a se esquivar da dor, contrapondo-se ao princípio de realidade (Freud, 2004). Logo, o que temos não é nem a forma de hedonismo de Cirene nem a de Epicuro, e sim uma nova forma de hedonismo que visa à constância do prazer a qualquer custo. Percebo também, nos dias atuais, uma inabilidade de lidar com a finitude, o devir, o caráter efêmero que possuem certas vivências. Acredito que o ser humano possua predisposição a querer que aquilo que lhe proporcionou prazer e alegria continue existindo, que dure “para sempre”.

A quarta crítica é concernente ao que Goergen chama de descompromisso de projeto coletivo nos tempos pós-modernos. O viver o “aqui e agora” não é um descompromisso com o futuro nem com a coletividade, muito pelo contrário. Esse hipercompromisso com o presente é uma maneira de pensar um futuro melhor, saindo das visões nostálgicas e utópicas das sociedades modernas que estavam sempre preocupadas com o progresso da humanidade e nunca com o momento presente.

A quinta crítica ao texto diz respeito ao conceito de ética defendida no texto. Goergen se inspira nos ideais kantianos e habermasianos de uma ética universal, porém tal proposta, a meu ver, seria o resgate de uma utopia social, que não condiz com a lógica atual, pois o pensamento de ambos os autores é um pouco rígido, não oferecendo muita flexibilidade. Assim, proponho pensar a ética por um viés mais próximo da nossa realidade, como propõe Lipovetsky (2009).

A modernidade conseguiu a grande façanha de emancipar a moral da autoridade da Igreja, desencadeando um processo de secularização da ética a partir do século XVIII (Lipovetsky, 2009). Tal processo retrata a nova cultura democrática moderna e simboliza o novo valor desses tempos: o indivíduo humano. Segundo Lipovetsky,

ao fazerem da ética uma instância criadora, elevando o indivíduo à condição de valor moral primeiro e último, as sociedades se afastaram da imemorial influência do poder religioso. É esse o “código genético” das democracias modernas: uma ética universalista laica (Lipovetsky, 2009, p. 3).

Entretanto, mesmo a modernidade prevendo uma ética universalista e laica, os homens não deixaram de buscar a felicidade própria como direito natural, o que é a tese central da cultura individualista, e os deveres não deixaram de existir. Assim, a modernidade mostrou sua própria ambiguidade, pois, ao mesmo tempo que idolatrava o imperativo moral, por outro lado negava de forma radical sua legitimidade. O dever, como nova religião da modernidade, só fez com que se afirmasse cada vez mais a autonomia do indivíduo moral, em que o “ideal da vontade livre, que só obedece a si mesma, se afirmou” (Lipovetsky, 2009, p. 7).

Logo, se as sociedades modernas, ao exaltarem o dever, estavam exaltando na verdade o dever do indivíduo para si próprio, em que este só obedeceria às leis de sua própria natureza, me pergunto: como pensar uma ética universal de forma tão inflexível como é proposta por Kant e por Habermas?

Nesse sentido, acredito que as propostas de Lipovetsky e Perelman são mais compatíveis com a nossa contemporaneidade e mais realistas. Lipovetsky (2009), ao afirmar que as sociedades modernas exaltaram o dever, sugere que as sociedades hipermodernas, por sua vez, exaltam o individualismo. Seguindo essa tendência, é possível observar duas formas de individualismo: o individualismo irresponsável, de quem só pensa em seus direitos e não reconhece os direitos dos outros, jogando fora toda e qualquer forma de dever para com a sociedade, para com o ethos coletivo, e o individualismo responsável, no qual se desenvolve o zelo pela relação com os outros, isto é, que incorpora o dever, mas não de forma desagradável, pois engloba as vontades individuais sem sacrifícios (Lipovetsky, 2005). A reunião de milhares de pessoas em algum movimento social pelo ecossistema, contra a fome ou para proteger os animais, somente para citar alguns exemplos, é uma forma do individualismo responsável nos dias de hoje. Enfim, é possível conciliar a ideia de uma ética dita universal com os pressupostos de um individualismo responsável, de forma mais maleável, sem sacrificar os desejos de cada um.

A questão de pensar a coletividade, suas relações sociais e a ética não é algo tão recente assim. Émile Durkheim (2008), ao formular os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, já estava preocupado com o novo ethos emergente de sua época. Nas sociedades em que predominava o tipo de solidariedade mecânica, a primazia do coletivo sobre o individual era para ele o tipo ideal de sociabilidade, em que a subordinação do indivíduo completa seria em prol de bem maior, de toda a nação. Todavia, ele observou que nas sociedades modernas o que predominava era a solidariedade orgânica, baseada numa maior diferenciação social e individual, em que as pessoas não compartilham das mesmas crenças e valores, reinando o individualismo e o egoísmo.

Mais de um século já se passou e ainda vemos que as questões levantadas por Kant e Durkheim, entre outros, ainda geram polêmica.

O ideal seria pensarmos um ponto de equilíbrio para tantas visões de ética: a visão de ética de Kant é totalmente apolínea, e a visão de ética de Maffesoli é totalmente dionisíaca. Será que existiria algo mais “equilibrado”?

O grande problema é que a sociedade ocidental é marcada pela ética do “não mal”: não matarás, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo etc. Esse tipo de ética só está preocupada com o que não se deve fazer, ao invés de se preocupar com o que se deve fazer. A pergunta que se coloca é: em que sentido a ética do “não mal” avança? Infelizmente ela não consegue avançar muito, pois ela se limita ao plano da crítica.

Segundo Oliveira (2000), poderíamos pensar uma sociedade baseada numa ética de princípios; entretanto, a sociedade caminha em dois princípios opostos: a de um ideal moderno de Habermas (do consenso) e a de um ideal de controle (reação à liberdade excessiva dionisíaca).

Mas o que seria isso, pensar numa sociedade baseada numa ética de princípios? Com base no conceito de ética de Perelman (2005), ela se construiria em situações concretas da vida, possuindo como elemento central a regra de justiça: “sejam tratados da mesma forma aqueles que são essencialmente semelhantes” (p. 87).

Podemos constatar que sua visão de ética se preocupa com como os homens se comportam no mundo, ao contrário da posição de Habermas, muito mais preocupado com um dever-ser, impondo um consenso universal. Propor uma forma outra de ética não é impor, é negociar, é debater. Tanto Perelman quanto Habermas defendem uma ética universal construída pela racionalidade argumentativa, porém a diferença fundamental entre eles é que Perelman admite a dialética, construindo uma ética não pelo consenso, mas pelo confronto, saindo do lugar do absoluto e dogmático.

Além disso, o projeto de Habermas deixa de lado toda a emotividade e a afetividade, ao contrário de Perelman, que prevê a comunhão entre razão e emoção.

Dessa forma, a ética para Perelman seria um diálogo entre princípios e juízos morais; daí o nome ética de princípios (Oliveira, 2000): a ética se formaria por essa relação dialética entre princípios e juízos de valor mediante argumentação.

Se pensarmos como Oliveira (2009), que a ética não comporta somente problemas morais, mas sim normas, hábitos, princípios, hierarquias de valores que orientam o homem em suas múltiplas relações, conjugados com os pressupostos de Lipovetsky, de uma ética pós-moralista, poderemos no futuro, não muito distante, ter uma visão mais ampla de ética no cenário contemporâneo.

Para concluir, cito como exemplo o último filme de Roman Polanski, Carnage (em português traduzido como Deus da carnificina), de 2011, baseado na peça de mesmo nome de Yasmina Reza, que traz à tona uma briga entre crianças de 11 anos de idade que faz com que os pais do agressor se encontrem com os pais do agredido. O que temos durante uma hora e meia de filme é uma sátira da sociedade atual, em que duas formas distintas de ética/moral se esbarram: a família da criança agredida insiste que o agressor deva ser punido, enquanto a família do agressor não vê nada de mais no filho ter se defendido, mesmo tendo o dever de se desculpar. A sociedade ainda carrega consigo um dever moral, o de se desculpar, no caso aqui citado, mesmo sabendo que a ação do filho é justificável dentro do contexto explicitado pelo filme.

Ética do individualismo responsável? Não abro mão da minha opinião, meu filho fez o que deveria ser feito, mas não fujo do dever que é o de me desculpar com a família da criança agredida. Será que estamos caminhando para outra forma de ética mais próxima da nossa realidade? Questão para ser refletida...

Referências bibliográficas

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GOERGEN, Pedro. Educação para a responsabilidade social: pontos de partida para uma nova ética. In: SEVERINO, Francisca Eleodora Santos. Ética e formação de professores. São Paulo: Cortez, 2011, p. 93-129.

HABERMAS, Jurgen. Teoria de La acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1987.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia – guia prático de linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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PERELMAN. Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Publicado em 4 de dezembro de 2012

Publicado em 04 de dezembro de 2012

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