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Niemeyer, cervejas e parentes

Alexandre Amorim


Desenho de Oscar Niemeyer

Meu cunhado é arquiteto e fotógrafo. Conhece bem linhas retas, curvas, luz e sombra. No geral, admiro o seu trabalho e gosto de conversar com ele sobre construções e o planejamento de áreas públicas. Um dia, a família estava sentada em torno da mesa no final de um churrasco dominical e um tio começou a falar de bossa nova. Tom Jobim cantava no rádio e, não me lembro bem com que velocidade, a conversa chegou aos anos dourados do Brasil de Juscelino Kubitschek. Meu tio, comunista por ideal e católico por religião, viveu aqueles “cinquenta anos em cinco” e sabia bem que não havia sido bem assim. Foram anos de progresso, mas que iam descambar em uma inflação gigante, e que a pressa em crescer que nosso país tinha ia acabar no abismo de uma ditadura militar.

A conversa ia e vinha do desapontamento de um país sofrido para a esperança do pós-guerra. O sonho do desenvolvimento, o renascer tímido da indústria, a música brotando na mistura inédita de samba e jazz, uma renovação da antropofagia modernista, que dessa vez misturava nossa mãe África com nossos aliados norte-americanos. Falávamos das figuras admiráveis de então. O moleque Garrincha, o promissor Pelé, o poeta Vinícius, que abandonava a diplomacia, o novato Tom, cheio de partituras e ideias, o cantor de voz pequena João Gilberto, que mudava o violão para sempre.

E, é claro, Oscar Niemeyer.

Não havia como falar de um Brasil esperançoso sem falar de Oscar Niemeyer, especialmente com um arquiteto e com um comunista. Na época de nossa conversa, ele completava cem anos, o que já era bastante merecedor de admiração, sem que nem precisássemos mencionar sua longa lista de obras espalhadas pelo mundo. E sua profissão de fé na igualdade entre os homens. Meu tio havia morado em Brasília, meu cunhado havia visitado quase todos os seus projetos já transformados em realidade. Os elogios a Niemeyer vagavam entre as garrafas de cerveja e a fumaça dos cigarros. Até que eu, um completo ignorante do que possa vir a ser arquitetura, trouxe de volta à mesa os olhares, antes sonhadores, dos meus interlocutores:

“Eu não gosto das obras dele”.

A conversa parou. Minha mãe me olhou de cara feia e meu pai foi brincar com os netos, talvez para não ter que lidar com a estupidez do próprio filho. Minha mulher começou a cantar Desafinado, que tocava no CD player. Disfarçava mal, pobrezinha. Eu notava suas pálpebras tremendo de nervoso.

“Como?”, meu tio ainda me deu o benefício da dúvida de não ter ouvido bem.

“Não gosto. Brasília é um horror e aquela catedral do Rio parece um balde de cabeça para baixo”.

“A catedral é do Edgar da Fonseca”, meu cunhado falou, seco. Eu sei que ele guardou o complemento da frase (“sua besta”) em sua cabeça. Por essas e outras é que eu o considero um bom cunhado.

“Tá falando besteira”. Meu tio, menos preocupado com a harmonia familiar, puxou um trago, olhou para mim e continuou, soltando fumaça enquanto falava. “Não fala do que não sabe”.

Me senti desafiado. Todo mundo fala do que não sabe; por que eu, entre os meus, não falaria?

“É uma questão de gosto. Catedral por catedral, aquela de Brasília é tão monstruosa quanto. Além do museu de Niterói, que é feio que dói. Perdoem a rima”.

Não adiantou fazer gracinha. Minha mulher parou de cantar e me olhava com certa pena. Minha mãe tentou começar a falar com ela sobre as avencas que cismavam em morrer. Meu cunhado baixou os olhos. Mas tio é um segundo pai, está aí para educar a gente.

“Você gosta de quê?”, ele tentava me encurralar.

“De coisa bonita”, eu tentava sair pela tangente.

“Não parece. E Pampulha? E o edifício Copan? E o Memorial JK?”. Devo admitir que, se não foi um xeque-mate, me deixou meio sem ação. Apelei para o cunhado, camarada.

“Você não acha que o Niemeyer enfeiou este país?”

“Eu não posso achar isso, né?”, ele começou, sabiamente político. “Esse senhor mudou a cara do nosso país, esse sujeito trouxe as curvas para o concreto”. Essa frase acabou com a minha argumentação. Além de poética, era verdadeira. Meu tio aproveitou que minha guarda estava baixa.

“Brasília é um espetáculo de genialidade! Como alguém ia preencher aquele cerrado que só tinha horizonte? E a sede do partidão francês? E como você fala mal do MAC, em Niterói? Aquelas curvas fazendo paralelo ao Pão de Açúcar! Tá falando besteira”, ele repetiu.

Tio é um pai reserva, não dá para a gente partir para a ignorância. Tentei uma nova abordagem.

“Pode até ser bonito por fora, mas as obras dele são sempre desconfortáveis. Parece que ele não pensa nas pessoas que vão habitar aquilo ali”.

“Você já foi à França?”

“Não”.

“Já foi à sede da ONU?”

“Não”.

“Já entrou no Palácio da Alvorada?”

“Ah, casa de presidente não dá pra ser desconfortável! E aquele hotel em Ouro Preto não tem nada a ver com o barroco da cidade”.

“É claro! Vai fingir que é uma construção barroca?”

Eu e meu tio olhamos para o cunhado, já que entrávamos num campo delicado, de definições estéticas próprias da arquitetura. Queríamos saber se o ponto ia para mim ou para ele. O cunhado roncava. Para que dar um veredito? As obras estão aí. Foram erguidas em seu tempo, têm a marca e o estilo próprios de um homem que trabalhou muito mais do que precisava e deu uma nova cara ao Brasil. Se essa cara é bonita ou feia, é questão de gosto. E a gente pode até discutir gosto, mas só se o assunto valer a pena.

E Niemeyer sempre vai valer a pena.

Publicado em 11/12/2012

Publicado em 11 de dezembro de 2012

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