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Língua mestiça

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia do IFRN

Tem certos acontecimentos que só se manifestam na intimidade da língua. Certos significados, certos jogos, certas relações que só nascem e frutificam quando os homens, esses seres de fala, se encontram naquele espaço confortável de um idioma comum.

Por isso, a última grande fronteira da humanidade não é natural, geográfica ou temporal. O último grande espaço a ser cruzado, o derradeiro limite de integração a ser definitivamente contornado é o limite da língua.

Por causa disso vivemos um tempo de confronto. Em um sentido, somos empurrados para o aberto das linguagens, para o amplo horizonte onde outros povos, outras vidas, outras almas e outras vozes nos acossam com as reminiscências antigas, de um tempo de unidade. Noutro sentido, somos levados a afundar em direção ao interior de nossos próprios idiomas. Somos empurrados a um mergulho profundo em uma selva aquosa de raízes que nos fixam a um lugar, a um povo, a uma época, a um pedaço decomposto da família humana.

Em relação a língua, eu sou do time dos promíscuos. Se, para mim, o português é uma necessidade, outros idiomas acenam sempre com o sedutor convite da possibilidade. Labuto há alguns anos com o inglês, o alemão, o francês e de vez em quando me atrevo a flertar com o hebraico e o grego. Não porque queira acumular algum tipo de ganho social com isso, mas porque me sinto mais livre, mais humano, mais solto quando entendo um idioma no qual não fui gestado.

Desde um dia em 1995, quando estava em Saqsaywaman, na cidade de Cuzco, e perdi a oportunidade de estreitar meu contato com uma norte-americana linda, nascida no Havaí e que parecia tentar comigo algo mais profundo que apenas a troca natural de fluidos corporais, eu me rebelei furiosamente contra qualquer tipo de monoglotia militante.

Quinze anos depois, eu tenho que admitir que, por mais que eu entenda, fale, leia e escreva em um punhado de idiomas, estou ainda condenado ao português. Só não sei se é a substância branca, a cinza, ou a verde com bolinhas violeta que faz com que meu cérebro se prenda a essa língua mestiça que constituiu meu pensamento e que delimitou também os horizontes do meu mundo.

O fato de ter sido criado em uma comunidade linguística unificada determina muito quem eu sou. O esforço para se libertar do peso dessa determinação é um tipo particular de desespero, semelhante ao heroísmo inconsequente de Aquiles ou à obsessão suicida de Ahab perseguindo Moby Dick.

Meu português anda tão misturado comigo que eu já não sei se eu sou eu mesmo ou uma simples ficção de meu idioma. Vezes eu me irrito com ele... me enervo com essa complexidade de regras ortográficas sem sentido que se constituem em um verdadeiro inferno linguístico para um disléxico como eu. Vezes eu me encanto, quando consigo, em meio a um exercício de êxtase, sair de meu próprio idioma e ouvir a fala de meus conterrâneos sem entender o significado das suas palavras.

Esse é um joguinho esquizoide sem futuro que de vez em quando eu gosto de jogar e que me serve quando estou profundamente emputecido com algum congestionamento verbal que o português impõe ao meu texto. Gosto de sair de meu idioma só para poder voltar a ele depois, como um filho que retorna de uma noite de cachaça com os amigos para o conforto da casa da mãe, para curar a ressaca de seus excessos.

Nos últimos anos de minha vida estranha, ando me fiando na certeza de que não tenho uma alma só. De que minhas partes estão divididas, espalhadas por lugares cujo nome eu não sei, por tempos que eu não sei o quando. Talvez esse seja meu karma, minha herança, meu destino, minhas circunstâncias. Talvez essa sensação de exílio, essa impressão de mestiçagem seja muito mais um presente da minha língua do que um dado qualquer, quantificavel em alguns dos infinitos labirintos de meus genes. Quem sabe nessa língua não esteja contida uma ponte que me leve de volta, um dia, à casa de minha própria humanidade.

Publicado em 14 de fevereiro de 2012

Publicado em 14 de fevereiro de 2012

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