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Tragédias particulares
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia do IFRN
Em uma carta para George Orwell, datada de 1949, Aldous Huxley escreveu: “Dentro de uma geração, acredito que os líderes do mundo descobrirão que o condicionamento das crianças e a narco-hipnose são mais eficientes como instrumentos de governo que porretes e prisões, e a avidez pelo poder tanto pode ser satisfeita ao se levar as pessoas a amar sua servidão quanto espancando-as e obrigando-as a obedecer”.
Poucas percepções sobre o futuro que emergiram do sombrio cenário da guerra de quarenta na Europa me soam tão exatos quanto esse presságio de Huxley. Muito se comenta sobre as grandes catástrofes humanitárias do século XX. O holocausto nazista, o stalinismo na URSS, os totalitarismos de Estado com seus massacres monumentais e seu direcionamento das massas para a conflagração da guerra. Mas, amigo velho, pouca gente se dá conta de que existem outros modelos de extermínio coletivo tão perniciosos e fantasmagóricos quando esses que ocorreram com os auspícios dos Estados nacionais no século XX.
Na semana passada, Natal adormeceu assustada com o tiroteio em uma padaria de Petrópolis, bairro da elite jerimum do RN. Um assalto assustou a vizinhança mais sofisticada da cidade, local onde a prole dos ricos fazendeiros do interior veio morar quando saiu de seus sítios, de seus pés de serra nos anos sessenta do século passado para ocupar suas vagas no jet set matuto da capital potiguar.
A tragédia da jovem que ficou paralítica após um assalto no bairro mais chique de Natal é só mais uma que se espalha a cada dia pelos arredores da cidade. Não sei, amigo velho, se você já percebeu, mas hoje Natal é o cenário de um massacre. Um extermínio cotidiano que vem se avolumando nas páginas policiais de nossos jornais diários.
Não tenho estatísticas exatas, mas sei que a quantidade de mortes por armas de fogo e acidentes de automóveis no Brasil já promoveu um holocausto social digno de Pol Pot.
Nosso condicionamento, cultivado desde a infância pelos narcóticos eletrônicos e pelos estímulos do mercado livre, produziu no Brasil dos últimos vinte anos a degradação dos laços comunitários, o desmantelamento da escola, da família e da Igreja (tradicionais mecanismos que mantinham as estruturas sociais brasileiras, por mais injustas e aristocráticas de fossem, sob o controle do Rosário e da chibata).
No lugar da velha ordem agrária, teológica e aristocrática, adotamos um modelo de mercado sintonizado com a nova fase do capitalismo (descrito pelos estudiosos como “capitalismo com dominância financeira”). Aprendemos a cultivar como imperativos sociais os sinais exteriores de riqueza, a insatisfação perpétua dos desejos como motores de nossas ações, a competição sem freios pelo mercado de trabalho, a necessidade de sempre mais, o objetivo maníaco de crescer sem parar e avançar em direção a algum lugar que não sabemos bem qual é.
Adotamos a lógica narcótica dos novos senhores do mundo que nos auxiliam com suas redes financeiras gigantescas a mover a roda do moedor de carne humana do sistema econômico. Participamos da festa. Sopramos a bolha. Nos aproveitamos do surto coletivo e surfamos na onda do progresso. Mesmo assim, nos assustamos quando uma bala atravessa a coluna vertebral de alguém que almoça em uma padaria ou quando “mais um corpo decapitado é encontrado em um terreno baldio na periferia de Natal”. No primeiro caso, nos assustamos mais do que no segundo, é bem verdade, porque, afinal, há sempre o consolo mórbido de que em toda morte de periferia “parece que a vítima tinha envolvimento com drogas”.
Estamos chapados, amigo velho. Entorpecidos com a grande churrascaria Brasil. Movidos a cerveja, carne de gado e música de baixa qualidade. Vibrando nas caçambas de nossos 4X4 à espera do próximo surto, aproveitando a onda da bolha de riqueza que aportou em nosso paraíso particular de consumo.
Se cinquenta mil pessoas são mortas por ano no Brasil vítimas de armas de fogo, paciência! O sistema não pode parar por causa disso. Hoje não temos mais tempo para sofrer com a tragédia coletiva de nosso progresso. Hoje, no Brasil, só existem tragédias particulares, em toda sinistra solidão de seus excessos.
Publicado em 6 de março de 2012
Publicado em 06 de março de 2012
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