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Vozes em mutação

Mariana Cruz

Tenho percebido que, em geral, as aulas pelas quais meus alunos mais se interessam são aquelas em que trago algo de novo. Isso é bom não só para eles. Eu, claro, fico feliz em ver que gostaram. Mas devo confessar que há algo de egoísta nessa minha satisfação: uma aula boa me cansa menos, não preciso ficar pedindo por silêncio, nem pela atenção dos alunos; ao contrário, por vezes tenho até que acalmar os ânimos dos mais empolgados, a fim de que aguardem sua vez de falar. As perguntas que eles fazem servem como combustível, estímulo para mim. Todos saímos lucrando. No entanto, não há como ter certeza de que uma aula irá funcionar, não tem segredo. Pode ser que em uma turma a aula seja ótima e em outra a mesma aula seja um desastre. Há, porém, um caminho a ser percorrido que pode conspirar para que uma boa aula aconteça. Tal fio condutor, apesar de não ser garantia absoluta do sucesso, pelo menos aumenta a chance de ser uma aula legal. É o planejamento feito sem pressa. Claro que se trata de uma visão pessoal. Isso funciona comigo; conheço, porém, ótimos professores que chegam à escola sem ao menos saber para qual séries darão aula e, ao pisarem em sala, têm um desempenho brilhante. Esses são os talentosos, 90% inspiração. Eu sou da turma da transpiração. Daí eu ter de preparar as aulas, selecionar textos e criar situações, elaborar questionamentos para chamar a atenção dos meninos.

Como dou aula de Filosofia, permito-me lançar mão de diversos materiais para enriquecer uma discussão. Dos diálogos de Platão a matérias de jornal com notícias da semana, passando por letras de músicas, artes plásticas e o que mais puder fazer conexão com a matéria a ser dada.

Ano passado, quando caímos na discussão sobre racismo (que este ano provavelmente ocorrerá novamente, pois é um dos temas que constam no currículo mínimo), tive uma boa experiência ao ler em sala de aula o conto Negrinha, de Monteiro Lobato, como já até andei contando por aqui em matéria anterior. Dessa leitura saíram ricos debates, argumentos e histórias interessantes relatadas pelos alunos.

Quando se trata de um texto sucinto, geralmente opto por fazer a leitura em voz alta, quer dizer, eles fazem. Peço para arrumar a sala em círculo e eles leem, sem uma ordem preestabelecida; cada um lê até determinado ponto e depois outro continua. Intervenho apenas para dar uma ênfase em alguma passagem ou explicar alguma palavra desconhecida por eles. Sou uma espécie de mediadora entre eles e o texto. Bom para os dois lados de novo: poupo minha voz e eles desenvolvem a capacidade de ler em voz alta, falar em público e vão, aos poucos, perdendo a vergonha de se expor, de pronunciar de forma errada alguma palavra “difícil”. Antes do início da leitura sempre dito algumas regras básicas para eles, do tipo não ficar rindo ou “zoando” o colega por ler lentamente ou trocar a palavras, afinal, as pessoas são diferentes, portanto leem de forma distinta.

Este ano, quando formos tratar de racismo, penso em usar um conto de Machado de Assis. Apesar de a experiência com Lobato ter sido ótima, é sempre bom mudar. Além disso, a história de Negrinha é muito triste, e já na terceira turma em que reli o texto não aguentava mais escutar os sofrimentos a que a menina era submetida. Entretanto, o texto que pretendo trabalhar este ano, Pai contra mãe, é tão triste quanto. Mas convenhamos que, para trabalhar racismo sem sermos superficiais, invariavelmente teremos que tocar em profundas feridas. E, além disso, Machado é sempre Machado, pode servir inclusive para diminuir o preconceito que os alunos muitas vezes têm em relação ao escritor por considerá-lo um tanto hermético ou “difícil”, como dizem. Além de questões raciais, o conto aborda importantes temas para discussão, como instinto de sobrevivência, desigualdade social, a situação da mulher escrava naquele período e a maternidade, entre outros. E ainda somos agraciados com a escrita magistral do Bruxo do Cosme Velho.

Fórmula similar pode ser empregada ao tratar os Anos de Chumbo: que tal usar umas músicas de Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gil e Caetano para mostrar como eles faziam para tentar escapar da censura? Talvez isso fique mais marcado na mente dos alunos do que escrever um monte de datas no quadro.

Tais experiências me mostram que, à medida que utilizo tais meios como apoio para os conteúdos que estou trabalhando, vou conhecendo também o universo dos alunos, ouço o que eles pensam, o que eles têm a falar e, muitas vezes, deixo a aula ser “tocada” por eles. E eu, como um maestro sem batuta, me deixo levar pela sonoridade daquelas vozes adolescentes em mutação.

Aprendem eles, aprendo eu.

Publicado em 6 de março de 2012

Publicado em 06 de março de 2012

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