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Didática da escolarização do leitor: uma abordagem sociointeracionista
Silvio Profirio da Silva
Graduando em Licenciatura em Letras (UFRPE)
Durante décadas, a didática da escolarização do leitor concedeu primazia à decodificação de conteúdos e informações, primando por práticas mecânicas de reprodução. O ensino dessa competência linguística tinha como base norteadora as tendências tecnicistas. Consoante Perfeito (2007), o tecnicismo está diretamente atrelado ao behaviorismo – teoria psicológica elaborada por Watson – que preconizava a “incucação” de hábitos e práticas amparados na constante repetição (PERFEITO, 2007). Com base no norte dessa tendência pedagógica, o processo de escolarização brasileiro privilegiava a transmissão, a recepção e, acima de tudo, a reprodução mecânica de conteúdos.
Os processos de ensino e de aprendizagem ainda não se pautavam na atribuição/construção de significados, a partir da abordagem dos conteúdos. Em outras palavras, nas significações e nos sentidos dados às informações recebidas. O foco dos procedimentos de ensino voltava-se, assim, para a “incucação”, ou melhor, para o depósito e, principalmente, para a reprodução de conteúdos. Partindo desse pressuposto, percebemos uma perspectiva conteudista que pairava na condução dos processos de ensino e de aprendizagem.
Tendo como pano de fundo esse contexto paradigmático, a escolarização da leitura focava em atividades que priorizavam a localização e, em especial, o refazimento de pequenos fragmentos/trechos de textos. Independentemente, de qual fosse o texto ou o gênero de texto, as estratégias eram sempre as mesmas, isto é, identificar/localizar, extrair e reescrever uma determinada informação (BARBOSA; SOUZA, 2006). Tal prática é o que Albuquerque (2006) e Cardoso (2003) conceituam como treino de habilidades de leitura. Percebemos, desse modo, que o fio condutor da prática pedagógica do ensino da leitura era a reprodução.
Destacamos, ainda, o fato de o ensino dessa competência linguística amparar-se em uma prática bem conceituada por uma gama de autores da Pedagogia e da Linguística Aplicada, enquanto texto como pretexto (ALBUQUERQUE, 2006; BARBOSA; SOUZA, 2006; KLEIMAN, 2008; SANTOS et al, 2006; SUASSUNA, 2009; TRAVAGLIA, 1997). Aludimos, nesse ponto, ao fato de o texto ser utilizado como suporte didático, a fim de realizar análises didáticas de cunho gramatical. O ensino da leitura, dentro dessa perspectiva, estava diretamente atrelado à gramaticalização. Ou seja, a didática do ensino dessa competência linguística focava em abordagens pedagógicas normativas. Isso está em sintonia com Kleiman (2008), que define essa prática como o texto como conjunto de elementos gramaticais; por intermédio dela, “o professor utiliza o texto para desenvolver uma série de atividades gramaticais, analisando para isso a língua como conjunto de classes e funções gramaticais, frases e orações” (KLEIMAN, 2008, p. 17).
Destacamos também o fato de o ensino desse componente curricular ter priorizado a linguagem verbal (leia-se, linguagem escrita), deixando de lado a imagem e seu papel na elaboração de efeitos de sentido. Ora, o ato de ler pautava-se única e exclusivamente nos signos verbais expostos na superfície do texto. Excluía-se, assim, a linguagem não verbal e uma gama de elementos que compõem o plano visual.
De acordo com Albuquerque (2006, p. 11), “a década de 1980 assistiu a um amplo desenvolvimento de pesquisas na área de Língua Portuguesa. Pesquisadores de diferentes campos – Psicologia, História, Sociologia, Pedagogia etc. – tomaram como temática e objeto de estudo a leitura e a escrita buscando redefini-las”. Nessa perspectiva, partir dos anos 1980, os debates atinentes ao ensino de Língua Portuguesa proliferaram-se consideravelmente, o que ocasionou o surgimento de uma gama de fundamentos teóricos. Tais fundamentos respaldam um novo fazer docente no que diz respeito à prática pedagógica do ensino da leitura.
Nos últimos 30 anos, surgiu uma ampla literatura na qual se discutiu o modo como vinha se processando o ensino de língua materna no Brasil. Havia nesses trabalhos a preocupação de não apenas criticar as práticas de ensino de língua portuguesa presentes na escola, mas sobretudo apontar questões de nível conceitual e metodológico na direção de uma nova forma de conceber o ensino da leitura e da escrita. Já na década de 1980 alguns trabalhos das áreas da Linguística e da Psicolinguística passaram a questionar a noção de ensino-aprendizagem de língua escrita que concebia a língua apenas como código e, dessa forma, entendia a leitura apenas como decodificação, e a escrita somente como produção grafomotriz. A linguagem deixava de ser encarada, pelo menos teoricamente, como mero conteúdo escolar e passou a ser entendida como processo de interlocução. Nessa perspectiva, a língua é entendida enquanto produto da atividade constitutiva da linguagem, ou seja, ela se constitui na própria interação entre os indivíduos. Passou-se, assim, a prescrever que a aprendizagem da leitura e da escrita deveria ocorrer em condições concretas de produção textual (SANTOS, 2002a, p. 30-31).
Ainda no que tange às contribuições teóricas de Albuquerque (2006), essa autora aponta o fato de esse quadro ser advindo de uma vasta quantidade de campos de investigação, como as Ciências da Linguagem (Linguística, mais especificamente, da Linguística de Texto, da Análise do Discurso, da Análise da Conversação, da Etnolinguística, da Linguística Cognitiva, da Psicolinguística, da Pragmática e da Sociolinguística); isso é apontado também por Barbosa & Souza (2006), Cereja (2002), Geraldi (1984), Santos et al (2006), Soares (1998) etc.). Aliados a esses campos de investigação, podemos também mencionar as Ciências da Educação (Pedagogia), as Ciências Psicológicas (Psicologia, mais especificamente a Psicologia Cognitiva, a Psicologia da Aprendizagem e a Psicologia do Desenvolvimento), a Filosofia, a Sociologia (ALBUQUERQUE, 2006; ALBUQUERQUE et al, 2008).
Se o ensino da leitura e da escrita sofreu mudanças diversas ao longo da história, nas três últimas décadas variados aspectos têm influenciado e transformado bastante as formas segundo as quais esse ensino tem sido concebido e posto em prática. Fatores como os avanços teóricos na área, mudanças nas práticas sociais de comunicação e o desenvolvimento de novas tecnologias têm forjado novas propostas pedagógicas e a produção de novos materiais didáticos relacionados à alfabetização inicial e ao ensino de línguas em geral. No contexto brasileiro, vivemos desde o início da década de 1980 um amplo debate sobre esses temas. Pesquisadores com formação em distintos campos – Psicologia, Linguística, Pedagogia etc. – têm procurado redefinir a leitura e a escrita, bem como seu ensino e sua aprendizagem (ALBUQUERQUE et al, 2008, p. 1).
Com base no norte desses postulados, emerge uma nova concepção de leitura como ato de atribuição/construção de sentido. Isso está em sintonia com Santos (2002b, p. 3), que corrobora essa nova noção de leitura. No dizer da autora, a leitura assume então a condição de “processo interativo entre autor e leitor, mediado pelo texto, envolvendo conhecimentos (de mundo, de língua) por parte do leitor, para que haja compreensão”. A leitura, como ato de produção de sentido, está intimamente ligada a perspectivas linguísticas, cognitivas, dialógicas, interativas e sociais (KOCH, 2002; KOCH; ELIAS, 2006).
A compreensão passa a ser uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície do texto e na sua organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédico) e sua reconstrução no interior do evento comunicativo. O sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (LINS; LUNA, 2002, p. 9-10).
Destacamos, principalmente, o fato de essa nova concepção de leitura abranger os mais variados elementos textuais presentes na superfície do texto. Nessa conjectura, o ensino da leitura volta seu olhar para a linguagem não verbal, englobando assim os diversos elementos que fazem parte do plano visual. Essa nova perspectiva é conceituada por uma gama de autores provenientes da Linguística de Texto como multimodalidade. São cada vez mais comuns, no cenário educacional, discussões concernentes aos aspectos multimodais no tocante não só à leitura, mas também às práticas sociais (leiam-se situações comunicativas das práticas corriqueiras do dia a dia). Ora, ao falar em fatores multimodais, aludimos aos mais diversos elementos que contribuem para a elaboração de sentido e de significação em uma dada situação comunicativa e/ou para a produção de sentido face ao texto. Rompe-se, dessa maneira, a ênfase dada à linguagem verbal (leia-se, escrita).
Ainda, no que se refere à leitura, podemos destacar os conhecimentos utilizados pelo leitor durante o ato de elaboração de efeitos de sentido. Koch & Elias (2006) e Lins & Luna (2002) demonstram os diversos tipos de conhecimento do leitor (linguísticos, sociais (enciclopédicos) e textuais) utilizados durante a elaboração de significação diante do texto. Além desses conhecimentos, o leitor lança mão de uma gama de estratégias/habilidades cognitivas de leitura. Percebemos, nesse sentido, que a compreensão de texto é algo que não se limita aos saberes relativos à gramática e ao léxico da língua portuguesa. Pelo contrário, abrange os saberes provenientes do âmbito social do leitor. Com isso, a compreensão de texto se dá por intermédio da junção de uma gama de conhecimentos de diversos tipos de expediente (KOCH, 2002; KOCH; ELIAS, 2006; LINS; LUNA, 2002). Tudo isso é que uma gama de autores da Pedagogia e da Linguística conceituam como leitura em uma perspectiva sociointeracionista.
O exemplo a seguir pode ilustrar como essa abordagem sociointeracionista funciona na prática, por intermédio de uma charge publicada pelo jornal O Paraná, de Cascavel-PR, em outubro de 2010, em pleno período das eleições presidenciais, marcado não só pelas campanhas eleitorais como, sobretudo, pela troca de acusações. Houve, nessa época, uma vasta quantidade de discussões em torno da questão do aborto. Essa temática predominou de tal forma que vários jornais teceram críticas à primazia dada a ela. A charge também faz essa crítica.
Em uma perspectiva sociointeracionista, as práticas de leitura não concedem primazia apenas ao texto verbal (leia-se, escrito). Pelo contrário, ela lança mão de uma grande diversidade de gêneros de texto. Tais gêneros podem ser pautados pela junção da linguagem verbal e da não verbal, como é o caso abaixo. Isso é algo de fundamental importância para romper o ato de priorizar textos e/ou gêneros que lançam mão apenas da linguagem escrita. Essa é a primeira observação que podemos mencionar. Entra em cena, desse modo, a variedade/diversidade textual nas práticas pedagógicas.
Destacamos, sobretudo, o fato de o leitor, para perceber o propósito comunicativo do gênero textual em foco, ter de utilizar não só seus conhecimentos linguísticos e textuais, mas também seus conhecimentos de mundo (leiam-se sociais e/ou enciclopédicos (KOCH; ELIAS, 2006)). Dito de outro modo: para chegar à intenção comunicativa do gênero textual em tela, o leitor terá que utilizar seus conhecimentos de mundo e/ou sociais referentes a esse período, relembrando, dessa maneira, as críticas tecidas pelos meios de comunicação em face da ênfase dada à temática do aborto, em detrimento de outras questões de suma importância para o desenvolvimento social do Brasil.
Fonte: Jornal O Paraná, quinta-feira, 21/10/2010.
Contudo, o leitor pode de imediato não remeter a essa situação ocorrida no contexto da política partidária brasileira. A produção de sentidos não ocorreria? Não. O leitor pode lançar mão de uma gama de elementos que o auxiliam na elaboração de efeitos de sentido e de significação face ao texto. No caso dessa charge, para chegar ao seu propósito comunicativo, o leitor pode utilizar os elementos verbais e não verbais dispostos na superfície textual. Vamos começar pela imagem do teclado da urna eletrônica; essa imagem por si só já sinaliza a temática da questão política abordada pelo gênero charge. Logo abaixo, a imagem dos botões verde, branco e vermelho demonstra a abordagem da temática do aborto. E, acima da imagem, a frase ”Grandes temas Nacionais” evidencia a primazia dada à temática do aborto. Com a articulação dos elementos advindos da linguagem verbal (escrita) e não verbal (imagética), o leitor chega à pretensão comunicativa do gênero textual em tela. Partindo desse pressuposto, não só a linguagem escrita como também a imagética são de fundamental importância para a construção de sentido. Ou seja, todos esses elementos contribuem de forma significativa para a atribuição de sentido em face do texto.
Referências
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Publicado em 19 de março de 2013
Publicado em 19 de março de 2013
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