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Com gosto de bolinhos de chuva
Palmyra Baroni Nunes
Mestre em Linguística Aplicada (UFF)
Outro dia, começou a chover muito. Relâmpagos e trovões brigavam no céu. Eu estava sentada, tentando achar de novo a concentração que havia ido embora, no momento exato em que ouvi primeiro um barulho assustador e, em seguida, vi um clarão. Pensei em levantar e pegar vela e fósforos pra garantir um pouco de luz quando a eletricidade faltasse ali. Levantei, preparei o ambiente e permaneci quieta, esperando o que viria em seguida. Enquanto isso, lá fora, a água batia na terra e levantava aquele cheirinho típico da chuva. Nesse instante, fui empurrada para o lugar da minha infância. Toda fumaça que, por alguns anos, escondia o sítio da minha avó das minhas memórias conscientes foi dissipada. A chuva, os relâmpagos e trovões clarearam minhas lembranças. Fiquei frente a frente comigo vinte e poucos anos mais nova e com o mesmo medo.
De repente, mobília e decoração mudaram, a casa ficou maior, mais calorosa e confortável. Várias bonecas espalhadas pelo chão, o gato deitado no sofá e eu, em pé, olhando para aquela cena da minha infância que se repetia toda vez que havia um temporal, quando obviamente faltava luz e que, por razões desconhecidas, eu havia esquecido: eu, no colo da minha avó, ouvindo-a contar histórias. As mais diversas e interessantes, as mais legais do mundo! Pra mim eram ainda melhores do que as saídas dos livros da professora na escola, pois tinham vida, haviam sido presenciadas e recontadas e os personagens eram fantásticos. Tinha homem que virava bicho, bicho que virava homem, lugares assombrados, herói que salvava a pátria, meninas e meninos encantados. Era um baú cheio de novidades. Tudo à luz de velas, pra dar mais cor aos contos. Depois de servidos aqueles pratos cheios de histórias, ainda tinha a sobremesa: bolinhos de chuva. Eles eram feitos no escuro mesmo, ou melhor, à luz de velas. Minha avó dizia que, num dia de chuva, tinha que ter bolinhos de chuva, se não que graça teria? O mais bonito é que as histórias que ela contava tinham o mesmo gosto dos bolinhos de chuva, pois, além de doces, encantavam...
Na verdade, o barulho do trovão era a sonoplastia, os relâmpagos eram as luzes daquele cenário, as histórias eram o prato principal e os bolinhos, a sobremesa. Aquelas histórias me protegiam. Aquelas mãos me davam segurança. Naquele momento, um trovão me trouxe de volta pra minha casa, que era menor e mais arrumada do que a da minha avó e, logo em seguida, um relâmpago fez a luz fugir. Ainda bem que as velas já estavam preparadas. Eu estava ali, num dia de chuva, sem as histórias que me davam proteção. Lembrei que eu nunca havia perguntado como os bolinhos eram feitos. Só lembrava daquelas mãos trabalhando, da quentura da cozinha e do gosto do bolinho, mais nada. Mas, já que a vida é cheia de surpresas agradáveis, prontas pra aparecerem, comecei a procurar no armário, no escuro mesmo, se havia algum ingrediente que me ajudasse na receita que eu não sabia. Achei! Achei uma embalagem de plástico onde estava escrito: “Bolinho de chuva”. E mais abaixo: “Mistura para bolinho de chuva sabor tradicional”. Sorri e pensei: “Agora, só me faltam as histórias...”
Publicado em 26/03/2013
Publicado em 26 de março de 2013
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