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Reflexões que tramam a teoria de Nilda Alves: pensar os cotidianos, produção de sentidos, redes educativas e artefatos nos cotidianos

Márcia Moreira de Araújo

Patrícia Baroni

Renato Fundão

Tarliz Liao

Introdução

Este artigo buscou pontuar algumas reflexões sobre pressupostos da teoria da pesquisadora Nilda Alves. Há quatro pontos que o seguem norteando: o pensar os cotidianos, a produção de sentidos, as redes educativas e artefatos nos cotidianos.

A primeira pontuação indica os movimentos que possibilitam o decifrar das lógicas dos cotidianos. A segunda pontuação segue indicando a elevação de um patamar criativo e dialógico para pensar que somos múltiplos e produzimos efeitos de causaconsequência no exercício da docência. A terceira pontuação indica a confluência das redes educativas incidindo no potencial criativo e cognitivo de cada indivíduo, favorecendo escolhas e, consequentemente, seu desenvolvimento. A quarta e última pontuação indica as potencialidades da influência do uso de artefatos.

Pensar o cotidiano

Algumas formas de pesquisar se diferenciam dos modos validados pelo proposto rigor científico, que reduz o que é pesquisado a algo sem vida, sem subjetividade e sem processualidade. Santos (2007) destaca que “a ciência moderna estabeleceu caminhos próprios e totalizantes para a produção e validação de conhecimentos. Vale o que é quantificável, visível, classificável”.

Sobre as imposições da modernidade, Santos (2007) alerta que “o rigor científico afere-se pelo rigor das medições. Conhecer significa dividir e classificar para depois determinar relações sistemáticas entre o que se separou”. Contudo, os estudos dos cotidianos impulsionam a refletir sobre os modos mais plurais de produção do conhecimento, em múltiplas fontes que constituem nossos modos de ser e de agir, impossíveis de serem quantificados, classificados e imediatamente verificáveis.

Existe, portanto, fora daquilo que à ciência é permitido organizar e definir em função das estruturas e permanências, uma vida cotidiana, com operações, atos e usos práticos de objetos, regras e linguagens historicamente constituídos e reconstituídos de acordo com ou em função de situações, de conjunturas plurais e móveis (OLIVEIRA, 2005, p. 48).

Sendo assim, estudar os cotidianos é pensar além de um paradigma totalizante, é mergulhar em múltiplas possibilidades e supor mais do que tudo aquilo que é informado pela modernidade no singular. Pensar o cotidiano é “supor o plural como originário” (CERTEAU, 1994, p. 223). Trata-se de questionar os caminhos que já conhecemos, perceber seus limites e sublinhar a possibilidade de novas rotas.

É possível afirmar que, no decorrer dos últimos quatro séculos, desenvolveu-se a ideia de que a validade e a hierarquização dos conhecimentos seriam dadas conforme sua capacidade de comprovação mediante alguns métodos. Assim, aprende-se que os demais modos de produção do conhecimento devem ser negligenciados, inferiorizados, superados.

Sobre esta trajetória histórica, Henry (1998, p. 13) explica que

Revolução científica é o nome dado pelos historiadores da ciência ao período da história europeia em que, de maneira inquestionável, os fundamentos conceituais, metodológicos e institucionais da ciência moderna foram assentados pela primeira vez (...). O desenvolvimento e a fixação da metodologia característica da ciência sempre foram considerados constitutivos da revolução científica.

Tal metodologia supõe a distinção entre sujeito e objeto. Pretende-se com isso que o pesquisador seja isento de sofrer qualquer interferência daquilo que investiga, capaz não só de observar o objeto estudado como também de controlá-lo.

Vale também destacar a necessidade da fragmentação desses saberes tidos como válidos. A impressão deixada é de que quanto mais se fragmenta maior será o conhecimento que se tem sobre determinado conteúdo. Sobre essa fragmentação, Latour (2001, p. 306) denuncia:

uma coisa é certa: depois que a teoria fez o seu corte analítico, depois que o barulho dos ossos se quebrando foi ouvido, já não é possível dar conta de como sabemos, como construímos, como vivemos a Boa Vida (...). A diferença entre teoria e prática não é mais um dado do que a diferença entre conteúdo e contexto, natureza e sociedade. O que se fez foi uma divisão. Mais exatamente, é uma unidade que foi fraturada pelo golpe de um poderoso martelo.

Latour sinaliza que, após o parcelamento dos saberes, torna-se quase impossível reconciliar os cacos. É esse paradigma que ensina a compreender a realidade mensurada e quantificada, fixa e previsível; e quanto mais a for, mais científico e racional será o conhecimento que se constrói nela.

Desse modo, a ciência vem nos quatro últimos séculos ganhando espaço e configurando uma supremacia na produção de saberes validados socialmente, tornando-se a referência, sobretudo em função do “progresso” que torna possível à sociedade (grandiosas pesquisas, avanços tecnológicos...). Nas nossas relações cotidianas rotineiramente vemos o reflexo de tal pensamento hegemônico quando nos deparamos com a naturalização de muitas práticas.

Todo o conhecimento produzido pela ciência moderna se fez em oposição ao saber vulgar, às opiniões, ao espontâneo, enfim, ao chamado senso comum. De acordo com Santos (1989), essa diferenciação entre ciência e senso comum constituiu a primeira ruptura epistemológica. Tal oposição se explicita nas palavras de Bachelard (apud SANTOS, 1989, p. 33):

A ciência se opõe absolutamente à opinião. O senso comum, o conhecimento vulgar, a sociologia espontânea, a experiência imediata, tudo são opiniões, formas de conhecimento falso com que é preciso romper para que se torne possível o conhecimento científico, racional e válido.

Pensando em novas trilhas é que se propõe o reencontro entre ciência e senso comum; a busca dos saberes que estão presentes nas falas, nos olhares, nos modos de agir e de viver. “Uma vez feita a ruptura epistemológica, o ato epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica” (SANTOS, 1989, p. 39).

Se aquilo que durante tanto tempo vem sendo invisibilizado pelo paradigma da modernidade também é conhecimento, faz-se necessário mergulhar de modo pleno em outras possibilidades lógicas, a fim de que seja possível desinvisibilizar tais modos de produção de saber e, assim, se apropriar das “mil maneiras de caça não autorizadas nas quais o cotidiano se inventa” (CERTEAU, 1994, p. 38).

De acordo com Von Foerster (1996, p. 71), “devemos compreender o que vemos, ou do contrário, não o vemos”. E quantas e infinitas coisas não são vistas porque não são compreendidas? Ampliar nossas compreensões se torna fundamental para que ampliemos nossas possibilidades de percepção. Os modos para fazê-lo se constituem no ir além das armadilhas da modernidade.

Alves (2008a) define alguns movimentos que possibilitam que as lógicas dos cotidianos sejam decifradas. O primeiro movimento, “o sentimento do mundo” (p. 18), trata da necessidade do mergulho nos cotidianos a fim de que se conheça muito mais do que a visão nos apresenta. Para pesquisar e sentir os cotidianos, é necessário ultrapassar tais limites e “executar um mergulho com todos os sentidos no que desejamos estudar” (p. 42).

O segundo movimento, “virar de ponta-cabeça” (p. 23), propõe uma subversão das teorias que já conhecemos, que já aprendemos. Tidas como verdades que se repetem na prática, o que se pretende nesse movimento é que as múltiplas fontes teóricas que se impõem sejam compreendidas como hipóteses que não se tencionam confirmar, na medida em que o cotidiano se reinventa a cada ação.

O terceiro movimento, “beber de todas as fontes” (p. 27) propõe a ampliação de nossas convicções sobre o que pode ser definido como fonte de conhecimento. Passa a ser de interesse tudo aquilo que é percebido, sentido, narrado. Assim como os cotidianos se tecem nas diferenças, naquilo que é heterogêneo, na diversidade de seus sujeitos e de suas relações, certamente também serão diversas as fontes que permitirão o estudo de sua complexidade.

O quarto movimento, “narrar a vida e literaturizar a ciência” (p. 30) propõe um novo modo de registrar, de escrever aquilo que é investigado de maneira a tornar esse registro uma verdadeira ponte entre os praticantes do cotidiano. Ao narrar, o escritor participa daquilo que narra. Considerando, portanto, a importância das narrativas nas pesquisas nos/dos cotidianos é que se destaca a multiplicidade de informações contidas nelas. Tais narrativas trazem para o hoje momentos e sentimentos que estiveram/estão presentes nas redes de sujeitos que compõem cada um dos praticantes de uma realidade cotidiana.

O quinto movimento, “eccem femina” (ALVES, 2008b, p. 46), trata da existência e dos sentimentos dos praticantes que saltam a cada acontecimento narrado e que, por tantas vezes, a objetividade de quem investiga não é capaz de expressar. Alves (p. 46) explica que “o que de fato interessa nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos são as pessoas, os praticantes”. Só é possível compreender aquilo que construímos pela nossa investigação por meio das linguagens dos outros. Von Foerster (1996, p. 73) cita que “a única maneira de ver-nos a nós mesmos é vermo-nos pelos olhos dos demais”.

Os movimentos descritos aqui são indispensáveis para a leitura do cotidiano, no cotidiano e com o cotidiano. São eles que despertam para a possibilidade de pensar trilhas diferentes para trajetórias que já cansamos de seguir. São táticas imperceptíveis ao que é visto de modo totalizante, mas extremamente significativas quando anunciadas pelas pistas e sinais específicos dos localismos. Assim, Ginzburg (1989, p. 144-145) destaca que “é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, basear-se em indícios imperceptíveis à maioria”.

Portanto, refletindo sobre as táticas cotidianamente criadas, sobre as reinvenções das permanências nas escolas, talvez fosse oportuno supor que algumas dessas reinvenções sejam capazes de oferecer pistas às questões mais globalmente difundidas na sociedade. Os debates promovidos sobre cidadania, democracia, subjetividade se reescrevem na vida cotidiana dos localismos. Santos (2008, p. 111) confirma essa ideia ao explicitar que “quanto mais globais os problemas, mais locais e mais multiplamente locais deverão ser as suas soluções”.

Trajetórias e redes na produção de sentidos

Pensar na escrita de um texto remete-nos a pensar no outro, em como dialogar com esses muitos/outros sujeitos que se engendram no seu/nosso fazer pedagógico e nos leva a pensar na formação que temosprecisamosqueremos (escrita na produção de sentidos tecidos em redes, por uma junção e contra a dicotomia do saber) para que a educação produza sentido na sociedade. Portanto, tecer comentários sobre a escrita de Nilda Alves nos eleva a um patamar criativo e dialógico para pensar que somos múltiplos e produzimos efeitos de causaconsequência no exercício da docência.

A formação profissional se dá em várias instâncias e a autora remete-nos a quatro momentos para pensar essa formação, que não se apresenta de forma linear, mas que constitui meio e lócus formadores que abrem uma discussão para além do que temos feito no cotidiano de nossas ações. Ao contrário da visão de formação inicial, a graduação tem sido considerada uma formação contínua, pois pensar numa instância inicial é desconsiderar os saberes contidos e existentes no docente antes de seu ingresso ao meio acadêmico. A prática pedagógica dá continuidade a essa formação, propiciando um meio de reflexão sobre o que temos considerado como meio efetivo de aprendizagem. No momento em que somos questionados pelo educando/a, somos levados a refletir sobre questões que movimentam e, de certa forma, desestabilizam o ser. Numa visão otimista dessa desestabilização, somos movidos a buscar respostas que nos fazem crescer, que nos formam como mediadores da aprendizagem, colocando-nos em outra posição: a de eterno aprendiz!

Na história da Educação, as lutas contínuas enfatizaram a valorização da profissão do educador; Nilda Alves (1998, p. 30) cita como os profissionais de ensino sabem falar da formação, contrapondo-se a uma lógica imperativa da década de 60, em que a educação era vista como preparação para mão de obra necessária no desenvolvimento do país. Ensino voltado ao tecnicismo e que contemplava o mecanicismo, as imposições e a tentativa de produzir o homem-máquina (incentivo à produtividade, com jornada de trabalho excessiva e pouca remuneração). Em meados da década de 1970 e início da década de 80, segundo a autora, o termo educador teve o sentido de um chamamento ético, fazendo-nos pensar a responsabilidade de nossa profissão, mas tem um sentido amplo, pois “todos os seres humanos que estão no mundo são educadores no contato com o outro” (ALVES, 1998, p. 30).

Nessa trajetória, muitas redes foram tecidas no fazerserviver profissional de ensino e as tessituras seguem uma lógica contrária ao termo construção, que tem uma perspectiva linear; a autora alerta que esse termo está carregado de significados e integrado por uma história. Pensa que nele domina um pensamento linear e hierarquizado, o que fez dele um termo estrutural forte. Assim, a autora nos leva a refletir:

Assumi (assumimos - referência a seu grupo de pesquisa), uma maneira de pensar oposta a tudo isso, ao incorporar (incorporarmos) as críticas ao termo que estavam sendo desenvolvidas. Dessa maneira, é possível acompanhar, nos últimos textos, o termo “construção” sendo substituído por “tessitura, tecer, tramar” etc., sem nenhuma certeza do que se vai escrevendo, mas se entendendo que é pelo menos mais próximo do que se quer dizer (ALVES, 1998, p. 17).

Refletir sobre as demais instâncias de formação pontua a ação do governo que idealiza e muitas vezes engessa a prática pedagógica, mas motiva a prática política, formando o profissional de ensino para o efetivo exercício da prática docente nas múltiplas esferas do saberfazer professor.

Considerando outro momento de formação, como as pesquisas em educação, em seu livro O sentido da escola, a autora abre uma reflexão sobre a educação numa perspectiva interdisciplinar, de articulação dos saberes. Traz para esse diálogo sua parceira de escritasefazeres, Regina Leite Garcia, e outros, como Silvio Gallo, Edgar Morin, Carlos Eduardo Ferraço (orientando da autora Nilda Alves e Professor do PPGE-UFES-ES). Este último descreve suas pesquisas em uma escola de Vitória-ES, em que discute o que os/as alunos/as trazem como demandas para o professor/a e de que forma o currículo contempla o que emerge no cotidiano dessas escolas.

Numa análise documental, a autora descreve as conquistas, perdas e lutas para que haja valorização dos profissionais de ensino. Desde a Lei nº 5.692/71 até as discussões da Anfope (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais em Educação), da nova LDB e do curso de Pedagogia de Angra dos Reis da UFF (Universidade Federal Fluminense), inúmeras possibilidades de pensar a formação ainda são discutidas; contemplando o termo “ainda não sei”, o fazer pedagógico tende a enraizar esse pensamento tecido em redes educativas que ampliam o pensamento para a tolerância, o respeito e a criatividade, dando abertura à essência do ser.

Tecer redes educativas

O conceito de rede educativa se configura na multiplicidade de tantas outras. É como uma “colcha de retalhos”, tecida em suas tramas por outras menores que se emendam em linhas tão tênues que nem sempre se percebe claramente onde se iniciam características de uma e onde terminam as de outras.

Essas redes permeiam a cotidianidade do indivíduo, conjecturando saberes e fazeres, estruturando suas formas de agir no e sobre o mundo. Surgem nas mais diversas perspectivas: familiar, do bairro, dos afetos e desafetos, no espaço escolar e em muitas outras.

A autora corrobora essa assertiva indicando que,

em seu viver cotidiano, os seres humanos se articulam em múltiplas redes educativas que formam e nas quais se formam – como cidadãos, trabalhadores, habitantes de espaçostempos diversos, criadores de conhecimentos e significações e de expressões artísticas, membros de coletivos vários (famílias, religiões, expressões nas mídias), usuários de processos midiáticos etc. (ALVES, 2012, p. 1).

Embora o conceito de rede educativa, seja entendido como conciso, é paradoxalmente flexível, no sentido em que permite que outros pressupostos, ou “retalhos daquela colcha”, venham a se incorporar diante dessa perspectiva. Dessa forma, a confluência dessas redes incide no potencial criativo e cognitivo de cada indivíduo, favorecendo escolhas e, consequentemente, seu desenvolvimento. Essas escolhas fomentam ideias políticas, as quais direcionam o caminhar do indivíduo à complexidade de suas relações.

A autora segue indicando que

os modos como dentrofora dessas redes nos relacionamos com nossos iguais e com os ‘outros’ vão impulsionar ideias de políticas. São essas relações que nos permitem criar e articular valores, éticas e estéticas diversificadas, apropriadas à complexidade das diversas redes (ALVES, 2012, p. 1).

Todo e qualquer indivíduo é atravessado não somente pelas ideias de políticas contidas em uma rede educativa com a qual mantém ou manteve vínculo, mas, sobretudo, à cultura imersa naquela. Assim, essas redes imprimem suas marcas em seus participantes, que as carregam consigo em seu discurso e forma de agir. E até mesmo as ideias que são veiculadas de modo velado em uma rede surgem, por meio do indivíduo, em momentos de espontaneidade, indicando sua corporificação e apropriação.

Ela afirma que

os membros de movimentos sociais e de grupos de interesses são, assim, permanentemente, em momentos diversos, os porta-vozes das possibilidades e necessidades dos praticantespensantes dos espaçostempos cotidianos nessas redes educativas. É desse modo que essas redes se explicitam como campo de lutas, expressando as relações entre praticantes de contextos políticos vários, entre eles e com suas expressões em contextos diversos (ALVES, 2012, p. 1).

O convívio diário entre indivíduos de redes diversas permite não somente a extensão das ideias contidas em uma rede, como também uma associação, compondo um panorama crítico que irá se somar a uma nova constituição dos pensamentos e ações do indivíduo.

Corroborando essa ideia, a autora indica que

a incorporação dessas redes do que se aprende fora da escola e que é trazido para escola como experiências vividas externamente, que passam a ser vividas internamente ¬ é que movimenta o ensino, renova o ensino. Porque o ensino não é renovado por decreto, ele é efetivamente renovado no concreto dele, no cotidiano dele, na compreensão daquele conjunto de professores de uma determinada escola, com o acesso que eles começam a ter às múltiplas redes educativas e, dessa forma, começam a fazer transformações. (...) Então são essas tais redes das quais nós participamos e que não estão fora da escola, elas estão dentro da escola, porque vão dentro das pessoas que vão à escola fazer a escola (ALVES, 2013, p. 12).

Dessa forma, os ensinamentos escolares são permeados, a todo momento, pelos atravessamentos cotidianos presentes na diversidade de redes educativas. Porém, devido ao peso de uma imposição curricular e àquilo que se considera conhecimento válido, acadêmico, percebe-se a dissociação entre aqueles elementos que poderiam, em sinergia, aprimorar os processos cognitivos.

Artefatos no cotidiano

Os artefatos presentes na sala de aula podem trazer muitas pistas para que se possa compreender o cotidiano das escolas. Esses artefatos técnico-curriculares abordados aqui podem ser configurados como crânios, caveiras, mapas, vídeos, televisão, computadores, celulares, entre outros, quando utilizados pelos discentes e docentes em sala de aula e assim, comungando com Alves (2011, p. 73), “uma possibilidade de busca a compreensão dos espaçostempos dos velhosnovos artefatos no que tange ao desenvolvimento dos processos curriculares”.

O contato de alunos e professores com esses artefatos evidentemente foram sempre variados e de certo modo influenciaram muito os modos de pensar, agir e entender o mundo, seja nas redes educativas de ontem como nas de hoje. Então passa a configurar a formação discentesdocentes em cada época, o que de certo modo é percebido nas ações desses atores no contexto das aulas em várias épocas da história. As potencialidades nessas ocasiões podem estar sob o efeito da influência advinda da apresentação e do uso desses artefatos, configurada na ideia de que, tradicionalmente, têm sido numerosas as tentativas de domesticar as potencialidades do cotidiano escolar, por meio de materiais curriculares formais, sejam eles os próprios guias, os livros didáticos, os materiais audiovisuais pré-produzidos (ALVES, 2004, p. 39-40).

Além disso, esses artefatos podem ser motivo de medo quando se tornam uma ameaça aos docentes e aos discentes no cotidiano escolar. Por exemplo, no caso dos docentes, quando estão diante das novas tecnologias; no caso dos discentes, quando são interpelados por avisos do tipo: “não será permitido o uso ou entrada de notebooks, jogos eletrônicos ou jogos diversos, celulares, MP3, MP4 e/ou instrumentos musicais”. Às vezes os professores deixam de usar certos artefatos tecnológicos simplesmente por não saber manuseá-los; por outro lado, os alunos têm como manuseá-los mas são impedidos de utilizá-los pelo fato de eles representarem um perigo à disciplina de sala de aula e/ou da escola.

O fato é que, em casa ou até na escola nos primeiros anos de idade, a criança é incentivada ao uso, por exemplo, do computador. Isso acontece pelo fato de o adulto achar uma “gracinha”; mas quando cresce esse mesmo artefato passa a ser um perigo à “moral e aos bons costumes” e assim quando esses jovens são crianças e possuem de nós uma grande dependência – física e emocional –, todos nós achamos “deliciosos” os avanços que fazem no uso de todos os artefatos culturais que lhes são colocados à disposição: do “uso” da língua (...), chegando ao computador (“ele hoje aprendeu a escrever seu nome no computador”; “ela aprendeu sozinha a fazer os dois joguinhos que já existem no computador lá de casa”).

A questão se complica – e muito – quando a criança cresce, vira jovem e domina, muito além do que sabemos, esses artefatos e começa a “falar outra língua”; a “querer fazer jogos violentos”, “ver filmes inconvenientes para a idade” (ALVES, 2011, p. 78-79).

Tudo isso faz do cotidiano um momento de pânico entre aqueles que pretendem manter a disciplina. A questão a ser refletida é: essas proibições resolvem e conseguem manter a ordem que alguém deseja? É possível deixar de fora, o que está fora – os conhecimentos e as significações criadas nas tantas redes com que se está em contato – do espaço escolar?

Para a autora, ocorre que estas significações e conhecimentos

entram nos espaçostempos escolares, o que permite a criação de outros conhecimentos e outras significações, o que provoca e faz acontecer o aprenderensinar em contato com os artefatos, com os sentimentos e os envolvidos no processo educativo. E isso faz nascer a reflexão sobre o currículo que se quer neste intento. Este não pode renegar as lutas constantes que vão se dar em práticasteorias que nelas estão se movimentando pela presença dos tantos grupos que por elas têm interesse (ALVES, 2011, p. 80).

Esses movimentos vão produzindo, então, outros modos de pensar, chamados “redes educativas”, tendo como interesse a reflexão sobre os processos de reprodução, transmissão e criação de conhecimentos e significações.

Alguns exemplos para melhor apresentar o problema: ninguém nasce racista – muitos se tornam racistas porque, a conta-gotas, as ideias que sustentam esse tipo de preconceito foram sendo “injetadas” em seus pensamentos e nas significações que dão ao mundo por ações e falas de seus próximos, por imagens que viram nos meios de comunicação, por textos que leram, por fatos que viram acontecer, por interpretações de pessoas mais velhas ou socialmente importantes. “Também desse modo, aprendemos a ser homofóbicos, considerando que diferentes modos de ser quanto à sexualidade são ‘expressões desviantes’, são ‘vícios’ ou ‘maus costumes’” (ALVES, 2011, p. 82).

É inegável que na atualidade os artefatos de registro de imagens estão à disposição com certa facilidade, o que permite um registro mais rápido dos movimentos produzidos no espaço escolar. A escola, assim, não tem como ficar à margem da utilização desses e de outros artefatos curriculares. Esse é um processo irreversível, pois segue uma “onda”, tendo em vista que crianças e jovens fazem uso dele de forma natural tanto fora como dentro da escola.

Nesse caso, a proibição desses artefatos passa a ser algo instigante e motivo de curiosidade. Não se trata de dizer que se deva estar submetido às demandas do “mau ou bom” uso que se faz desses objetos, mas, antes de tudo, saber articular “diálogos” em torno da utilidade diversa e possível deles nos espaçostempos possíveis e necessários. Ou seja, as redes de poderes, saberes e fazeres (ALVES, 2004, p. 82) “envolvem docentes e discentes se estes estão incluídos nelas; tecendo, destecendo e retecendo; se conseguem entender os diversos e vários caminhos de aprendizagens e de ensino”.

Referências

ALVES, Nilda. Trajetórias e redes na formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

______. ­­­­Sobre novos e velhos artefatos curriculares – suas relações com docentes, discentes e muitos outros. In: FERRAÇO, C. E. (org.). Currículo e educação básica: por entre redes de conhecimentos, imagens, narrativas, experiências e devires. Rio de Janeiro: Rovelle, 2001. p. 71-83.

______. (org.) Criar currículo no cotidiano. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2004.

______. Decifrando o pergaminho – os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2008a.

______. Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. In: ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas sobre redes de saberes. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2008b.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

FOERSTER, Heinz Von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In: SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora. Bauru: EDUSC, 2001.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. 2ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

______. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

Publicado em 9 de abril de 2013

Publicado em 09 de abril de 2013

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