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Vampirismo e vitalismo

Thales de Oliveira

Introdução

O mito do vampiro foi construído a partir de dois eixos: o da metafísica vitalista e o da experiência histórica. O primeiro eixo envolve a universalidade própria de tudo que é vivo, especialmente os mamíferos e, especialissimamente, os seres humanos. O segundo eixo enquadra tudo que é peculiar e, na maior parte das vezes, acidental na experiência única dos indivíduos humanos em sua história coletiva. Contudo, a divisão entre os dois eixos nem sempre é tão rígida. Trata-se mais de uma dicotomia metodológica do que de uma representação exata da natureza da dinâmica do mito do vampiro. Entre os elementos do primeiro eixo temos o caráter autótrofo da vida (a vida se alimenta de vida) e o caráter autótrofo de muitos animais (animais que se alimentam de animais), assim como o caráter autótrofo dos mamíferos (o filhote se alimenta do próprio genitor), em especial o ser humano.

O eixo da experiência histórica integra, entre seus elementos, a condição feminina em várias civilizações e os preconceitos decorrentes de tal condição: o lento desenvolvimento da medicina e os naturais tropeços pseudomédicos; a estrutura social baseada na escravidão, presente em várias culturas; a exacerbação do erotismo, própria da espécie humana, principalmente em culturas mais sofisticadas; a tradição judaico-cristã e sua doutrina sui generis acerca da natureza do bem e do mal; relativo isolamento, seguido da redescoberta, no século XVIII, da Europa Oriental pela Europa Ocidental, por conta do Tratado de Passarowitz; o movimento filosófico-literário conhecido como romantismo.

Em termos de metafísica vital, detenhamo-nos em algumas considerações acerca da essência da vida e da estrutura dos seres vivos em geral.

Todo ser vivo nasce de outro ser vivo. Eis um fato universal das ciências orgânicas. Não obstante todo o esforço dos bioquímicos, o ser humano jamais logrou criar matéria viva a partir de matéria não viva. Isso faz da vida um estranho fenômeno para nossa consciência ética: cada vida não se basta com a força vital que há em si. Ela precisa absorver a força vital de outra vida, mesmo que seja com violência e ao preço da fatalidade para esta. A vida é sempre transferência de vida, mesmo para os vegetais. E, no caso dos animais, é mais do que transferência: é roubo.

Vitalismo e história

O vampirismo é vitalista. Podemos considerar vitalista toda visão sobre a vida que a toma como sendo mais do que a mera soma de partes mecânicas. A vida repousaria sobre uma força vital cuja perda implica o rápido desfalecimento. Detenhamo-nos em três vitalismos fundamentais para a construção do atual mito do vampiro, pois suas culturas exercem profunda influência na cultura ocidental: o grego, o hebraico e o cristão.

Vitalismo grego

Os gregos eram vitalistas. Criam na ideia de que a vida é mantida por um princípio vital. A força em questão poderia ser intensificada a ponto de elevar o poder pessoal e a longevidade ou poderia ser enfraquecida, se diluída ou roubada por outro ser. E tal força estava associada ao sangue. O folclore grego é repleto de referências a seres demoníacos que devoraram a carne ou o sangue de suas vítimas. Muitas delas têm como origem as lendas de Strix e Lâmia, também associadas à morte de crianças no parto. Segundo a superstição, tais criaturas monstruosas apareciam algumas vezes para roubar a vida das crianças, cujo sangue era mais puro e vivificador. Bram Stoker utiliza essa referência cultural em Drácula, nos seguidores vampiros do conde romeno. Quando em sua prisão no castelo do conde, Jonathan Harker presencia o momento em que suas escravas são presenteadas com uma criança renascida, que saciaria a sede de sangue dessas criaturas durante aquela noite. O conde Drácula, assim, se livrava do cuidado de preservar a vida de seu hóspede prisioneiro para que ele pudesse servir de alimento apenas a ele durante o dia seguinte.

Rituais dionisíacos gregos – os gregos possuíam várias seitas, pois reverenciavam vários deuses, de acordo com as preferências religiosas de cada cidade-Estado. Um desses rituais era o culto ao deus Dionísio, o deus do vinho. Nas cerimônias, os adoradores bebiam o vinho como símbolo do sangue do deus, na expectativa de conseguir, com tal recurso mágico, adquirir as potências vitais do deus. A semelhança com o ritual cristão da eucaristia é gritante.

Filóstrato: a vida de Apolônio – esse episódio é narrado por volta do século I de nossa era. Está ali um relato de como o filósofo Apolônio salva um dos seus discípulos de um casamento com uma mulher vampira. Nessa história temos basicamente a conexão do vampirismo com o ilusionismo. A sedutora se utiliza de um mágico poder que inebria os sentidos da vítima, fazendo com que acredite até mesmo na existência de banquetes luxuosos onde há tão somente pedra e pó. Vale a pena lembrar do célebre mito de Eros e Psique como precursor sutil da ligação entre o belo e o monstruoso no imaginário humano. Psique era uma das três filhas de um rei de Mileto. Por sugestão de um oráculo, seu pai a enviou a um alto castelo para que permanecesse um tempo. Ao caminhar um pouco, encontrou uma suntuosa mansão que parecia ser ocupada por um deus. Ele o visitava dia e noite, mas não lhe mostrava o rosto, e desaparecia ao raiar do dia, de modo que ela nunca lhe via o rosto. Suas irmãs, que tinham inveja da beleza única de Psique, convenceram-na de que deveria ser algum monstro. Ela acreditou e, armada com uma faca, durante a noite decidiu usar seu lampião para iluminar as faces de Eros. Até que descobriu que ele não era um monstro, mas realmente um deus, o que a deixou tão ansiosa e eufórica que a fez derrubar o lampião nos ombros de Eros, ferindo-o com queimaduras e revelando sua desconfiança em relação às palavras dele, que já a havia alertado sobre a inveja de suas irmãs. Eros ficou profundamente magoado e a abandonou. O restante do mito é todo dedicado a mostrar os trabalhos e tarefas empreendidos por Psique no sentido de obter o perdão de seu amado. Esse mito mostra a relação ancestral que existe, no inconsciente humano, entre o amor e o temor, o sexo e a morte. Trata-se de uma narrativa de vampirismo reverso. Nas histórias de terror sexual, a pessoa dorme com um monstro pensando dormir com um belo e angélico ser. As irmãs invejosas sabiam desse temor, convencendo Psique sobre tal possibilidade real. Mas Psique estava amando um belo ser, pensando erroneamente tratar-se de um monstro usurpador.

E o que dizer do mito das sereias? Sua beleza única só era superada pelo fascínio de seu delicado canto, com o qual seduziam os navegantes até o ponto da hipnose; então os arrastavam para o fundo do mar, arrancando-lhes cruelmente a vida. Sedução, beleza e violência sempre foram bem próximas para a mentalidade grega.

Batalha de Maratona: há uma lenda sobre essa batalha, na qual os gregos impuseram uma dura lição aos exércitos persas que pretendiam incendiar Atenas. Maratona é o lugar do estreito onde a estratégia grega e a qualidade de seus soldados expulsaram os persas para o mar. Houve um momento, porém, em que o destino da batalha era imprevisível, pois a falange grega, até então compacta e impenetrável, cedeu e ficou relativamente na iminência da derrota perante o número maior e desproporcional do inimigo. Nesse momento, conta-se que coisas espantosas foram vistas: soldados gregos mortos em batalha retornaram sedentos de sangue inimigo, sendo decisivos no desequilíbrio para o lado helênico. Guardemos esse fato, pois – consciente ou inconscientemente – Bram Stoker o reteve em sua memória literária, o que resultou na figura do voivoda guerreiro cujo orgulho e a imensa sede de sangue o levam a retornar à vida com propósitos sombrios e ferozes.

Vitalismo hebraico

Os hebreus também era vitalistas sanguíneos. A frase "o sangue é a vida" é uma frase do Velho Testamento. Os pecados eram purificados aspergindo sangue puro de cordeiros. O sangue de Abel clama a Deus por vingança. E por que a proibição de comer o sangue do animal? A resposta está no versículo:

"Quanto a qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo. Pois a alma da carne está no sangue, e eu mesmo o pus para vós sobre o altar para fazer expiação pelas vossas almas, porque é o sangue que faz expiação pela alma [nele]. Foi por isso que eu disse aos filhos de Israel: ‘Nenhuma alma vossa deve comer sangue e nenhum residente forasteiro que reside no vosso meio deve comer sangue’. Quanto a qualquer homem dos filhos de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que caçando apanhe um animal selvático ou uma ave que se possa comer, neste caso tem de derramar seu sangue e cobri-lo com pó. Pois a alma de todo tipo de carne é seu sangue pela alma nele. Por conseguinte, eu disse aos filhos de Israel: ‘Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado [da vida]" (Lev 17, 10-14).

Vitalismo cristão

Os cristãos também eram vitalistas sanguíneos. Cristo diz: “Bebam, é o meu sangue, o sangue da vida”. “Se não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”; “quem beber o meu sangue tem a vida eterna”; “o meu sangue é verdadeira bebida”; “quem beber o meu sangue permanece em mim e eu, nele” (Jo 6, 53-56). E, quando morre, o povo diz: que o seu sangue caia sobre nossas cabeças.

“Sem derramamento de sangue, não há remissão” (Hb 9, 22).

Com o cristianismo, o mito do vampiro atinge sua máxima potencialidade imagética. O motivo reside na isomorfia simbólico-espiritual de ambos. Enquanto o cristianismo defende doar o sangue – primeiro Cristo se doa por nós; então nós passamos a negar a nós mesmos e, através da caridade, a doar nossa vida pelo próximo, pois, como afirma o versículo, "o verdadeiro amigo dá a vida pelos seus amigos" – o vampirismo aposta na recepção e sucção do sangue do outro. O cristão é altruísta e doa sua força vital na caridade. O vampiro é egoísta e se aproveita de tal caridade, de tal amor, e suga a força vital em seu abraço e beijo fatais. Mas ambos possuem algo em comum: a ideia de um vitalismo sanguíneo, a possibilidade de a vida de um salvar a vida do outro, o sangue de um resgatar o sangue do outro. O cristianismo é o vitalismo sanguíneo da luz; o vampirismo é o vitalismo sanguíneo das trevas. Mas ambos apostam na mesma ideia: "o sangue é a alma. O sangue é a vida".

Remontemos ao livro do Gênesis, em seu capítulo 9 na altura do versículo 3: “Tudo que se move e possui vida vos servirá de alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas. Mas não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue". Baseados nisso, todos os hebreus passaram a retirar todo o sangue do animal antes de comer sua carne. Mas o vampiro faz o contrário: ele bebe o sangue e descarta a carne. E o faz com seus próximos, os de sua espécie. Em Drácula, Bram Stoker descreve como primeiro sintoma da transformação em vampiro a falta de apetite por alimento sólido, seguido de muita sede, sede por sangue, pois sangue é vida.

Somente um vampiro pode aterrorizar um cristão. Apenas um cristão pode matar o vampiro. Há outro factum fundamental do vitalismo sanguíneo cristão: a ideia de que o sangue, sendo a alma do corpo, pode fazer com que o corpo ressuscite, retorne da morte para a vida. O vampirismo também aposta nessa ideia. Além disso, para o cristão, a única forma de ressurreição é a ressurreição pela carne, pois o corpo é a vida do espírito. Devido a isso, Cristo, ao retornar da mansão dos mortos, aparecendo para os apóstolos, entre os quais estava o cético Tomé, o faz em carne e osso, assim como com suas chagas da crucificação. Ele afirma para Tomé: “Toque nas chagas. Veja que não é um fantasma que fala agora”. Fica claro ali o poder do sangue de Cristo, capaz de vivificar seu próprio corpo e o corpo de seus irmãos na vida eterna. Mas a vida eterna cristã é bendita, pois é vida de livre doação. A vida eterna do vampiro é maldita, já que foi conquistada pelo roubo da vida e do sangue alheios. Além disso, o corpo do vampiro não possui batimentos cardíacos, o que indica que sua ressurreição é apenas relativa, uma cópia imperfeita e impura da ressurreição cristã, mas ainda assim uma cópia com certa semelhança na pura imagem.

Estrutura e dinâmica da mitologia vampírica

Tentemos compreender parte do dinamismo estrutural da fantástica história e evolução dos vampiros no imaginário universal. Enunciamos, provisoriamente, a seguinte lei, que chamaremos de “Lei da Absorção Arquetípica”: merótipos precisam ser isomórficos para serem absorvidos em um holótipo. O que isso quer dizer? Arquétipos são ideais imagéticos que ocorrem em nosso espírito cada vez que pensamos em uma determinada figura de coisa, ideia ou pessoa. Por exemplo: qual é o arquétipo do santo? Alguém que dá tudo de si e não espera nada em troca, jamais.

Merótipos (partes do arquétipo)

  • canibalismo
  • sexualismo: além do sexualismo, é muito comum o bissexualismo nas lendas sobre vampiros
  • feudalismo
  • anticristianismo
  • ilusionismo: outro ingrediente fundamental do vampiro e que o liga aos gregos: ilusionismo (mundo real e mundo das imagens). Simulação. O vampiro simula imagens dominando a força vital e a mente das vítimas, como é o canto das sereias. A vida de Apolônio, de Filóstrato, conta um episódio de vampirismo ilusionista.
  • Necromania: os seres humanos são a única espécie que reverencia os seus mortos. Talvez o fascínio pelo mito do vampiro – o morto que retorna com sede de vida – seja o último e mórbido capítulo de nossa longa história de culto aos mortos.

Etapas da mitopoiética vampírica

  • Fase protovampírica: rituais de sangue; crença de que o sangue é o núcleo da vida. Velho Testamento (sangue aspergido, não comer sangue, o clamor do sangue etc.), Nefilins (filhos de anjos e mortais)
  • Fase vampírica grega: vida de Apolônio por Filóstrato etc.
  • Fase vampírica medieval: lendas de mortos-vivos, lobisomens etc.
  • Fase vampírica gótica: vampiro como antítese de Cristo
  • Fase vampírica romântica: Goethe e seus contemporâneos
  • Fase vampírica contemporânea: existencialismo (o ser humano é o ser pelo qual o nada vem ao mundo - Jonathan Harker), neocristianismo, neorromantismo

História

  • Condessa de Sangue – Elisabeth Bathory foi uma condessa húngara do séc. XVI, filha de George de Bathory e sobrinha do príncipe András da Transilvânia. Nasceu em uma época em que os turcos tomaram a maior parte do território húngaro. Ficou conhecida por uma série de crimes horríveis, a maioria contra seus servos – que possuía em grande número. Era também obcecada pela beleza, e muito do que se conta a seu respeito envolve tortura e extração de sangue de jovens mulheres com o intuito de roubar-lhes a vitalidade e, deste modo, prolongar o frescor e o viço de sua própria juventude. Há relatos de uma prática muito frequente de sua natureza: as vítimas eram enjauladas em uma caixa de grades de metal, com as grandes de baixo formadas por lâminas afiadas. Elisabeth então as espetava, para que seu movimento provocasse profundos ferimentos, que sangravam muito. O sangue servia então de banho para a condessa, situada bem abaixo da jaula. Devido a esse e outros comportamentos, a Condessa de Sangue era também chamada de Condessa Drácula.
  • Relatos extraordinários – Arnold Paole teria sido mordido por um vampiro na Grécia e se tornado um vampiro. O caso foi investigado por muitos médicos da época.
  • Pseudomedicina: casos de licantropia, desconhecimento acerca dos processos de putrefação de cadáveres, ignorância sobre contágio de doenças.
  • Geografia histórica: Europa Oriental: a Europa é o "Ocidente", mas possui seu "Oriente", não só geográfico, mas cultural, devido ao domínio turco. Isso combina com a estranheza familiar do vampiro.

Leia também: Como os vampiros aparecem na literatura e nas artes.

Publicado em 9 de abril de 2013

Publicado em 09 de abril de 2013

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