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Professora de tudo

Mariana Cruz

Mesmo não sendo professora de Português, de tanto encontrar erros reincidentes nos textos de meus alunos, ultimamente, antes de pedir uma redação, escrevo no quadro as palavras proibidas de aparecerem no texto, tais como: “porrisso”; “derrepente”; “atravéz”; “talves”; “seje”; “mas” no lugar de mais e vice-versa; “mal” em vez de mau e vice-versa. Sobre a diferença entre “mais” e “mas” e “mal” e “mau” dou uma breve explicação. O curioso é que quando questiono a turma se eles sabem a diferença entre tais vocábulos, muitos respondem corretamente (inclusive os que cometem as trocas). Corrijo também quando algum deles dispara um “para mim fazer” e eu respondo com o clichê: “mim não faz, quem faz sou eu”. E, não raro, o próprio aluno que falou dessa forma sabe a maneira correta.

Mesmo não sendo professora de Matemática, já me peguei algumas vezes recorrendo a tal disciplina para respaldar alguma explicação. Como ocorreu esta semana ao colocar no quadro duas datas. Eles não entenderam a relação delas, a ponto de uma menina me perguntar se não estava errado o que tinha escrito. Tratava-se da data de nascimento e morte de Sócrates, que, por ser um filósofo da Antiguidade, nasceu, naturalmente, antes de Cristo. Eles não compreenderam como poderia o mestre de Platão ter nascido em 469 a.C. e morrido em 399 a.C. Fiz então uma analogia com os números negativos. Nem todos captaram, prossegui a explicação lançando mão de outra comparação: a graduação negativa de um termômetro. E lá se foram quase dez minutos de explicações matemáticas.

Mesmo não sendo professora de História, já interrompi a aula algumas vezes para dar aula de tal disciplina. Como quando algum jovem fala, para fazer graça, algo extremamente preconceituoso para um amigo no meio da aula. Certa vez um aluno chamou o outro jocosamente de “macaco”, por ser negro, ou outro que, ao constatar que o colega tinha feito algo errado (não lembro o quê), comentou gargalhando: “só podia ser preto mesmo!” (o mais absurdo é que, em ambas as vezes, o que falou também era negro). E tantas outras frases intolerantes que são ditas naturalmente em forma de “piadinhas”, como chamar o colega de “macumbeiro” por fazer parte de uma religião afro-brasileira. Nessas horas me vejo obrigada a fazer um pequeno desvio na matéria para mostrar a gravidade de reproduzir essa ideia de que tratar o preconceito de forma jocosa não é algo grave. Várias vezes me vi obrigada a levar notícias de jornais, ler textos sobre as mudanças conquistadas por movimentos sociais a fim de mostrar que determinadas coisas são sérias demais para serem tratadas com galhofa.

Mesmo não sendo professora de etiqueta, já me vi ensinando coisas básicas de bons modos aos meus alunos. Como quando os alunos estão falando entre si e, sem se dar conta, soltam um sonoro palavrão em sala de aula como se fosse a coisa mais normal. Mostro que aquele não é o local para isso. Não que eu não tolere palavrão, inclusive falo informalmente, mas há lugares e circunstâncias em que eles podem ser usados, outros não. Faço simplesmente para mostrar que a sala de aula é um lugar de respeito. Da mesma forma que repreendi um dia desses um aluno que cuspiu no chão a bala que estava chupando. Não pode. Mas, professora, a sala tá cheia de papel. Isso é uma sala de aula é não uma lixeira gigante. Peço para tirarem os pés nas cadeiras. Explico o óbvio, como uma mãe que fala para o filho tirar os pés com sapato do sofá. Atender o celular no meio da aula? Não pode. Jogar papel de bala ou bolinha de papel no chão também não. Lixo é para ser jogado no lixo. Nem no chão da sala de aula nem na rua. Muitos se justificam dizendo que não há lixeira (em algumas salas realmente não há). Que guardem no bolso ou em qualquer lugar, depois joguem no lixo.

Lidar com adolescentes é algo complicado em si, inclusive quando se trata de nossos próprios filhos. É uma fase de autoafirmação, de reconhecimento de si. Os jovens estão tentando se entender e querem engolir o mundo, querem testar seus limites e o dos outros. E muitos desconhecem diversas regras de convívio social.

No caso dos meus alunos, além de estudarem em uma escola pública que tem, apesar de todo o esforço da direção, todos os problemas típicos de grande parte delas (salas de aula precárias, falta de caneta pilot, carteiras quebradas, alunos matriculados tardiamente, estudantes nos corredores durante as aulas etc.), muitos chegam ao Ensino Médio despreparados: escrevem mal, não conseguem compreender o que leem e não sabem fazer as operações básicas de matemática. Claro que temos alunos muito bons, mas uma considerável parte apresenta sérias dificuldades. Muitas vezes isso faz com que o aluno chegue ao Ensino Médio com uma postura e um conhecimento não condizente com tal fase; daí, muitos de nós, professores, mesmo sem querer, temos que lecionar outras matérias, educá-los e até ensinar normas de higiene (como uma professora que me disse que sempre, no primeiro dia de aula, fala da importância de lavar as mãos depois de irem ao banheiro, antes das refeições etc.). Dessa forma, muitos professores se veem obrigados a sair do conhecido feudo de sua própria disciplina e se estender ao domínio das outras.

E, pensando bem, mesmo que os alunos achem que filosofia não serve para nada, que matemática é muito difícil e química é um saco, torço apenas para que se tornem pessoas de bem.

Publicado em 16 de abril de 2013

Publicado em 16 de abril de 2013

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