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Devemos ver com os olhos livres

Palmyra Baroni Nunes

Professora da Rede Pública do Rio de Janeiro, mestre em Linguística Aplicada

Vivemos numa sociedade impregnada de outras sociedades, de outros povos, de outras culturas, de tantos sotaques, de tantas crenças, de tantos contrastes. Somos semelhantes a colchas de retalhos, em que a junção de diferentes pedaços, grandes e pequenos, azuis e amarelos, contribui para formar uma unidade. Somos partes de muitos que vamos juntando e achando que somos nós mesmos, indivíduos individuais. No entanto, vamos clonando gestos, ideias, expressões, maneiras de vestir, falar, e podemos encontrar vários de nós andando por aí, na televisão, em jornais, do outro lado do mundo – e não somente na frente do espelho.

Assim, diante do complexo que nos tornamos, é extremamente difícil ter uma identidade definitiva, imutável e única. Então vivemos uma eterna crise por não sabermos exatamente quem somos; essa crise não está presente somente nos dias de hoje, quando a globalização se encarrega, entre outras coisas, de encurtar as distâncias entre os povos, promovendo um mundo sem muros. Essa crise vem desde o século passado ou, pelo menos, culmina com o movimento modernista, que buscava a identidade brasileira pela celebração do nosso falar cotidiano cheio de erros clássicos e de naturalidade poética de transmitir a realidade de um Brasil que já existia, mas que ainda precisava ser descoberto. Tal preocupação levou Oswald de Andrade a escrever que "Devemos ver com os olhos livres", livres de preconceitos e da vergonha de assumirmos nossas raízes e nossos problemas e encará-los com um olhar crítico, que ultrapasse as barreiras da mesmice. Essa liberdade consiste em buscar as nossas origens, os nossos valores, a nossa própria identidade. E volta a pergunta: que identidade será essa? Não encontraremos um Brasil puro, totalmente liberto de estrangeirismos, como era o sonho do poeta modernista, pois estes foram importados e podem ser encontrados em nosso vocábulo e já fazem parte de nossos hábitos. Encontraremos mais: um Brasil misturado, miscigenado, um Brasil de muitas nações, de muitas raças, de muitas cores; encontraremos um Brasil mutante, estrangeiro.

Quando redescobrirmos o Brasil que está diante de nossos olhos – e não o que existe só para inglês ver –, poderemos apalpá-lo, senti-lo, tornando-nos mais conscientes da nossa realidade de contrastes, de pobreza e de fartura, de lixo e de luxo, de guerra e de paz, de fome e de abundância, de instrução e de ignorância, de tristezas e de alegrias, que vão delineando nossas vidas, rascunhando e passando a limpo nossa história. Redescobrir o Brasil significa redescobrirmos a nós mesmos, deixando dissipar a fumaça que encobre nossos olhos e descobrindo que somos mesmo colchas de retalhos prontas para que novos pedaços, de diferentes tamanhos, sejam acrescentados; só vendo com os olhos livres é que conseguiremos isso.

Publicado em 30/04/2013

Publicado em 30 de abril de 2013

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