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O valor absoluto da boa vontade na fundamentação kantiana da moral
Renata Cristina Lopes Andrade
Doutoranda em Educação (Unesp-Marília), bolsista Capes
Kant, ao iniciar a primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes, chama a atenção para algo que pode possuir um valor “ilimitadamente bom”; diz ele: “Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 1980, p. 109). Queremos apontar algumas questões e considerações a respeito do que Kant chama de “bom sem limitação”.
Primeiro, segundo as teses kantianas, o que é que podemos entender por ilimitadamente bom?
Segundo, por que Kant, em sua investigação sobre a moralidade, recorre e, mais, parte de algo que deve ser bom sem limitação?
Terceiro ponto, decorrente da segunda questão: em que sentido há uma equivalência entre algo ilimitadamente bom com o valor moral das ações humanas, ou seja, com o moralmente bom?
Por fim, por que, segundo Kant, algo ilimitadamente bom é necessário à fundamentação da moralidade? Afinal, vale dizer que o objetivo primeiro da Filosofia Prática de Kant diz respeito aos fundamentos da moralidade, concentrando-se (exclusivamente) na fundamentação da moralidade, ou seja, na busca pelos fundamentos do agir moral, a parte pura do pensamento prático kantiano.
Kant chama de “puro” o que não se mescla com dados empíricos (1983, p. 24). O fundamento puro da moralidade deve ser completamente depurado de tudo que possa ser empírico, que, segundo Kant, é sempre contingente; a base (o fundamento) da conduta do homem não deve ficar à sorte de qualquer contingência. No entanto, vale observar que o pensamento prático de Kant não se resume à parte pura, não se resume apenas à possibilidade de leis morais puras que devem determinar a conduta do homem por motivos a priori. Há o segundo momento (o objetivo segundo da filosofia prática kantiana), que diz respeito à aplicabilidade, à efetivação, à realização e alcance do princípio moral. Eis a parte empírica do pensamento prático de Kant, que tratará especificamente “da moralidade aplicada ao Homem”, isto é, da divisão do dever-ser para o caso homem – ser racional e sensível. Encontramos a parte empírica da filosofia prática de Kant desenvolvida, por exemplo, nas obras A religião nos limites da simples razão; Metafísica dos costumes – doutrina do direito e doutrina da virtude; e Antropologia de um ponto de vista pragmático, bem como em suas preleções sobre Geografia e Educação.
Tratando-se de uma filosofia moral pura (a busca pelos princípios da ação detentora de valor moral), a principal tarefa do filósofo, senão a única, é “a busca e a fixação do princípio supremo da moralidade” (KANT, 1980, p. 106).
Podemos dizer que a busca pelo princípio supremo da moralidade se dá inicialmente na Fundamentação da metafísica dos costumes, mediante a análise dos juízos morais comuns, segundo a qual Kant chega aos conceitos de boa vontade, dever, imperativo categórico. A fixação e o desenvolvimento do princípio ocorrem a partir da 3ª seção da Fundamentação e na Crítica da razão prática. Porém é digno de nota enfatizar que a necessidade do fundamento puro prático, ou seja, uma lei que dite o que deve acontecer – dita todo o dever ser, já pode ser antevista desde a Dissertação de 1770, por exemplo, no §9, nota de rodapé.
Assim, devemos destacar que nas obras Fundamentação da metafísica dos costumes e Crítica da razão prática, que constituem a metafísica moral kantiana, a preocupação central (senão única) do filósofo é a busca e a fixação do fundamento moral, o qual deve ser puro e independente de se irá ocorrer (realizar-se) ou não – isso significa que nesse âmbito não há ainda a preocupação com a efetivação do princípio supremo da moral.
Klaudat (2010, p. 78-9) aponta que a filosofia prática tem, segundo Kant, uma parte que é “um sistema de conhecimento a priori de conceitos somente”, o qual é independente da experiência ou condições subjetivas (particulares) da natureza humana, significando uma metafísica dos costumes ou metafísica moral. Essa parte ou sistema de conhecimento a priori de conceitos é o que Terra (2003, p. 68) denomina “sistema da crítica” e explica que a Fundamentação da metafísica dos costumes e a Crítica da razão prática estariam no âmbito do sistema da crítica, vale dizer, da investigação, do exame, da análise reflexiva.
Como Kant aponta, não importa, no momento da busca pela pureza dos costumes, se a lei que deve determinar todo o dever ser (a lei moral pura – tudo aquilo que deve necessariamente acontecer caso haja preocupação com o valor moral da ação) irá realizar-se ou não, afinal a Ideia, segundo ele, não deve ser considerada quimérica caso haja obstáculos à sua realização.
Não podemos considerar uma ideia como quimérica e como um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua aplicação. Uma ideia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontrou na experiência (Sobre a Pedagogia, 444).
Essa busca e fixação do princípio prático fundamental se justifica, pois, segundo o filósofo, sem o fundamento puro, na ausência do princípio supremo da moralidade; sem o fio condutor ou norma suprema do exato julgamento moral, os próprios costumes tornar-se-iam venais e submetidos a toda sorte de corrupção e perversão (KANT, 1980, prefácio, p. 105).
Em pelo menos dois momentos (em particular), um na Fundamentação e outro na segunda Crítica, obras nas quais está o núcleo da filosofia prática pura de Kant, deparamo-nos com a essencial preocupação do filósofo ao tratar da possibilidade de uma filosofia prática pura. Vejamos.
Mesmo que nunca tenha havido ações que tivessem jorrado de tais fontes puras, a questão não é agora saber se isso ou aquilo acontece, mas sim que a razão por si mesma e independente de todos os fenômenos ordena o que deve acontecer (KANT, 1980, p. 120).
Trata-se aqui não do sucesso, mas somente da determinação da vontade e do fundamento determinante da máxima da mesma enquanto vontade livre. Pois se somente ante a razão pura a vontade é conforme às leis, então seja como for a execução da sua faculdade, quer ela surja ou não efetivamente segundo essas máximas da legislação de uma natureza possível, disso não se ocupa absolutamente a Crítica, que investiga aí se e como a razão pura pode ser prática, isto é, imediatamente determinante da vontade (KANT, 2002, p. 73).
Assim, evidenciamos que, primeiramente, há a necessidade e a elaboração de uma pura filosofia moral, segundo Kant, a Moral propriamente dita (1980, p. 103), a qual completamente purificada de tudo o que possa ser empírico, encontra, desse modo, nada além que o fundamento, isto é, uma legislação (um princípio supremo) que determine todo o dever ser, tudo o que deve acontecer do ponto de vista da moralidade – mesmo que não ocorra uma só vez.
No que diz respeito à Moral propriamente dita, segundo a concepção kantiana, entendemos que o conceito de boa vontade apresenta-se como central. Vamos, então, encarar esse conceito mediante as questões anteriormente elencadas, buscando compreender por que o conceito de boa vontade é essencial à compreensão da fundamentação da moralidade de Kant.
No que se refere à primeira questão – o que podemos entender por ilimitadamente bom – Kant diz que ilimitadamente bom apenas é a boa vontade: “que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 1980, p. 109).
De acordo com as elucidações de Kant, podemos entender o “bom sem limitação” como algo absolutamente bom, sem ressalva, incondicionalmente bom; isto significa que não há quaisquer fatores condicionantes, não há qualquer condição que indica ou impõe o valor de ser bom. Esse bom sem limitação, independente ou relativo a qualquer outro dado para possuir o valor de ser bom, esse bom específico de que nos fala Kant só pode ser, segundo ele, a boa vontade.
Kant, nos parágrafos iniciais da primeira seção da Fundamentação, de modo negativo (pela recusa daquilo que ela não é), mostra-nos que nada além, a não ser a boa vontade, pode ser dito bom sem limitação e a distingue de tudo aquilo que, frequentemente, chamamos Bom.
Nos dois primeiros parágrafos da primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes podemos observar que Kant, em primeiro lugar, fala sobre a boa vontade negativamente, ou seja, pela recusa daquilo que ela não é; desse modo, distingue-a, primeiramente, de todos os outros que frequentemente chamamos de bom (qualidades, atributos, predicados); no parágrafo seguinte, trata do que constitui a boa vontade e de onde precisamente reside o seu valor absoluto.
Frequentemente atribuímos o valor de ser bom às qualidades do espírito, às qualidades do temperamento, como a coragem, compaixão, moderação nas emoções, autodomínio, calma.
Tais atributos são, segundo Kant, certamente bons e muitas vezes parecem até constituir o valor íntimo de um sujeito; no entanto, afirma, estão muito distantes do que podemos denominar bom sem limitação. Isso se dá porque o que Kant chama ilimitadamente bom, como fora mencionado, apresenta-se isento de toda e qualquer condição limitante, é bom em si e por si mesmo, não apresentando qualquer condição ou ulterior fim para poder possuir o valor bom.
Bom em si e por si mesmo não parece ser o caso dos atributos do espírito ou do temperamento. Por exemplo: posso por vezes controlar minhas emoções e agir com calma e tranquilidade para sustentar uma mentira que, caso revelada, poderia me colocar em alguma situação desconfortável. Nesse caso, o meu atributo – ser calmo, meu autocontrole, poderia resultar em dissimulação. Posso também, mediante a minha audácia, roubar ou planejar roubos, falsificar provas de crimes ou documentos.
Nota-se que a bondade ou o valor de ser bom da coragem ou do autocontrole está diretamente ligada, ou seja, condicionada à bondade da vontade que guia essas qualidades; em suma, o valor de ser bom ou mau depende diretamente da vontade boa ou má que está na base do uso dos atributos de um indivíduo.
Nas palavras do filósofo:
Algumas qualidades são mesmo favoráveis a essa boa vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas não têm, todavia, nenhum valor íntimo absoluto; pelo contrário, pressupõem ainda e sempre uma boa vontade, a qual restringe a autoestima, que, aliás com razão, por elas se nutre, e não permite que as consideremos absolutamente boas (KANT, 1980, p. 109).
Assim, podemos perceber que os atributos e talentos sempre dependem diretamente de uma vontade que os guia; isso significa que dependem diretamente da bondade da vontade para poderem ser ditos bons; atributos e talentos do espírito ou do temperamento estão sempre condicionados à bondade da vontade para poder ter seu valor de bom.
Höffe (2005, p. 192) observa que todos os concorrentes de uma vontade boa, além de não serem simplesmente bons, podem ainda ser de “dois gumes”; permitindo ora o bem ora o mal, permitem tanto o uso bom e desejável quanto o uso mau e prejudicial; contrariamente é a vontade como boa ou má que decide qual de ambas as direções o uso adota.
Temos que, na ausência de uma boa vontade (o que é, segundo Kant, o único bem ilimitado), calma, coragem, autocontrole, podem também ser maus em alguns casos, dependendo diretamente para isso – sua bondade ou maldade – da vontade que comanda esses atributos.
Desse modo, Kant conclui que ilimitadamente bom apenas é a boa vontade. Se não houver a boa vontade para corrigir e guiar qualidades, predicados, dons, talentos, eles sempre estarão sujeitos a corrupções e perversões, podendo ser bem ou mal utilizados; isso significa, que a sua bondade depende (é condicionada) da vontade que os anima.
Sobre algo que possa ter o valor ilimitadamente bom temos que:
- atributos do espírito, qualidades do temperamento são sempre condicionados e para poder apresentar um valor dito bom deverão estar sob os princípios (diretamente ligados) de uma boa vontade, ou seja, sempre são condicionados à bondade da vontade que os anima para poderem ser ditos bons – não podem, portanto, ser ditos bons incondicionalmente;
- mister se faz os princípios duma boa vontade (a única ilimitadamente boa), pois sem os princípios de uma boa vontade todas as qualidades e atributos de um indivíduo ficam à sorte de corrupções e perversões, podendo em certas ocasiões até tornarem-se más (podem tornar-se más e prejudiciais se a vontade que haja de fazer uso deles não for uma vontade boa).
Consequentemente, as alternativas são só condicionadamente boas, e a condição para ser bom encontra-se na vontade boa, que por sua vez é boa não sobre a base de condições superiores, mas muito antes em si mesma (HÖFFE, 2005, p. 192).
Em contraste coma filosofia moral tradicional, o simplesmente bom não reside em um objeto supremo da vontade, mas na própria vontade boa (cf. KpV, V64).
De um modo ou de outro, os atributos da alma ou do temperamento são sempre condicionados, não podendo apresentar um valor absoluto – bom sem limitação; são somente condicionadamente bons, e a condição para ser bom reside na boa vontade, que por sua vez é boa não sob a base de nenhuma outra condição, mas muito antes em si mesma.
Como diz Kant: “A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer” (KANT, 1980, p. 110, grifo meu). Isso significa que a boa vontade é boa em si e por si mesma, considerada em si mesma, independente, por exemplo, de atingir a felicidade ou alcançar um objeto desejado. O que caracteriza esse valor de bom ilimitado não é propriamente esse ou aquele fim que se pode alcançar pela ação; é a própria vontade – boa em si própria –; eis o que caracteriza a incondicionalidade da boa vontade.
Depois de observar o que é que Kant nomeia ilimitadamente bom – somente a boa vontade – e por que somente ela (a boa vontade) pode ser boa sem reservas, ou seja, por que a boa vontade não está sujeita a nenhuma limitação, devemos agora tentar compreender por que Kant recorre e, mais, parte, em sua investigação sobre a moralidade (os fundamentos do agir moral), de algo que deve ser bom sem limitação.
Kant, em sua busca pelos fundamentos da moralidade (busca pelos fundamentos das exigências do agir moralmente), parte da análise dos juízos morais da razão vulgar, isto é, do conhecimento comum da moral. Sendo dados os juízos que os homens emitem sobre a moralidade na vida comum, Kant coloca a questão de saber quais são os princípios e fundamentos que os determinam.
Não é seu interesse introduzir na consciência comum novos valores e princípios, mas sim fundamentar os já existentes na razão vulgar. Segundo ele, a razão vulgar necessita de uma ciência (ciência a priori da conduta), não porém para ensinar ou mostrar algo novo, mas apenas para fundamentar e assegurar, impor ordem e estabilidade aos valores já presentes em toda consciência humana. Esse será o passo da razão comum para a filosofia moral.
Desse modo, partindo dos juízos morais da razão vulgar, o filósofo observa que para o senso comum aquilo que é moralmente bom deve ser algo ilimitadamente bom. Kant observa que o senso comum não toma os juízos morais como algo relativo.
Wittgenstein (1993, p. 38-39) ilustra essa correspondência entre o moralmente bom e o ilimitadamente bom com um exemplo. Suponha que alguém esteja jogando tênis e você diga: “Você não deve segurar a raquete assim, mas de outro jeito”; suponha que essa pessoa responda “Ok, não me importo em não jogar tão bem, apenas jogo por prazer”. Você poderia dizer simplesmente: “Então tudo bem”. Mas suponha que você dissesse algo como "Você não deve maltratar seus pais só porque eles estão velhos", e a pessoa respondesse: “Ok, não me importo em tratá-los bem”. Você poderia dizer "Então, tudo bem"? Certamente não; você diria “Você deve tratá-los bem”. Note que a própria idéia de moralidade supõe que se tome algo como um valor mais alto que condiciona nossas atitudes. O que podemos pensar de "mais alto" somente pode ser algo que é bom em todos os casos, o que é ilimitadamente bom, bom sem reservas.
Decorrente da segunda questão levantada – em uma investigação moral porque Kant parte de algo que deve ser bom sem limitação –, chegamos ao ponto da equivalência, presente na afirmação inaugural da primeira seção da Fundamentação (“ilimitadamente bom apenas é uma boa vontade”), entre algo ilimitadamente bom com o valor moral das ações humanas, ou seja, o moralmente bom. O parágrafo inicial traz consigo a afirmação oculta de que algo “ilimitadamente bom” significa algo “moralmente bom”, o que justifica em uma investigação moral a busca pelo ilimitadamente bom.
Por fim, a quarta questão levantada – por que, segundo Kant, algo ilimitadamente bom é necessário à fundamentação da moralidade – é justificada pela própria análise dos juízos morais da razão comum; nada podemos pensar de “mais alto” do que o ilimitadamente bom – o que, segundo Kant, somente é a boa vontade.
Por meio do bom sem reservas, o elemento moral é determinado e distinguido de todos os outros valores dito bons. Algo que seja ilimitadamente bom surge como condição necessária e suficiente para satisfazer a questão do moralmente bom.
Mesmo diante da mais desprovida das naturezas, mesmo diante dos desfavores do destino, mesmo que não restasse nenhuma intenção, qualidade, ou força, e somente afinal restasse a boa vontade (a única boa sem limitação), ela continuaria a ter o seu valor pleno – “continuaria brilhando como uma joia” (KANT, 1980, p. 110) –, como algo que em si mesmo tem o seu valor, sem restrição ou relativo ao que quer que seja – qualidades, predicados, inclinações, dons, tendências, intenções, utilidades, fins, benefícios, contextos, circunstâncias.
Eis a bondade ilimitada da boa vontade: algo que em si e por si própria tem o seu valor pleno, absoluto e incondicionado; nada além da própria vontade pode acrescentar ou determinar (ser condição) esse valor. Somente a vontade boa não é condicionada (por nada e em nenhum caso), porém deve ser a condição de tudo o mais que se queria enquanto bom.
Mediante a análise da razão moral comum realizada por Kant, para que haja o moralmente bom, não basta que seja apenas bom; é necessário que seja ilimitadamente bom, é preciso que seja bom sem reservas; e, segundo o filósofo, esse bom sem limites é somente uma coisa: a boa vontade.
Nesse sentido: moralmente bom é apenas a ação segundo a boa vontade.
Porém, para elucidar aquilo em que a boa vontade consiste, Kant é auxiliado por outro conceito: o conceito de dever. Segundo ele , o conceito de uma boa vontade já reside no senso comum; não precisa, portanto, ser ensinado, mas há a necessidade de esclarecimentos. Para esclarecer o que envolve o conceito de boa vontade, diz Kant, vamos encarar o conceito de dever, que contém em si o conceito de uma boa vontade.
Tendo em vista as condições subjetivas do homem, isto é, certas particularidades, limitações, inclinações, desejos próprios (a constituição sensível do homem), temos que a boa vontade não se encontra, para o homem, na base de sua conduta (necessariamente) enquanto única e absoluta. Isso significa que, em função dos nossos desejos particulares, nem sempre fazemos o que reconhecemos ser o que a boa vontade faria; a partir desse ponto já podemos antever a necessidade do dever.
Ora, se a minha vontade não é naturalmente boa, se em muitos casos faço (por vezes em favor dos meus anseios particulares) aquilo que reconheço não ser correspondente ao que uma boa vontade faria, há então a necessidade do dever. A ação por dever é o que torna possível que a vontade humana (que às vezes pode ser boa e em outros momentos pode ser má) faça precisamente o que uma boa vontade realizaria.
O dever conduz a vontade do homem (ser sensível e racional) e ordena seguir os princípios de uma boa vontade; então, para a vontade humana há a necessidade do dever – para que o homem seja determinado (movido) pela boa vontade, a única ilimitadamente boa, vale dizer, moralmente boa.
Somente há sentido falar em dever àqueles indivíduos cuja vontade não é de antemão necessariamente boa; eis o caso do homem. Para tal ser, ou seja, um ser finito (o homem), o dever se faz necessário ao lado de sua vontade para:
- fazer da vontade do homem uma vontade boa; e
- ordenar o indivíduo a agir (seguir) segundo a boa vontade.
Vale observar que, na medida em que Kant busca os fundamentos da moralidade com o auxílio do conceito de dever, ele persegue o interesse de compreender o homem como ser moral.
Assim, os conceitos de dever e boa vontade são complementares, isto é, dever e boa vontade estão contidos um no outro – o dever, além de fazer da vontade humana uma vontade absolutamente boa, ordenará seguir essa boa vontade. No entanto, evidentemente, dever e boa vontade não são uma e a mesma coisa, não possuem o mesmo alcance conceitual, visto que o conceito de boa vontade contém o de dever unicamente sob a ressalva de certas limitações e obstáculos particulares.
Uma vez elucidado o que consiste a boa vontade no interior da fundamentação moral kantiana, bem como postas algumas considerações sobre sua relação com o conceito de dever, resta-nos, no intuito de compreender a busca (e o desenvolvimento) de Kant pelo princípio supremo da moral – os fundamentos da ação detentora de valor moral, averiguar:
- o que, precisamente, caracteriza a ação por dever; e
- por que exatamente, segundo Kant, apenas a ação por dever é a única ação com valor moral.
Eis questões que ficam em aberto para um próximo estudo.
Referências
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DELBOS, V. La philosophie pratique de Kant. 3ª ed. Paris: PUF, 1969.
FERRO, M.; TAVARES, M. Análise da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Lisboa: Presença, 1997.
HÖFFE, O. Introduction à la philosophie pratique de Kant. Albeuvre: Castella, 1985.
_______. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes. 2005.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
________. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
________. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontella. 2ª ed. Piracicaba: Unimep. 1999.
KLAUDAT, A. Os princípios de aplicação da metafísica dos costumes de Kant. Revista Étic@. Florianópolis, v. 9, nº 1, p. 77-87, 2010.
TERRA, R. Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003.
WITTGENSTEIN, L. A lecture on ethics. In: KLAGGE; NORDMANN (ed.). Philosophical Occasions, 1912-1951. Indianapolis and Cambridge: Hackett Publishing, 1993.
Publicado em 7 de maio de 2013
Publicado em 07 de maio de 2013
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