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Hermes, a metáfora do mensageiro na interpretação

Alexandre Amorim

O termo hermenêutica tem por etimologia a palavra grega hermeneutike, com o significado de “a arte de interpretar”. No uso diário, passou a ter seu sentido ligado à interpretação de textos. A composição do termo está ligada ao deus Hermes, da mitologia grega. Protetor dos rebanhos em sua função primordial, Hermes também é considerado emissário dos deuses e condutor das almas. É notável que estas duas últimas funções estejam ligadas ao mesmo deus: se Hermes é considerado um intérprete dos desejos olímpicos, e serve assim como intermediário entre deuses e mortais, ele também é um condutor das almas humanas para o Hades ou para o Olimpo – ou seja, cabe ao deus conduzir o homem em sua moral e em seu destino, mesmo que ainda caiba a esse homem o arbítrio de seus atos.

Pela analogia com o cristianismo, em que o dito filho de Deus afirma ser “o bom pastor” (como afirma o apóstolo João em seu evangelho), a metáfora do rebanho torna-se um complemento para a relação de Hermes com a humanidade. A comparação entre o deus grego e o messias cristão parece se estender e se firmar em suas representações como deuses próximos ao homem quando verificamos que Hermes, ao sacrificar novilhas aos deuses e a si mesmo, se fez deus, como Jesus afirmava que o era, sacrificando-se como o cordeiro de Deus. Ambos são deuses misturados aos homens, ambos têm a humanidade como companhia constante. Mas a relação mais significativa entre os dois está na palavra: se Jesus afirmava que era o próprio verbo (“e o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai”), Hermes era o que trazia a palavra divina aos homens.

Como se vê, desde o berço da civilização ocidental é necessária a presença de um intermediário para que haja a compreensão e a interpretação da vontade dos deuses. Isto é, para que haja interpretação do divino, é suposto que haja uma vontade expressa dos deuses, um intermediário dessa vontade e um receptor da vontade intermediada. Com a conquista do Ocidente pela ideologia cristã, passou-se a tomar essa vontade divina como verdade absoluta, como a “palavra de Deus”. O termo hermenêutica é, inclusive, largamente utilizado como interpretação de textos religiosos e, por extensão, de textos jurídicos – textos elaborados para servir como lei, o que também pode ser considerado uma expressão da verdade. Pode-se afirmar, por senso comum, que a hermenêutica passou a ser o meio pelo qual se chega à verdade dos textos.

No entanto, é interessante que a hermenêutica se volte para sua origem etimológica, que Hermes seja visto pelo seu perfil de companheiro e que a interpretação deixe de ser uma ferramenta de busca e realização de uma verdade absoluta para ser um ato de convivência com o que foi expresso. Hermes não pode mais ser visto apenas como mensageiro dos deuses – o que traz a mensagem e a interpreta para que o homem a cumpra –, mas como a companhia prazerosa do homem, o que tem “prazer especial em servir de companhia aos mortais” e que “dá ouvidos àqueles que estima” (como bem observou Junito de Souza Brandão, Homero assim definiu o deus mensageiro, no canto XXIV da Ilíada). Hermes não é mais o que interpreta, mas a representação da possibilidade do homem de interpretar. A vontade expressa se torna mensagem a ser compreendida e interpretada pelo homem em seu mundo e em seu tempo. A arte de interpretar, agora, também faz parte do arbítrio: a escolha moral – e, portanto, a interpretação do seu destino – está nas mãos do homem. A hermenêutica, como aqui se propõe, deixa de ser um manual e passa a ser uma ferramenta crítica.

No entanto, a expressão e o intermediário dela continuam, obviamente, presentes. Em termos literários, a vontade expressa é traduzida como o texto de ficção em si, e o intermediário é composto pelo que podemos chamar de o “entorno” do texto: uma complexa trama que envolve desde o próprio objeto contentor do texto – o livro – até a cristalização de uma interpretação daquele texto – o cânone acadêmico, passando pela didática e pelo senso comum, que carregam em si uma opinião formada, não se sabe muito bem como e nem por quem. Note-se que o próprio livro é formado por elementos desse entorno: as abas do livro trazem teorias e resumos da obra e comumente encontra-se um prólogo explicativo do texto a ser lido. Se o texto é a expressão de algo a ser interpretado, dificilmente essa expressão chegará ao leitor sem intermediação; por isso, para que o leitor possa empregar suas funções perceptiva, crítica e criadora, é necessário que o leitor se resguarde de qualquer obediência cega ao mensageiro.

Esse fenômeno da recepção estética requer análise própria, visto que seus componentes parecem se confundir: o texto em si é vontade expressa do seu autor e ao mesmo tempo resulta da interpretação desse autor sobre alguma coisa, enquanto o leitor é intérprete do texto e elaborador de uma nova expressão por meio dessa interpretação. A individualidade inerente à interpretação – isto é, a multiplicidade infinita de formas com que ela ocorre – impede uma análise única de sua elaboração, mas sugere um modus operandi: o leitor não pode prescindir da vontade expressa (o texto) para que a crítica seja realizada; entretanto, a própria hermenêutica determina que a interpretação tenda a escapar dessa conexão para dar espaço ao gesto criador. Perceber, criticar e criar são processos circulares durante a leitura de um texto; dessa forma, são processos constantes e recorrentes dentro do fenômeno da hermenêutica.

Para que possamos analisar o fenômeno da interpretação, é necessário voltar as associações de Hermes e da hermenêutica a um processo ligado intimamente à palavra. Se o deus mensageiro foi um elo entre a vontade expressa dos deuses do Olimpo e os homens, essa ligação se deu mediante a palavra, sendo ele, muito a propósito, o “deus mensageiro”. A hermenêutica aplicada ao meio literário, levando em conta que a vontade expressa não provém mais dos deuses, mas de textos ficcionais, torna a palavra sua ferramenta por excelência. A palavra é a expressão da existência, porque é o resultado da ideia do homem como ser e como estar no mundo.

Para demonstrá-lo, nada melhor do que palavras, em sua função poética:

A word is dead
when it is said,
some say.
I say it just
begins to live
that day

Poema de Emily Dickinson retirado do sítio http://www.bartleby.com/113/. “Uma palavra está morta quando é dita, alguns dizem. Eu digo que começou a viver naquele momento” (em tradução literal minha).

Dickinson soube demonstrar as importâncias concomitantes da palavra porque observou sua expressão e sua recepção. São funções complementares, que dão vida à palavra, e são também cíclicas, mantendo a palavra viva. Sem o ciclo expressão/recepção, aí sim, a palavra está morta. Mas a vida da palavra não assegura sua imutabilidade. Ao contrário, a expressão e a recepção são praticamente a garantia de sua metamorfose, justamente porque a palavra é a expressão do que está em contínua mutação. A palavra – e muito particularmente a palavra de ficção – é a ligação entre o ser e o estar.

Publicado em 15 de janeiro de 2013

Publicado em 15 de janeiro de 2013

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