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O lúdico e a infância em Manoel de Barros

Rodrigo da Costa Araujo

Professor de Literatura infantojuvenil, mestre em Ciência da Arte e doutorando em Literatura Comparada (UFF)

A infância da palavra já vem com o primitivismo das origens (Manoel de Barros. 2010, p. 458).

Da infância e da escrita

A infância na poesia de Manoel de Barros admite um caráter lúdico e inovador. Lúdico por escrever com a inocência e a felicidade do discurso infantil, por incorporar seu próprio personagem para retratar um tempo de menino cuja memória está internalizada no jogo discursivo do poeta e também inovador por apresentar uma escrita intrigante quando desconstrói termos simples e primitivos para construir o “novo”. Em cada palavra inventada é destacável a recordação como volta a um passado, fazendo da poesia lugar da esfera lúdica, remetendo-nos ainda a uma complexidade de indagações sobre a memória e o ato de escrever.

Criador de um léxico envolvente e responsável por deslocamentos discursivos, sua obra (re)apresenta uma linguagem dissimulada, que vira os sentidos pelo avesso – num bom sentido –, transforma a ordem dos elementos da natureza, demonstrando, de maneira implícita, irreverência à norma padrão. Utilizando a metalinguagem, Manoel de Barros compõe seus poemas com versos curtos, em que o insólito, o que não é habitual a nós, faz fruir no seu discurso lírico, reforçando algumas características da modernidade e a paixão pela escrita. Na poética barriana “há uma ressonância verbal que encanta. Esse encantamento é o que o poeta procura” (BARBOSA, 2003, p. 17). Para alcançar, pois, esse encantamento, busca-se o criançamento da palavra, fruto de imagens trazidas no artista, num retorno insistente à infância.

A linguagem infantil, por outro ângulo, surge também como instrumento encantatório para arquitetar a obra do poeta, e a metáfora da criança é muitas vezes quem lhe dá a “semente da palavra”. Operando com essa “semente”, a poesia procura criar casamentos com a gramática surreal, aquela fora da realidade da qual estamos habituados a lidar no cotidiano. É por essa e outras razões que, para o leitor incorporar-se à sua poesia, como ele mesmo propõe, deve assumir uma única opção: o caminho da sensibilidade.

Manoel de Barros vê na criança uma parceria perfeita, e não é à toa que ela é sugerida como “doador de fonte” para a sua poética. O que interessa a ele é a linguagem da infância, a espontaneidade desse gesto para a construção de metáforas e a criação de formas linguísticas manifestadas por influência desse ser inquieto, inventivo e transgressor.

Seu trabalho em parceria com a criança o distancia da compreensão de um “ser ingênuo”, pois, se assim o fosse, não serviria como seu “parceiro”, “colaborador” e “doador” no processo de construção lírica. Nesse labor escritural, portanto, entrelaçam-se os fios condutores responsáveis por compor sua poética; reforça-se, de alguma maneira, a memória da ”criança-parceiro”, da imagem de criança que ele tanto busca e tece no seu jogo poético da maneira mais lúdica. De uma forma ou de outra, nessa dissimulação discursiva, Manoel de Barros reforça pela memória que nunca esqueceu as lembranças de ser criança. Pela poesia, retoma uma infância cuja linguagem é a sua referência. Seu prazer é brincar com as palavras para, a partir daí, alcançar o “grau de brinquedo”, a “língua de faz de conta”. E, por não ter sido um menino peralta, ele “faz peraltagens com as palavras” e “enche os vazios” com elas. O poema, pelas máscaras do sujeito, alude às suas “raízes crianceiras, a visão comungante e oblíqua das coisas”; opta, portanto, pela inversão da sintaxe usual, ou seja, tem preferência pela recriação da língua para se comunicar com as pessoas.

Manoel de Barros assume criativamente a ousadia de brincar com os sentidos; apresenta-se como uma criança que não se cansa de descobrir e buscar o “novo”, numa aventura constante. As percepções da infância, nesse caso, comandam o seu poema, pois crianças “são atores” capazes de se manifestar pela palavra e pela imaginação. Ao traçar essas proximidades da criança com a poesia vamos percebendo, além do recurso da metalinguagem, certo reforço do discurso imaginário e memorialístico. Se as palavras têm poder de encantar e emocionar o sujeito poético num retorno ao passado, ela também rememora a infância para assegurar sua presença na obra e para formar o repertório vocabular e imagético, pois “crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas” (BARROS, 1990, p. 256).

Carregar “água na peneira”, conforme fazem os poetas, faz parte do mundo em que Manoel de Barros penetra. Jogar “pedrinhas no bom senso” permite a ele usar a infância da palavra para pautar sua imaginação singela, porém altamente inspiradora e voltada para o exercício de “transver”, possibilitando-o des-aprender, des-ler, enfim, reensinar a ler um mundo que o apresente à virgindade das palavras e dos sentidos.

Buscando esses intuitos e por meio de vários mascaramentos, o poeta é múltiplo em significados. Os movimentos criados pelos sujeitos líricos, em suas palavras, encantam, de maneira bastante lúdica, cada leitor que mergulha em suas obras e percebe nelas uma forma diferente de se fazer poesia, de reconstruir para construir algo “novo”.

Como se vê, a presença da figura da criança na obra barriana é notória. Em sua lírica, situada dentro da esfera lúdica, é destacável a recordação de um passado distante que encaminha o poeta a uma dimensão inventiva e descobridora, permitindo-lhe múltiplas e surpreendentes linguagens que o transportam para esse universo extremamente motivador e poético.

A poética barriana, repleta de neologismos, apresenta uma diversidade de vocábulos explorados pelo próprio autor quando reinventa a linguagem e aproveita a inocência da palavra para transmitir encantamento ao seu leitor. Uma das características dos seus textos é o antropomorfismo, atribuindo formas humanas às entidades abstratas, a seres não humanos, como homens transfigurados em pedra, emoções humanas dadas a uma formiga, por exemplo. Seu estilo de escrever mostra, portanto, intimidade linguística suficiente para tal, um caráter ilógico que vem como consequência da rememoração da infância, da necessidade de ser criança.

Para atingir o “criançamento” do idioma, o poeta usa a “sintaxe torta das crianças, dos bêbedos e dos loucos”, desarrumando sintaticamente a palavra; de maneira criativa, busca o “desaprender pra chegar ao grau da infância”, apreendendo em si esse olhar da infância, porque ele, como o ser criativo, é quem pode ser o mensageiro desse universo poético e mirabolante. Nessas manifestações, jogos e figuras de linguagem, Manoel de Barros vê a poesia como espécie de “loucura da palavra”, não assumindo, contudo, o compromisso com as regras padronizadas da nossa língua. Seu trabalho é em defesa da “desexplicação”, de palavras não convencionais, e encaminha-se a “um movimento consciente ao contrário, em que o prefixo ‘des’ – o mais utilizado em sua obra – evidencia essa inversão: “desfunção”, “descomeço”, “desimportância”, “despalavra”” (CAMPOS, 2010, p. 223).

O autor de Gramática Expositiva do chão teve uma infância de brincadeira com “criaturas” como sapos, formigas, lesmas etc.; escreve seus versos curtos porque usa a mesma inocência de criança, quando brincava com essas “criaturas”. Hoje ele se vê sustentado pela “entoação” da palavra para compor a sua poesia e, por ter crescido em lugar onde não tinha brinquedo pronto, “brincava de palavras descomparadas. Assim: céu/sol têm três letras. O inseto é maior. Tem seis letras. Parecia, mas era despropósito”. Brincava também de brinquedos fabricados por ele mesmo, como boizinhos de osso, bolas de meia e automóveis de lata que, ao longo dos tempos, vêm sendo suprimidos do mundo infantil, mas, na visão do poeta, são de suma importância para desenvolver a capacidade criativa da criança e por serem “medidos pelo encantamento”.

Barros diz que os brinquedos fabricados pelo homem, como bicicleta, avião, automóveis ou nave espacial, viram sucatas e são produzidos para que a criança seja “brincada por eles”. Os brinquedos sofisticados, por sua vez, acomodam o seu poder de imaginação e matam sua liberdade criativa, enquanto enriquecem a indústria. Por esse viés, a participação e o envolvimento da criança assumem marcas que produzem o verdadeiro sentido na sua obra. Parte do lúdico que acontece em sua poética está intimamente imbricada na sua memória e maneira de ser criança. Humor e criatividade não faltam em suas poesias “molecadas pelo idioma manoelês”, que alcançam o criançamento em um universo arejadamente poético. A imagem da criança, portanto, não é uma simples decoração, pois só ela oferece referenciais para esse repertório imagético e reflexivo.

Assim, após vários questionamentos a respeito da infância na poética de Manoel de Barros, reafirmamos que a espontaneidade de ser criança, em intercâmbio com o poeta pantaneiro, e, pela sua naturalidade infantil, é responsável por encaminhar, de maneira lúdica, ao universo imaculado da poesia e da memória.

Do fragmento e da poesia

há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
Retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras
(Manoel de Barros. O guardador de águas, 1989, p. 51).

Manoel de Barros manuseia uma escritura poética induzindo o leitor nada habituado a um estilo contemporâneo inovador e a entrar para o mundo da literatura e construir, de maneira sensível, uma nova visão de leitura pelas suas poesias, marcadamente fragmentadas. O poeta, então, delicadamente, “vira pelo avesso” a maneira padronizada de se fazer poesia, provando, por meio de sua “renovação poética”, a possibilidade de colher neologismos das palavras e aplicá-los a uma linguagem em que também se podem combinar ritmos e significados.

Na poética barriana, torna-se evidente o extermínio da chamada “lógica”, característica de determinado discurso e maneira de pensar. Os fragmentos e o desprezo pela pontuação correspondem à revelação de uma liberdade poética em avanço constante, na medida em que o leitor, curioso, revela interesse para manejar uma escritura diferente. Só assim veremos a desmontagem de um pensamento convencional, que fazia da linguagem e da escrita um modelo decorativo que deveria ser respeitado e obedecido. Apesar dessas transformações, “a composição fragmentária tende a assustar os leitores que estão habituados a imagens e estilos tradicionais” (ROSENTHAL, 1975, p. 156).

O poema escrito por fragmentos requer uma leitura avançada, por parte daquele que, na maioria das vezes, não dá conta de o “incorporar” na leitura, expressão empregada pelo poeta em concordância com que “poesia não é para se entender”. Mesmo quando tudo se apresenta embaçado, impreciso e transgressor na construção poética, a sensibilidade assume o passo principal para incorporá-la ao seu leitor.

Por esse viés, a poesia fragmentada apresenta-se com múltiplas características: uma sábia desorganização da sintaxe, mas cuidadosamente organizada em versos que fornece amplos sentidos. De acordo com Rodrigo da Costa Araujo (2010), o fragmento é resultado de montagens em que ficam evidentes a descontinuidade e o inacabado. A estética da desconstrução retoma a estética do fragmento. A obra fragmentária coloca-se sob a égide do inacabado e de alguma incoerência apenas aparente, assimilando a escritura e a leitura ao não acabado e à impossibilidade de reconhecer conjuntos formais ou ideológicos. No fragmento, sobra tudo, exceto o essencial. Compõe um texto repleto de pequenas partes, como uma colcha de retalhos ou um mosaico.

Na poesia de Manoel de Barros, o que chama a atenção, de imediato, são as palavras que, livremente soltas, se apresentam num imenso papel em branco com apenas um verso ou dois que, por seu aspecto fragmentário, aparenta um acabamento poético bem singular diante do leitor que não está habituado a essa forma de escritura.

Manoel de Barros é um esteta e, por exibir seus fragmentos com muita autenticidade, abre espaço para a “ficcionalização da vida”; proporciona a desmontagem do “oral”, caminha em proveito único da escritura poética. Essa preocupação com o fragmentário é, pois, mania constante em sua produção, a qual está submetida às suas poesias que surgem estilhaçadas, recortadas pelas metáforas, cuja tendência marca presença na sua escrita. Embora suas poesias surjam sob aparência confusa e meio desordenada, na verdade assumem consequências de um caminho que o próprio poeta encontra para se comunicar com certa lógica a sua visão de mundo.

Segundo a pesquisadora Goiandira Camargo, em A Poética do Fragmentário,

da colisão entre os fragmentos surgem as centelhas do poético, os sortilégios da poesia. O procedimento do poeta desorganiza o código comum, cria obstáculos para a leitura, estabelecendo novas relações entre as palavras que privilegiam o novo e instauram uma linguagem ambígua, precária e evanescente, enraizada na desestabilização do sentido (CAMARGO, 1996, p. 235).

Portanto, reforçando a fragmentação, a linguagem poética em Manoel de Barros, ao criar novas hierarquias, faz aumentar a dificuldade da percepção, levando o leitor a ter acesso ao desconhecido, singularizando a visão das coisas; pelas suas rupturas, o verso não se completa sintática e semanticamente. Nesse sentido, quando Manoel de Barros foi questionado sobre esse processo de suas poesias, respondeu: “Cada vez mais. O próprio mundo está obrigando a gente a se fragmentar. É uma falta de unidade, o homem moderno não tem mais as grandes unidades, como Deus. A gente não tem crença em mais nada, aliás, toda a arte deste século é fragmentada, ninguém defende mais uma ideologia, hoje. O homem não acredita mais nem em ideologia, as religiões estão se fragmentando, o protestantismo está se dividindo, o cristianismo...” (BARROS, apud CAMPOS, 2010, p. 160).

Enfim, uma das obsessões do poeta é a preocupação com o fragmentário. Dominar, pois, a ruptura é subir a um outro nível de existência. A poética de Barros ganha nitidez e destaque por seu pensar fragmentário, em palavras soltas, postas em liberdade, apresentando, de certa forma, o seu lado criador e a utilização criativa da linguagem.

A poesia, o fragmento e o fazedor de amanhecer

Só o silêncio
Faz rumor
No voo das borboletas
(Manoel de Barros. O fazedor de amanhecer, 2001, p. 18).

O livro O fazedor de amanhecer reúne dois grandes e estimados artistas: Manoel de Barros, o poeta “fazedor”, e Ziraldo, o artista da ilustração, da imagem, cor e forma. A obra, numa visão inicial, é composta de comentários sobre a maneira como se descobre o “amor”, este traduzido simbolicamente por um coração vermelho, e a revelação de três máquinas de sua criação: “uma manivela para pegar no sono, um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas e um platinado de mandioca para o fordeco do meu irmão”, bem como a “solidão” citada na figura mitificada do avô, além de outros.

Neste livro, além das galerias por onde desfilam vários personagens, poemas e imagens dialogam e interagem constantemente, de tal forma que esses paratextos completam o sentido da obra e com o tema da infância, que é peculiar no poeta sul-mato-grossense.

Pelas rememorações, o sujeito lírico dos poemas de O fazedor de amanhecer adota a “infância” para ser a base discursiva das discussões e a fonte e o sustentáculo da poesia. Ele se aproxima do ser infante a partir do momento em que desperta em si o interesse por coisas que não têm utilidade. Então ele planta as sementes das palavras e logo se dá ao luxo de explorar os neologismos, além das linguagens carregadas de imagens e metáforas não intelectualizadas, mas de extrema delicadeza no jogo linguístico. Por meio dessas imagens da “infância” é que a fantasia persiste no adulto-poeta. É essa característica do ser infante que desperta em Manoel de Barros a sensibilidade para a aproximação que ele faz entre a criança e o poeta, a infância e a poesia, ligação primitiva, mas não distanciada do esteta e “fazedor” de versos.

Além desse tom memorialístico, a obra barriana requer um olhar atencioso do leitor e um vasto conhecimento de mundo que facilitem a familiarização com os “arranjos” inventados por ele, concedendo, portanto, horizontes capazes de alicerçar um entendimento de seus textos poéticos. De acordo com Maria Auxiliadora Fontana Baseio, em sua poesia “desenha-se o homem do porvir, um ser livre de imposições, liberto do consumismo, hábil para enxergar o todo, para contrair visão das fontes, para voar livremente e sem limites, para fazer o amanhecer” (2008, p. 89).

No contato direto e criativo com o livro O fazedor de amanhecer, verificamos que texto e ilustração interagem o tempo todo. E a imagem do ser infante, representada na poesia barriana, faz integrar um novo panorama de atuação da criança e da infância na obra de Manoel de Barros.

A expressão “fazer pessoas no frasco” dá abertura às primeiras páginas do livro, fazendo alusão ao “bebê de proveta”, gerado por tubo de vidro e inventado artificialmente pelo homem. “Fazer pessoas na cama”, contrariamente, alude à reprodução do ser no útero da mãe, maneira primitiva e milenar, criada por Deus e dada ao homem como um presente. “Para fazer pessoas, ninguém ainda não inventou nada melhor que o amor” – o termo empregado neste terceiro fragmento remete à ideia de que o “amor” é uma ordenança divina. Esses argumentos conferem certa agradabilidade quando o poeta recorre a um eu lírico infantil e a ele concede a “palavra” para uma conexão ampla e direta com o amor natural e primitivo, de modo a não valer a pena ser trocado por mecanismos meramente superficiais.

Manoel de Barros, ainda nesse livro, apresenta três máquinas de sua criação que recebem outras “tratagens”:

  1. “Uma pequena manivela para pegar no sono”: aqui, a máquina, a serviço do devaneio, está relacionada ao sono;
  2. “Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas”: também a serviço do devaneio. É o instrumento exclusivo de criação do poeta, o que dá título ao próprio poema e à própria obra;
  3. “E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão”. O platinado faz referência à peça que é vida para o automóvel, responsável por sua ignição. A mandioca, alimento de uso do cotidiano, ganhou, no verso, um “encantamento”, enriquecida com uma nova significação. Fordeco, de acordo com o sentido dicionarizado, representa um “modelo antigo de automóvel da marca Ford”.

No poema “Eras”, estruturado em uma estrofe e quinze versos, o sujeito lírico tematiza o retorno à infância utilizando a metáfora do sapo com a pedra (“Antes a gente falava: faz de conta que/este sapo é pedra/E o sapo Eras”), na tentativa de resgatar o jogo do faz de conta ou mesmo a proximidade do poema com a narrativa. Logo após se transporta para o tempo presente, numa comparação com o “hoje”: “agora, a gente parou de fazer comunhão de pessoas com bicho, de ente com coisas”, como se quisesse buscar um estilo próprio nas “raízes crianceiras” para construir o jeito particular de fazer poesia.

Em “Meu avô”, o sujeito lírico recupera a figura mitificada do mais velho, como um homem de poesia, um sábio que amplia a solidão e enriquece os sentidos da palavra “abandono” ressaltando as relações com o mundo, o vento e os bichos.

Por outro lado, e assumindo um tom metalinguístico, em “A língua mãe” o eu lírico não consegue estabelecer essas mesmas relações do poema “Meu avô”. Estabelecendo pares entre língua oral nativa e a língua francesa, o sujeito deixa claras as distâncias entre “oiseau” e “pássaro” – enquanto uma revela elementos linguísticos da língua mãe, a outra não retrata a infância esperada.

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Figura 1 – Ilustração intertextual com a pintura de Van Gogh

Em “Bernardo”, o personagem mitificado como a figura do avô também está integrado à natureza, como o “Bernardo-árvore”, o Bernardo que “virou passarinho” após a sua morte, representada na metamorfose, ou seja, mudança de forma; seu corpo não fala, mas transforma-se em um “arãquã” (ave) “para compor o amanhecer”. O poeta ainda nomeia três seres colaboradores de suas obras:

  1. os pássaros relembram a infância do poeta, num retorno ao passado em que, quando menino, ia para debaixo das árvores ouvir os seus cantos;
  2. o andarilho, figura não vista como insignificante, marginalizado, mas um ser de valor que está associado à dignidade “do ser” e não “do ter”;
  3. a criança, sujeito que emite sensibilidade e afeto ao poeta.

Retomando brincadeiras de menino, o poema “Campeonato”, por outro lado, constrói-se sobre as antigas brincadeiras, bastante afastadas das atuais, principalmente as eletrônicas. Nesse poema, o antigo tipo de diversão é rememorado entre crianças que, sem malícia, brincam usando a ingenuidade de urinar mais alto e mais longe, como se colocasse em pauta a questão da “potência” masculina, despertando certa curiosidade nas meninas que não participavam.

No terceto, “as coisas,/muito claras/me noturnam”, o eu lírico apresenta um contraste das situações que refletem muita luz, como as noturnas. O claro e o escuro direcionam o pensamento dos opostos que se atraem; trata-se aqui de uma antítese que reforça o sujeito poeta em profunda admiração pela noite e pelas estrelas. Diante dessa contemplação, uma grande estrela ocupa o espaço celeste, ganhando nitidez e destaque na ilustração de Ziraldo.

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Figura 2 - O poeta e as estrelas

O poema “As bênçãos” remete à certeza de que o homem é grande e infinitamente abençoado por um ser superior, Deus. O “eu poemático” faz breves comentários nesse poema de quinze versos, seguidos do reconhecimento de que são constantes as bênçãos em sua vida. Em tom de prece, o sujeito lírico traça proximidades de gestos infantis e graça divina. Fazedor de imagens insólitas e surreais, Manoel de Barros procura aproximar o leitor de suas obras, em um contato direto com as coisas da natureza. E, por não fugir do seu estilo “fazedor de amanhecer”, cabe ao leitor romper com o olhar arcaico e limitado da leitura tradicional e permitir que os “deslimites” da palavra reinem na construção poética.

Enfim, ler O fazedor de amanhecer propicia, além de descobertas linguísticas, uma linguagem fragmentária, bordada sempre com arabescos e metáforas insólitas; é significativo acompanhar os percursos de “despropósitos” e deliciar-se nos fragmentos ludicamente inusitados de sua poesia.

Referências

ARAUJO, Rodrigo da Costa. Delicadezas da poética barriana. Revista Mosaicum, Teixeira de Freitas, Faculdade do Sul da Bahia, p. 83-85, 2010.

______. Encenações de ser criança em Manoel de Barros. Revista Querubim, Niterói, ano 7, nº 14, 2011.

______. Diário de Luto de Roland Barthes ou a estética do fragmento. Cadernos do CNLF, vol. XIV. nº 4, t. 3. XIV Congresso Nacional de Linguística e Filologia, 2010.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros. São Paulo: Annablume, 2003.

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.

______. Menino do mato. São Paulo: Leya, 2010.

______. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

______. O fazedor de amanhecer. Ilustrações de Ziraldo. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.

______. O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.

BASEIO, Maria Auxiliadora Fontana. Por uma estética em língua de brincar: breves reflexões acerca da literatura de Manoel de Barros e de Mia Couto. Revista Atlântica, São Paulo, USP, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, p. 81 – 100, 2008.

CAMARGO, Goiandira de F. Ortiz de. A poética do fragmentário: uma leitura da poesia de Manoel de Barros. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira). UFRJ, Rio de Janeiro, 1996.

CAMPOS, Cristina. Manoel de Barros: o demiurgo das terras encharcadas: educação pela vivência do chão. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2010.

MEDEIROS, Regina Lúcia de. Fabrincando o amanhecer: infância e criação poética em Manoel de Barros. Departamento de Letras da UFRN. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/humanidades2009/Anais/GT31/31.2.pdf.

MÜLLER, Adalberto (org.). Manoel de Barros (encontros). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.

ROSENTHAL, E. Theodor. O universo fragmentário. São Paulo: Companhia Editora Nacional/EdUSP, 1975.

SANCHES NETO, Miguel. Achados do chão. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 1997.

Publicado em 25 DE JUNHO DE 2013

Publicado em 25 de junho de 2013

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