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A educação, uma vez mais

Fabiana Fernandes Ribeiro Martins

Professora da Faculdade de Educação (UERJ); professora visitante da Faculdade de Educação da Universidad Nacional de Córdoba, mestranda do ProPEd/UERJ; bolsista Nota 10 da FAPERJ

Na atual sociedade, denominada neoliberal, que tem sua marca na flexibilização das relações políticas, sociais e econômicas, a educação e a escola – instituição privilegiada da educação formal – parecem ter perdido seu lugar. Antigamente, dizem os saudosistas, era tudo diferente: a escola era um lugar quase sagrado, o professor era respeitado, as famílias eram estruturadas, os alunos eram respeitosos. Agora, já não há mais lugar para a escola, afirmam: as famílias se desestruturaram, os alunos parecem não saber mais para que vão à escola, os professores perderam o respeito, e a educação se tornou mercadoria. Pessimistas com o futuro, face a um presente que se apresenta desolador porque não encontra mais na educação um meio para (outra) configuração social, os saudosistas não cansam de colocar a questão “para onde estamos indo?”.

Os otimistas colocam a mesma questão, também se questionam para onde estamos indo, mas o fazem sobre outro ponto de vista: uma vez que a educação é um meio para chegarmos onde queremos, afirmam, é para ela (e com ela) que nossos esforços deveriam convergir, a despeito (ou principalmente por causa) de uma sociedade que parece deslegitimar o papel do professor e da escola. Para os otimistas, a instituição escola é, quiçá, a única ainda capaz de manter viva a esperança de um futuro promissor, porque tanto contribui para a formação do indivíduo em um cidadão politicamente engajado quanto para a (re)estruturação do coletivo social.

Vemos que a atualidade nos brinda, pois, com dois discursos antagônicos. Se os otimistas apostam na educação como viabilizadora da construção de uma sociedade menos desigual e mais justa, os pessimistas colocam em suspenso o papel da escola, afirmando que é preciso, antes, mudar a sociedade para que a escola possa voltar a ter seu lugar. Ambos nos chamam a refletir sobre a sociedade atual e seus possíveis desdobramentos futuros, sem, contudo, colocar em questão a própria escola. Parecem, portanto, trabalhar com uma ideia geral: a de que a escola é um lugar para aprender. Tendo como base esse princípio, os pessimistas apontam para o colapso da escola, uma vez que ela já não é mais um lugar de aprender, por ter perdido, ela mesma, seu lugar; os otimistas, ao contrário, ainda apostam na escola como um lugar de aprender, e principalmente de aprender conteúdos necessários para a cidadania, vislumbrando a (re)constituição de uma sociedade igualitária e democrática.

Para Gert Biesta, autor do livro Para além da aprendizagem – educação democrática para um futuro humano, recentemente publicado no Brasil na coleção Educação: experiência e sentido, da Editora Autêntica, a questão sobre educação precisa ser recolocada. Como analisar as implicações sociais da e na educação sem antes levantar a problemática da existência e da finalidade da própria educação, da própria escola? Pensar a escola tendo como principal função a aprendizagem, como fazem otimistas e pessimistas, é, para o autor, simplificar o conceito de educação. Se a análise sociológica – tanto da corrente otimista quanto da corrente pessimista – coloca em questão o papel da sociedade na educação, é preciso, na contracorrente, colocar em questão o papel da educação na sociedade na qual vivemos. Afinal, o que é a educação? – eis a pergunta que marca o livro de Biesta do começo ao fim.

Deixemos de lado as querelas entre otimistas e pessimistas que usamos para abrir este artigo. No fundo, importa menos se é feita ou não uma ode à educação e mais se a educação (ou sua diretriz) é colocada no centro das discussões. Se a educação pode ser nossa tábua de salvação, ou se ela afundou juntamente à emergência de uma sociedade neoliberal, é talvez uma problemática secundária. Se devemos nos aliar aos que afirmam o fim da educação ou se devemos nos sensibilizar com os que resistem a uma suposta tentativa de esfacelamento de seu lugar não é, contudo, o relevante. Importa, antes, que possamos reverter a lógica sobre a qual ambos os discursos se sustentam: a lógica de que a sociedade é a responsável por legitimar – ou não – o lugar da escola.

Traremos, a partir de então, uma análise educacional feita por Biesta a respeito das transformações na educação. Gert Biesta é professor da Universidade de Luxemburgo e tem suas pesquisas voltadas ao campo da Filosofia da Educação. Preocupado especialmente com as novas configurações que a escola vem tomando ao longo das últimas décadas, Biesta faz uma severa crítica ao que ele chama de “linguagem do aprender” e analisa as implicações educativas que essa linguagem teria causado. Na única obra sua traduzida para a língua portuguesa, Biesta procura resgatar o sentido da educação pela análise educativa, distanciando-se da tendência sociológica atual que analisa a escola como espaço determinado pelas políticas vigentes.

Biesta traz também aportes sociológicos, como a crítica ao neoliberalismo e aos discursos pós-modernos, mas não só: seu estudo a respeito da sociedade neoliberal o faz, uma vez mais, pensar a educação com lentes próprias. Para ele, pensar sociologicamente a educação é aferir os impactos que o poder hegemônico tem sobre a escola, mas é preciso também pôr em evidência o que constitui a educação como tal.

No livro, Biesta afirma que uma das marcas do pensamento educacional atual é o aumento dos discursos sobre o aprender e a diminuição – ou mesmo desaparecimento –do discurso sobre a educação. E nem os pessimistas nem os otimistas escapam a essa crítica, uma vez que ambos enxergam a escola como um lugar para aprender.

A erosão do Estado de Bem-Estar Social e a emergência da ideologia neoliberal teriam transformado a relação entre os cidadãos e os governantes numa relação econômica, fazendo do direito um contrato de serviços privatizados e do cidadão um consumidor. Nessa lógica, o aprendiz é transformado em consumidor ou usuário do que hoje não raramente se chama de “serviço educacional” (Biesta, 2013). O aprender passou, portanto, a ser pensado sob uma perspectiva individual, e não coletiva. Tudo se passa como se o aprendiz fosse aquele que soubesse o que queria aprender e o professor fosse um facilitador a serviço do desejo do aprendiz. Essa mudança de paradigma, que pensa a aprendizagem sob uma perspectiva individual, sem a problematização da concepção de educação subjacente a esse paradigma, teria tirado a atenção da importância das relações nos processos e nas práticas educativas, tornando difícil saber atualmente quais são as responsabilidades e as tarefas dos profissionais da educação.

No bojo das discussões pós-modernas que trazem críticas às bases modernas da educação, principalmente àquela relacionada à autoridade do professor e à supremacia da racionalidade, o desafio de pensar as responsabilidades e tarefas da educação foi acentuado. A modernidade, que sustentou sua ode à educação defendendo a racionalidade autônoma dos indivíduos, tendo o professor como o principal agenciador dessa humanização (uma vez que ele estimularia o uso da razão e do pensamento crítico), passa a ser severamente criticada pela pós-modernidade. O que restaria, então, “senão a aprendizagem?”, pergunta Biesta (2013, p. 35). Assim, tendo como referência a educação moderna, os pós-modernos evocam o fim da educação.

Vê-se, assim, uma “explosão silenciosa do aprender” (Biesta, 2013), explosão esta que vem acompanhada não somente pelo aumento do número de estudos e conceitos acerca da aprendizagem – com a concomitante inserção do adulto no discurso educativo –, senão também pelas diferentes formas de aprender – e não apenas o supostamente escolar. Assim, um variado mercado teria sido criado para atender às necessidades do aprendiz, produzindo uma série de cursos on-line, CDs, DVDs etc. ligados (ou não) ao ensino formal. Para Biesta, esse mercado teria feito do aprender uma questão de consumo individual.

Também as “novas teorias do aprender”, muito trabalhadas pelas psicologias do aprender, tendo o construtivismo como principal vertente, teriam contribuído para a emergência da “linguagem do aprender”. Ao que pese a contribuição dessas teorias pela crítica à passividade do aprendiz na educação, o autor argumenta que essas teorias, ao focarem demasiadamente a aprendizagem, deixam à margem o que seria essencial: a educação. Para Biesta, o construtivismo, principalmente, teria deslocado a problemática da educação para o aprender. Colocando de outra forma: a questão não é se o aprendiz é passivo ou ativo no processo educativo, e sim, uma vez mais, o que vem a ser concebido como “processo educativo”, e, mais profundamente, como educação.

O surgimento da “linguagem do aprender” traz, diretamente, dois problemas para nós, educadores. O primeiro, no que diz respeito à economia do processo da educação, na qual o aprendiz se torna um consumidor da “mercadoria educação”. O segundo, no que diz respeito à abdicação da problematização dos conteúdos e objetivos da educação. Ou seja, esses dois problemas, cada qual a seu modo, ao trabalhar o aprender sob uma perspectiva individualista, deixam à margem problemáticas que são, ao ver de Biesta, propriamente educativas: para que e por que educação nos dias de hoje?

A educação, uma vez mais

É preciso recolocar a educação no centro da discussão. O que a distingue, portanto, do aprender? A mudança do foco não é em vão: a linguagem do aprender parece vir na corrente de uma leitura sociológica, enquanto o que se propõe aqui é fazer uma leitura educativa sobre a educação.

O que distinguiria radicalmente a educação do aprendizado seria, segundo Biesta, a teleologia das práticas educativas. Tais práticas seriam sustentadas, portanto, por um telos, uma finalidade. A esse respeito, poder-se-ia dizer que toda prática educativa é, para o autor, uma prática teleológica que tem uma intencionalidade que lhe é própria.

A educação não trataria somente do aprender, senão – e principalmente – do aprender alguma coisa de alguém. Ou seja, não é que não se aprenda; mas o aprendizado está sustentado por intencionalidade e tem no professor a figura principal desse processo.

No livro Para além da aprendizagem, Biesta defende que a teleologia educativa é sustentada por três eixos: a qualificação, a socialização e a subjetivação. A qualificação é o processo por meio do qual os indivíduos se tornam qualificados para fazer algo; é um domínio restrito à aquisição de conhecimentos e habilidades necessários ao engajamento do indivíduo na vida produtiva. Estreitamente relacionada à qualificação encontra-se a socialização, uma vez que, ao apresentar um conhecimento sobre o mundo para os alunos, o professor está, de uma maneira ou outra, representando (re-apresentando, apresentando o que já foi, outrora, apresentado) o mundo para o estudante, colocando-se, pois, dentro de uma tradição particular.

Explicitamente, por meio do currículo prescrito que define, seleciona e organiza os conhecimentos construídos pela sociedade, ou implicitamente, pelo currículo oculto que, nas práticas escolares, perpassa normas, valores e morais da sociedade, a socialização tem, para o autor, dois aspectos ambíguos. Se, por um lado, cabe-lhe dar seguimento à tradição na qual a educação se insere, ou seja, transmitir alguns conhecimentos e modos relacionais que vieram sendo construídos ao longo dos séculos; por outro, se a educação focar demais neste aspecto, acaba por se tornar uma reprodutora social.

O segundo eixo que sustenta esse tripé para não se tornar reprodutor, mas também para não deixar de exercer a importante função que lhe é dada, deve trabalhar, sugere Biesta, sobre um estudo reflexivo e historicizado da sociedade para formar pessoas que não sejam nem reprodutoras nem destruidoras do mundo.

Mas a educação tem a ver, ainda, com a subjetivação. E esse terceiro eixo do tripé é fundamental; se for desconsiderado, alerta Biesta (2013), a perspectiva da educação corre o risco de não ser educacional. A educação deve ter como horizonte também o indivíduo com o qual se relaciona, indivíduo que é único e singular e que deve ser educado não somente para se tornar autônomo – se quisermos utilizar a linguagem da educação moderna, ainda tão presente nos dias de hoje –, mas também um sujeito de ação e responsabilidade. Como o autor salienta, o indivíduo deve ser visto como um ser único e singular, mas também – e disso não podemos esquecer – parte do mundo no qual nasceu, mundo esse que o antecede, que estava aí antes do surgimento desse indivíduo.

À educação cabe, portanto, o desafio de lidar com esses três eixos, paralelamente. Três eixos que parecem formar, juntos, um paradoxo educativo. Eis que o aparente paradoxo nos leva a questionar qual seria o papel do professor ou, antes, o que definiria uma relação educativa.

Segundo Biesta, para dar conta dos três eixos sem os quais a educação perderia (e perde) seu caráter educativo e sem os quais se corre o perigo corroborar com a linguagem do aprender ou com uma análise sociológica (mas não educacional) é preciso pensar – ainda e uma vez mais – no que constitui a “relação educativa” (Biesta, 2013).

A relação educativa, uma vez mais

Para o autor, seriam três as bases dessa relação: confiança sem fundamento, violência transcendental e responsabilidade sem conhecimento. Tendo em vista as bases sobre as quais a educação se sustenta, veremos, a partir de então, o que viria a ser o que Biesta compreende por “relação educativa”.

A primeira base sobre a qual a “relação educativa” se sustenta é o que Biesta (2013) chama de “confiança sem fundamento”. A confiança sem fundamento diz respeito ao risco educativo: todo aprendiz corre o risco de não aprender o que desejava aprender, o risco de aprender coisas que jamais havia imaginado que aprenderia e, o maior dos riscos, de aprender o que não se quer aprender.

Engajar-se no processo do aprender é sempre correr o risco de aprender coisas sobre si, coisas que podem, inclusive, mudar a imagem que o sujeito tem sobre si mesmo. É por isso que a confiança é essencial à relação educativa: é preciso confiar no porvir, é preciso confiar no professor, no que ele apresentará, no que proporá. A figura do professor, como aquele que abre horizontes porque sabe das necessidades do aprendiz, porque sabe o que o aprendiz precisa, porque mostra o mundo, é imprescindível. Isso significa, afirma o autor, “que a educação só começa quando o aprendente está disposto a correr risco” (Biesta, 2013, p. 45).

Enquanto os teóricos do aprender tendem a compreender a aprendizagem como aquisição de algo externo ao sujeito, e, por isso, dirigem seus esforços no intuito de erigir o que se chamaria de processo da aprendizagem – processo que não é mais do que a construção de etapas e procedimentos para a aquisição de conhecimentos socialmente construídos –, Biesta (2013, p. 47) concebe o aprender como resposta. O aprender como resposta diz respeito “ao que é outro e diferente, ao que desafia, irrita e até perturba, em vez de como a aquisição de algo que desejamos possuir”. Nessa perspectiva, o aprender seria mais um processo de reação a um distúrbio, resposta a uma desintegração, do que a posse de um conhecimento. É, pois, um desafio: coloca o sujeito numa posição em que precisa mostrar quem ele é e onde ele está, força-o a pensar e afirmar sua “vinda ao mundo”.

De certo modo, argumenta o autor, é justamente a resposta que damos ao outro, é justamente a forma pela qual nos posicionamos frente ao fora ou ao que nos é estrangeiro que nos torna únicos e singulares no mundo. Contudo, vir ao mundo não é somente se posicionar frente ao mundo. O ato de vir ao mundo é também acompanhado da compreensão de que o mundo existe e é habitado por outros. Nossa própria subjetividade, afirma, “é inteiramente social”.

Uma das principais responsabilidades da educação é, portanto, abrir oportunidades para que as pessoas “venham ao mundo”, o que requer a criação de situações nas quais os alunos possam se posicionar e dizer o que pensam. Isso não quer dizer, contudo, que qualquer posicionamento deve ser validado, porque vir ao mundo não é uma atitude de autoexpressão; é, antes, “entrar no tecido social e ser, portanto, inteiramente relacional” (Biesta, 2013, p. 48).

E quantas vezes em nossas salas de aula falamos e respondemos pelo outro? Estarão nossas perguntas comprometidas com o engajamento do sujeito na problemática que expomos ou comprometidas com a aferição de respostas que já temos de antemão?

O grande desafio de ser professor é, antes de ‘dar a voz’, abrir espaços e ouvidos para ouvir a voz, porque os alunos falam, e falam bem alto, o que pensam. Estamos nós preparados para fazer de nossas aulas espaços de encontros potentes que desafiam o outro a se posicionar, a falar o que pensa e a, principalmente, agir de forma transgressora? Ou estamos perpetuando, no cotidiano escolar, modos de viver e de pensar determinados pela sociedade?

Se a educação diz respeito a abrir espaço e criar oportunidades para que os estudantes venham ao mundo e que se afirmem como únicos e singulares num mundo que o precede e que pressupõe a existência de outros, a responsabilidade do professor é, talvez, uma responsabilidade paradoxal: contribuir para a qualificação e socialização do sujeito e, ao mesmo tempo, para que esse sujeito se afirme como singular e único no mundo. Eis que a responsabilidade do professor é uma responsabilidade “por alguma coisa (ou melhor, por alguém) que não conhecemos e não podemos conhecer” (Biesta, 2013, p. 51), alguma coisa (ou melhor, alguém) que, afinal, se constitui ao longo do processo educativo.

Talvez o cuidado que nós, professores, devemos ter é de não dizer o que o mundo é, mas fazer com que nossos alunos se confrontem com o mundo, mundo este que não é nem fruto da constituição do sujeito nem fruto da determinação da sociedade. É por isso que, uma vez mais, o desafio da educação não é favorecer a aprendizagem, mas ensinar algo aos recém-chegados ao mundo – fazer com que se confrontem e que se relacionem singularmente com o mundo.

A confrontação com o mundo, contudo, traz um risco: o risco de que o sujeito tente destruir a si ou ao mundo. Tênue linha sobre a qual a educação deve estar; tênue linha na qual começa, enfim, o trabalho educativo.

Estamos nós, professores, preparados para andar nessa corda bamba sem sombrinha, sem o recurso de um poder hegemônico que afirma o que o mundo é e que define modos de agir e viver?

Para mais informações e referências bibliográficas do autor, visite: www.gertbiesta.com.

Publicado em 2 de julho de 2013

Publicado em 02 de julho de 2013

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