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O brincar e o descobrir-se na Educação Infantil

Karina Arroyo C. G. Pereira

Socióloga, pedagoga e mestranda em Geografia Humana (UERJ)

A palavra brincar vem de vinculum, que quer dizer laço, algema; é derivada do verbo vincire, que significa encantar. Nada mais justo e autoexplicativo para iniciar este trabalho.

Pode-se concluir que o ato de brincar, de encantar, de divertir-se é inerente à infância e indiscutivelmente importante, não pela liberdade que proporciona, mas pelas possibilidades de desenvolvimento que oferece.

As brincadeiras são universais, estão na história da humanidade ao longo dos tempos, fazem parte da cultura de um país, de um povo. Achados arqueológicos do século IV a.C. na Grécia descobriram bonecos em túmulos de crianças. Há referências a brincadeiras e jogos em obras tão diferentes como a Odisseia de Ulisses e o quadro Jogos infantis, de Pieter Brughel. Nessa tela, de 1560, são apresentadas cerca de 84 brincadeiras que ainda hoje estão presentes em diversas sociedades (Silva e Santos, 2009).

Essa atividade, que sofre algumas adaptações através das alteridades locais e variações socioculturais, não perde, entretanto, seu viés comum, o que leva a crer que há linearidade no objeto das brincadeiras, bem como na sua frequência e na sua utilização em prol da criança na Educação Infantil.

Segundo o Referencial Curricular para a Educação Infantil, o brincar é um precioso momento de construção pessoal e social; é permeado pelo eixo de trabalho movimento, em que a criança movimenta-se construindo sua moralidade e afetividade perante as situações desafiadoras e significativas presentes no brincar e inerentes à produção social do conhecimento.

Dificilmente deparamo-nos com uma criança que em pouco tempo de inatividade não descubra um objeto ou contexto em que possa simular uma realidade, divertir-se com as possibilidades de sua criação e que com isso exercite várias faculdades cognitivas. Simbolizar, criar, reproduzir e interpretar são algumas delas. Salvo raras exceções, por transtornos ou distúrbios comportamentais ou biológicos, a criança manter-se-á inativa por longo período. Sabe-se que é senso comum, corroborado pela brincadeira infantil, associar brincadeiras à infância, e é difícil dissociar estes dois termos.

O foco de minha análise são as crianças da Educação Infantil, logo, de 0 a 5 anos, que, segundo a classificação do epistemólogo Piaget (1896-1980), perpassam dois estágios de desenvolvimento cognitivo, o estágio sensório-motor (0 a 2/3 anos) e o estágio simbólico (3 a 5 anos).

Para que se possa compreender a importância da brincadeira, da sua mediação e implementação na Brinquedoteca, em prol do desenvolvimento cognitivo da criança é necessário descrever esses estágios:

Estágio sensório-motor (0 a 2/3 anos): Nível de linguagem: monólogo; ecolalia -palavra-frase: a criança emite sons e balbucia sílabas; uma palavra para significar uma frase.

  • Nível de organização e socialização: Individual; nesta etapa a criança trabalha sozinha. Os outros, para ela, são objetos passíveis de serem explorados como qualquer outro; as relações frequentemente apresentam conflitos também por este motivo. Não emprestam seus objetos, pois não compreendem que o outro o devolverá.
  • Nível de representação gráfica: realismo fortuito; a criança risca sem coordenar seus movimentos, fazendo por puro exercício – rabiscação; no final desta etapa, faz riscos circulares e evolui para pequenos círculos por todo o papel (desenho celular).
  • Nível de representação do corpo: imitação com modelo; o objeto é o próprio modelo de imitação; faz gestos expressões faciais.

O estágio pré-operatório, seguinte ao sensório-motor, é caracterizado como um período simbólico, com faixa etária dos dois aos quatro anos. A função semiótica permite que a criança evoque os objetos em sua ausência, tendo a imagem mental delineando uma capacidade maior de expansão da criatividade como elemento fulcral das brincadeiras.

  • O jogo simbólico é o que mais se evidencia neste período; a criança começa a verbalizar, o que até então só sabia realizar motoramente; a linguagem precisa dessa base para a sua aquisição; logo, verbalizar organiza seus pensamentos sobre as ações. Com esse simbolismo, ela procura uma série de acomodações na busca de melhor compreensão do mundo que a rodeia. É necessário que o professor intervenha propondo atividades motoras, de experiências físicas, de exploração de objetos e de seu corpo.
  • O brincar de faz de conta é fundamental: imitar pessoas, animais, situações diferentes; construir pequenas cenas, fantasiar-se, participar de atividades de pequena duração que envolvam o coletivo e de momentos para pequenas negociações e limites, permitindo maior descontração e autonomia. O seu condutor é a fantasia; é animista em relação aos objetos, atribuindo-lhes vida, devendo ser contempladas atividades das mais diversas formas de expressão artística, para que seu potencial criativo também se desenvolva.
  • Seu potencial físico é caracterizado pela necessidade de intensa exploração sensorial e motora; seu senso de equilíbrio, de coordenação dos movimentos melhora tanto na posição vertical como na horizontal.
  • No desenvolvimento social, a criança realiza mais contatos sociais e passa menos tempo em jogos sozinha, consegue explicitar o que está fazendo, tendo esse interesse como tomada de consciência do companheiro, mas é extremamente egocêntrica, centrada no seu próprio ponto de vista; não consegue se colocar no lugar do outro, o que ocasiona alguns conflitos naturais.

Estes são os dois estágios contemplados pela Educação Infantil, havendo uma variabilidade plausível e aceitável nos limites etários dentro dos estágios de desenvolvimento cognitivo. O aspecto psicológico está atrelado a esse processo e tem grande peso nessa fase, pois apenas o desenvolvimento biológico não dá conta de formar futuros adultos críticos, bem articulados e autônomos; é necessária a atuação imprescindível do educador, mediando esse processo socialmente construído, delicado e indelével.

A interdisciplinaridade é considerada central nesse processo de articulação, ao contrário da fragmentação dos conteúdos existente nos currículos da pedagogia tradicional e racionalista, pois assim a criança adquire o “saber fazer” com variedade. O lúdico propicia essa variedade contextual em que a criança depara-se com inúmeras possibilidades; para saber mais;

O filósofo Huizinga, em 1938, escreveu seu livro Homo ludens, no qual argumenta que o jogo é uma categoria absolutamente primária da vida, tão essencial quando o raciocínio (Homo sapiens) e a fabricação de objetos (Homo faber), então a denominação Homo ludens quer dizer que o elemento lúdico está na base do surgimento e desenvolvimento da humanidade (Lunardi, 2012).

Para Winnicott (1975, p. 139), “o lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente”. Portanto, o brincar, atividade inserida em um determinado espaço, faz com que a criança experencie a proximidade entre ela e o ambiente e os inúmeros métodos pelos quais ela pode se inserir, modificar e comunicar-se com o meio, pois para o autor a experiência criativa começa quando se pratica essa criatividade e isso se manifesta primeiro pela brincadeira. É por isso que não se deve pensar que a criança é apenas reprodutora passiva de cultura e conhecimento, um ser atônito; ela é sujeito ativo, explorador e construtor de suas conclusões experienciais.

Ainda nesse raciocínio de autonomia infantil, observa-se que é a partir da brincadeira que a criança significa e ressignifica o mundo, constituindo suas práticas culturais. A criança toma certas decisões, raciocina sobre opções e escolhe as suas estratégias na brincadeira, especificamente no jogo, não aleatoriamente, conforme sua vontade momentânea, mas já esboçando traços culturais e demonstrando a internalização de normas sociais. Nesse ponto o papel do mediador é essencial para que haja flexibilidade na ação da criança e que ela possa, pela cooperação e solidariedade, considerar outras formas de agir e decidir. Para isso o jogo simbólico é a melhor opção.

O jogo simbólico, como seu próprio nome diz, remete à ideia da simbolização, ou seja, é pelo faz de conta que a criança imagina coisas irreais, abstratas e externas para a sua realidade; o jogo simbólico possibilita à criança desfrutar de uma companhia e situação imagética que poderá lhe trazer alento.

Do ponto de vista etimológico, faz de conta é sinônimo de quimera, um monstro mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas. Na história do estudo da infância, nunca houve tanta preocupação e desenvolvimento de metodologias como agora; no entanto, a criança não dispõe mais de tempo para vivenciar suas brincadeiras e fantasias, tão benéficas ao seu desenvolvimento mental e emocional.

O tempo para a criança foi otimizado, como que se em menor tempo todas as estimulações fossem possíveis; entretanto, isso oblitera a liberdade infantil, o tempo interno e emocional que cada criança tem para pensar, imaginar e recriar as situações. Não se pode impor tempo nem ritmo quando se refere a aspectos emocionais e cognitivos na infância. Sabe-se que os pais são os primeiros agentes socializadores e os educadores mais importantes para seus filhos; apesar dessa assertiva, não participam e compreendem muitos aspectos da brincadeira e seus desdobramentos para o desenvolvimento. Da mesma forma, acredita-se que as crianças devem viver e comportar-se dentro do que lhe é próprio, porém suas “infantilidades” são criticadas e bloqueadas pelos adultos.

Há uma dicotomia conflitante e por vezes prejudicial. Defende-se a importância do brincar na construção do desenvolvimento e aprendizado infantil, mas as brincadeiras muitas vezes são idealizadas inteiramente pelo adulto ou mediador, tornando-se um método avaliativo em forma de teste. Nada pode ser mais prejudicial do que a imposição da imaginação, da regra e do tempo.

Referências

LUNARDI, Karine de Oliveira. O brincar na educação infantil: A construção de hábitos e valores. Disponível em: http://monografias.brasilescola.com/educacao/o-brincar-na-educacao-infantil-construcao-habitos.htm. Acesso em 31 mai. 2013.

PIAGET, Jean. A formação do símbolo da criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

SILVA, Aline F. Felix; SANTOS, Ellen C. Machado. A importância do brincar na Educação Infantil. Trabalho de conclusão de curso de especialização em desafios do trabalho cotidiano: a educação das crianças de 0 a 10 anos. Rio de Janeiro: UFFRJ, 2009.

VASCONCELOS. Paulo A. C. O jogo e Piaget. São Paulo: EDS, 2003.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Publicado em 2 de julho de 2013

Publicado em 02 de julho de 2013

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