Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

História do ensino da leitura no Brasil: um olhar sobre as teorias subjacentes ao fazer pedagógico

Silvio Profirio da Silva

Graduando em Letras (UFRPE)

Este trabalho reflete sobre a história do ensino da leitura no Brasil, a partir de uma perspectiva sociointeracionista da linguagem, focando sobretudo as teorias subjacentes ao fazer pedagógico. Nesse sentido, este texto tem por objetivo tecer alguns argumentos opinativos acerca das concepções de leitura subjacentes às práticas pedagógicas do ensino dessa competência linguística presentes no processo de escolarização brasileiro. Decorrente deste, pretende-se traçar uma breve linha do tempo sobre o fazer pedagógico no tocante à escolarização do leitor. Para este estudo, recorre-se aos trabalhos de Albuquerque (2006), Albuquerque et al (2008), Barbosa e Souza (2006), Bezerra (2001, 2010), Kleiman (2008), Koch (2002), Koch e Elias (2006), Perfeito (2007), Santos (2002), Soares (1998) e Travaglia (1997).

Durante longo tempo, o processo de escolarização brasileiro foi norteado por paradigmas de cunho tradicional. Com base nesse norte, a prática pedagógica do ensino da leitura concedeu primazia à decodificação de signos (BARBOSA; SOUZA, 2006; SANTOS, 2002). Nessa perspectiva, o ensino dessa ferramenta linguística priorizava a reprodução da fala de autores do campo literário, extinguindo, assim, a possibilidade de o aluno construir sentido em face do texto. Isso conferia ao discente um papel passivo, que se restringia à reescrita e à refação dos dizeres dos prestigiados autores da literatura brasileira e portuguesa (SOARES, 1998). Diante disto, o processo de construção de significados e de elaboração de significação face ao texto era algo que não se fazia presente nas práticas pedagógicas do ensino da leitura. Tal posição persistiu durante décadas nas unidades escolares brasileiras.

De acordo com Santos (2002, p. 1), “vários trabalhos, sobretudo a partir de 1980, têm procurado discutir o modo como se vem processando o ensino de língua escrita no Brasil e apontam para algumas questões de nível conceitual e metodológico”. Nessa perspectiva, nos anos 80 teve início o processo de propagação das pesquisas acadêmicas relativas ao ensino da leitura. Albuquerque (2006) e Albuquerque et al (2008) ressaltam o fato de os pressupostos teóricos advindos de diversos âmbitos de investigação – Ciências Educativas [Pedagogia], Ciências Linguísticas [Linguística], Ciências Psicológicas [Psicologia, destacando-se, acima de tudo, a Psicologia Cognitiva], Filosofia e Sociologia – terem contribuído substancialmente para modificações na didática da escolarização do leitor.

Se o ensino da leitura e da escrita sofreu mudanças diversas ao longo da história, nas três últimas décadas variados aspectos têm influenciado e transformado bastante as formas segundo as quais esse ensino tem sido concebido e posto em prática. Fatores como os avanços teóricos na área, mudanças nas práticas sociais de comunicação e o desenvolvimento de novas tecnologias têm forjado novas propostas pedagógicas e a produção de novos materiais didáticos relacionados à alfabetização inicial e ao ensino de línguas em geral. No contexto brasileiro, vivemos desde o início da década de 1980 um amplo debate sobre esses temas. Pesquisadores com formação em distintos campos – psicologia, linguística, pedagogia etc. – têm procurado redefinir a leitura e a escrita, bem como seu ensino e sua aprendizagem (ALBUQUERQUE et al, 2008, p. 1).

Na defesa de um modelo/visão sociointeracionista de ensino da leitura, esses estudos voltam seu olhar para a qualidade social da educação, buscando romper paradigmas mecanicistas e tecnicistas que norteavam a prática pedagógica do ensino dessa competência linguística. Diante desse contexto, surgem novos fundamentos teóricos para o ensino da leitura. Dito de outro modo: em face da expansão dos debates acerca do tema nos dias de hoje, pode-se presenciar uma nova concepção de leitura como atribuição/produção de sentido. No dizer de Koch e Elias (2006, p. 37), a leitura passa a ser conceituada como “atividade de construção de sentido, que pressupõe a interação autor-texto-leitor, considerando as pistas/sinalizações que o texto oferece e os conhecimentos do leitor”. Essa concepção de leitura como elaboração de sentido rompe com os modelos/parâmetros orientadores mecanicistas e tecnicistas, que preconizavam um fazer docente diretamente atrelado a uma concepção de leitura como decifração da linguagem escrita (SANTOS, 2002).

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a essa leitura ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista (LAJOLO, 1986, p. 59).

Essas diferentes concepções e práticas pedagógicas que envolvem a leitura não irrompem de forma neutra. Pelo contrário; elas têm como respaldo as concepções de linguagem. Segundo Koch e Elias (2006), o fazer pedagógico no tocante ao ensino dessa ferramenta está diretamente relacionado a concepções de língua, de texto e de sujeito. Isto é, tais concepções estão atreladas/articuladas às práticas de ensino da leitura. Uma gama de teóricos da Pedagogia, da Linguística Aplicada e da Linguística de Texto tecem argumentos opinativos acerca dessas concepções e seus reflexos sobre o trabalho docente no que tange à leitura.

A Concepção de Linguagem como Expressão do Pensamento [oriunda dos Postulados da Gramática Tradicional Grega, como demonstram Perfeito (2007) e Soares (1998)] é apontada como a primeira base norteadora, que fornece respaldo para a didática da escolarização do leitor. Consoante Barbosa e Souza (2006), Bezerra (2010) e Soares (1998), tal concepção norteou o ensino da leitura até os anos 1950, concedendo primazia a uma prática de leitura atrelada a aspectos fonético-fonológicos e, em especial, à gramaticalização. O ensino dessa competência linguística, tendo como pano de fundo esse contexto paradigmático, se voltava para uma prática de leitura vinculada à oralidade [avaliação de questões de cunho de entoação e de pontuação (KLEIMAN, 2008)] e a análises de cunho gramatical [classificação de termos da Gramática Normativa, como morfológicos, sintáticos etc.]. Esta última prática é apontada por diversos teóricos da Linguística Aplicada como texto enquanto pretexto.

No dizer de Bezerra (2001, 2010) e Soares (1998), nesse período as práticas pedagógicas do ensino da leitura ocorriam com base nas antologias, pois ainda não existiam os livros didáticos. As antologias e/ou crestomatias podem ser definidas como coleções de textos literários ou de fragmentos/passagens desse tipo de texto, que serviam como suporte didático para o ensino dessa competência linguística. Soares (1998) demonstra o fato de os textos dos autores literários brasileiros e portugueses assumirem um espaço expressivo nas unidades escolares brasileiras.

A Concepção de Linguagem como Instrumento de Comunicação [proveniente dos Postulados Estruturalistas, da Teoria da Comunicação/Informação e das Teorias Tecnicistas, como evidencia Perfeito (2007)] é apontada como o segundo parâmetro orientador da escolarização do leitor. De acordo com Barbosa e Souza (2006), Bezerra (2010) e Soares (1998), esta concepção aparece nos anos 1960, mas se prolifera na década posterior. Em face dessa concepção, o ensino da leitura passa a primar por uma perspectiva de leitura como decodificação.O ensino da leitura, com base nesse norte, passa a priorizar a localização, a extração e a reescrita (BARBOSA; SOUZA, 2006).

Na ótica de Bezerra (2001, 2010) e Soares (1998), nesse período emergem os livros didáticos de Língua de Portuguesa. Com isso, as práticas pedagógicas do ensino da leitura passam a ocorrer com base nesses manuais didáticos. Tais manuais ainda concedem primazia aos textos literários. No entanto, o tratamento que é dado a esses textos agora é outro. Os livros didáticos de Língua de Portuguesa, ancorados em uma Concepção de Leitura enquanto Decodificação de Signos, primam pela identificação/extração das mensagens expostas nos textos ou nos gêneros textuais. A leitura assume, com base nessa orientação, a condição de atividade de cunho de reescrita e de refação de mensagens (BARBOSA; SOUZA, 2006; KLEIMAN, 2008; SANTOS, 2002). Ou seja, “o texto nada mais é que um depósito de informações, e a leitura é o ato de o leitor ler as palavras para extrair mensagens” (BARBOSA; SOUZA, 2006, p. 15).

A Concepção de Linguagem como Recurso de Interação Social ou Concepção Dialógica da Linguagem [oriunda dos postulados das Ciências da Linguagem, mais especificamente das teorias enunciativas, como: Análise do Discurso, Análise da Conversação, Linguística de Texto, Psicolinguística, Pragmática, Sociolinguística etc. (ALBUQUERQUE, 2006; BARBOSA; SOUZA, 2006; BEZERRA, 2010; CEREJA, 2002; SOARES, 1998)] é apontada como o terceiro princípio norteador da prática docente do ensino da leitura. Segundo Barbosa e Souza (2006), Bezerra (2010) e Soares (1998), tal concepção desponta, nos anos de 1980, das Teorias da Linguística da Enunciação.

Nos últimos 30 anos, surgiu uma ampla literatura na qual se discutiu o modo como vinha se processando o ensino de língua materna no Brasil. Havia nestes trabalhos a preocupação de não apenas criticar as práticas de ensino de língua portuguesa presentes na escola, mas sobretudo apontar questões de nível conceitual e metodológico na direção de uma nova forma de se conceber o ensino da leitura e da escrita. Já na década de 1980 alguns trabalhos das áreas da Linguística e da Psicolinguística passaram a questionar a noção de ensino-aprendizagem de língua escrita que concebia a língua apenas como código e, dessa forma, entendia a leitura apenas como decodificação e a escrita somente como produção grafomotriz. A linguagem deixava de ser encarada, pelo menos teoricamente, como mero conteúdo escolar e passava a ser entendida como processo de interlocução. Nessa perspectiva, a língua é entendida como produto da atividade constitutiva da linguagem, ou seja, ela se constitui na própria interação entre os indivíduos. Passou-se, assim, a prescrever que a aprendizagem da leitura e da escrita deveria ocorrer em condições concretas de produção textual. Desloca-se o eixo do ensino voltado para a memorização de regras da gramática de prestígio e nomenclaturas (SANTOS, 2002, p. 30-31).

Diante desse contexto paradigmático, o trabalho docente no tocante à leitura passa a primar por uma concepção de Leitura como Construção/Produção de Sentidoem face do texto, marcada pela presença de uma gama de tipos de leitura, de atividades, de habilidades/estratégias de leitura, da diversidade textual etc. de texto como unidade de sentido (CEREJA, 2002). Ao leitor é conferido um papel ativo no processo de construção de significados e de elaboração de significação, a partir do texto. Rompem-se, desse modo, os paradigmas mecanicistas e tecnicistas que orientaram o fazer docente no processo de escolarização no Brasil.

Leitura é um processo interativo de construção de sentido(s) entre quem produz (autor/autores) e quem recebe (leitor/leitores), intermediado pelos dados do texto, nas mais diversas possibilidades e formas de linguagens: oral, escrita, icônica, gestual, sinestésica. Ler é atribuir sentido ao que nos rodeia e nos constitui enquanto sujeitos individuais e coletivos, portanto, seres sociais em permanente mutação, interagindo com a alteridade (GUIDI, 2004, p. 43).

Conforme Koch e Elias (2006), cada uma destas concepções prima por um tipo de trabalho docente concernente à leitura, elencando, por conseguinte, um papel/função ao aluno/leitor. Para concluir este estudo, recorre-se aos pressupostos teóricos de Bezerra (2001).  Na fala dessa autora, o ensino da leitura no Brasil divide-se em dois blocos antagônicos e contrapostos: um que alça a leitura à condição de decodificação de signos (BARBOSA; SOUZA, 2006; SANTOS, 2002) e, por conseguinte, de reprodução/representação de palavras. O outro bloco atribui à leitura a função social de atividade de construção de sentido, abrangendo a significação em face do texto, a reflexão e o uso.

Referências

ALBUQUERQUE, E. B. C. Mudanças didáticas e pedagógicas no ensino da Língua Portuguesa: apropriações de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

ALBUQUERQUE, E. B. C.; MORAIS, A. G.; FERREIRA, A. T. B. As práticas cotidianas de alfabetização: o que fazem as professoras? Revista Brasileira de Educação, v. 13, p. 252-264, 2008.

BARBOSA, M. L. F. F.; SOUZA, I. P. Práticas de leitura no Ensino Fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

BEZERRA, M. A. Ensino de Língua Portuguesa e contextos teórico-metodológicos. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola, 2010.

______. Textos: seleção variada e atual. In:DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.. (orgs.). O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

CEREJA, W. R. Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação. In:HENRIQUES, C. C.; PEREIRA, M. T. G. (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos, conexões, sentidos. São Paulo: Contato, 2002.

GUIDI, G. R. S. Ler para quê?. Revista Colaborado@, v. 2, n. 6, mar 2004. Disponível em: http://pead.ucpel.tche.br/revistas/index.php/colabora/article/viewFile/47/43. Acesso em 29 jun. 2013.

KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006.

KLEIMAN. A. . Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 2008.

LAJOLO, M. O texto não é pretexto. In:ZILBERMAN, R. (org). Leitura em crise na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.

PERFEITO, A. M. Concepções de linguagem, análise linguística e proposta de intervenção. In:Anais do I Congresso Latino-Americano de Professores de Línguas - CLAPFL, Florianópolis, EDUSC, 2007.

SANTOS, C. F. O ensino da leitura e a formação em serviço do professor. Revista Teias, Rio de Janeiro, ano 3, v. 05, n. jan/jun, p. 29-34, 2002a. Disponível em: http://www.periodicos.proped.pro.br/index.php?journal=revistateias&page=article&op=view&path%5B%5D=95. Acesso em 10 jan. 2010.

______. A formação em serviço do professor e as mudanças no ensino de Língua Portuguesa. Revista Educação Temática Digital - ETD, Campinas, v. 3, nº 2, p. 27-37, jun. 2002b. Disponível em: http://www.fe.unicamp.br/revista/index.php/etd/article/viewArticle/1794. Acesso em 10 jan. 2010.

SOARES, M. . Concepções de linguagem e o ensino de Língua Portuguesa. In:BASTOS, N. B. (org.). Língua Portuguesa: história, perspectivas, ensino. São Paulo: EDUC, 1998.

Publicado em 16 de julho de 2013.

Publicado em 16 de julho de 2013

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.