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Com o rei na barriga

Mariana Cruz

Voltando de ônibus do trabalho, apesar de quase todos os assentos ocupados, consegui sentar-me em um dos poucos que restavam. Ao meu lado um homem de cinquenta e poucos anos, bem conservado, que, tirando a barriga de chope, seria um típico espécime daqueles que chamamos de “coroa enxuto”. Ele havia tirado a mochila para eu sentar; tal gesto fez com que engatássemos um papo furado, deslocando para o coletivo a conversa clássica de elevador, ou seja, um debate sobre a inconstância do tempo na Cidade Maravilhosa.

Disse-me que, apesar da manhã ensolarada, estava vindo da Tijuca e lá estava chovendo bastante. No Centro estava começando uma chuvinha fina; fiquei surpresa, pois não parecia que estivesse acontecendo um temporal em algum lugar próximo dali. Sem mais amenidades para falar, nos calamos. Aos poucos, os lugares restantes foram preenchidos e quem entrava tinha de ficar em pé.

Em frente ao nosso banco aboletou-se uma mulher com seus trinta e poucos anos. Era dona de uma pancinha protuberante que me deixou na dúvida de ser consequência de birita ou se tinha um bebê a caminho. Como saber? Se cedesse meu lugar para a moça e ela não estivesse grávida, teria que completar minha viagem em pé, além do que ela haveria de achar estranha tal generosidade gratuita. Por outro lado, se ela estivesse esperando um bebê e eu não cedesse meu lugar, estaria sendo injusta. Como tirar essa dúvida sem ser correr o risco de cometer uma gafe? Para mim é um assunto delicado, pois por duas vezes já elogiei mulheres pela gestação que na verdade não existia. E na segunda ainda tive que escutar o risinho abafado das amigas da pseudográvida. Para não repetir o equívoco, pedi auxílio ao meu vizinho de banco e perguntei, somente mexendo os lábios e indicando a mulher com a cabeça, se ela estava grávida. Ele olhou com cara de exímio conhecedor e peremptoriamente negou; ainda endossou seu veredicto com um enigmático: “é da natureza”. Relaxei.

Logo depois a moça sentou-se em um banco que acabara de vagar no fundo do ônibus. Nesse instante, o simpático homem ao meu lado começou a proferir sua nada simpática teoria sobre as diferenças do excesso de tecido adiposo abdominal entre os gêneros. Iniciou sua falação explicando a sentença que acabara de proferir: “é da natureza dela mesma, ela está desse jeito por causa de comida e bebida. Uma barriga dessas é um descuido”. OK, vai ver que o cara, por ser dono de uma pança semelhante à dela, estivesse fazendo um mea culpa por ter levado recentemente uma bronca do médico que o alertou para o fato de a gordura acumulada nessa região representar um risco maior para a aparição de doenças cardiovasculares.

Eis que ele solta a seguinte pérola: "em homem até passa uma barriga dessas, mas em mulher não dá, é falta de vergonha na cara!”. Parei, pensei e, pegando o gancho da gravidez, falei pausadamente para tentar fazê-lo entender, sem ser agressiva, a injustiça que ele acabara de falar. “Se alguém da raça humana tem o direito de ter barriga, esse alguém é a mulher, já que nós parimos. Além disso, é só comparar o corpo masculino e o feminino; o homem é geneticamente mais musculoso que a mulher". Meu vizinho me olhava sem entender o motivo de minha indignação.

Resolvi dar mais voz à professora que me habita. Didaticamente iniciei uma explanação sobre a já batida mas muitas vezes incompreendida igualdade dos direitos entre os sexos: “hoje em dia grande parte das mulheres trabalha fora, mas a maioria delas, ainda assim, exerce dupla, quiçá tripla jornada, mesmo aquela minoria que tem empregadas e babás para a auxiliar (aliás, estas são mulheres também). Então, além de trabalhar fora, cuidar da casa, educar os filhos, ainda as mulheres têm que ter barriga sarada, enquanto com os homens esse excesso ‘ainda passa’”.

Ele defendeu-se dizendo que, apesar de ser homem, ajudou a cuidar dos filhos, sempre brincou com eles, ensinou o que é certo e errado. Nesse momento fiz uma licença para ser mais ilustrativa, expliquei que cuidar não é só jogar videogame ou dizer que não pode arrotar na mesa. Disse a ele que estava ciente de que é cada vez mais comum os homens compartilharem a criação dos filhos, inclusive o pai da minha filha sempre trocava as fraldas, acordava à noite para dar mamadeira e, até hoje, divide todas as tarefas. Como muitos pais de meu convívio, que revezam com as mães as atividades: fazem comida, levam os filhos às festinhas enquanto as mães fazem suas coisas (desde descansar a ir para a manicure), botam para dormir, cuidam da casa, fazem compras. Mas muitos desses homens que sabem e sentem na pele o duro que é cuidar de uma criança e da casa não devem concordar com a máxima de que homem pode exibir uma pança, mas no caso da mulher “é falta de vergonha na cara”.

O problema é que, muitas vezes, nós, mulheres, compramos essa briga, essa cobrança excessiva. Não há problema em seguir o padrão de beleza ocidental e fazer abdominais diários em busca de uma barriga “chapada”, como se diz agora, mas que isso não seja uma exigência exclusiva das mulheres. Afinal, lutamos tanto para a igualdade dos direitos entre os sexos, mas parece que junto com essa liberdade conquistada, de poder trabalhar fora, se vestir como bem entender e não ser submissa ao homem, entre outras conquistas, temos como ônus a cobrança da perfeição. Ou seja, não basta ter a própria renda, ser uma mãe dedicada, um esposa amorosa; temos que ter um corpo escultural.

Por outro lado, ao homem basta ser um pai dedicado que já é visto como um fenômeno. As pessoas tendem a considerar um pai que cuida de fato do filho o melhor pai do mundo, enquanto a mãe que faz isso não cumpre mais do que seu dever. Claro que vejo o mérito dos pais que dividem com as mães as tarefas pesadas, mas penso que isso deveria ser a regra, e não a exceção.

Meu companheiro de viagem despediu-se com um sorriso dizendo que não via a hora de chegar em casa. Fiquei imaginando-o sentado na sua poltrona preferida na sala, com a TV sintonizada no futebol – depois de meu discurso engajado contra a acusação de que as mulheres barrigudas não têm “vergonha na cara” –, olhar com simpatia a barriguinha saliente da sua mulher que começava a despontar enquanto ela caminhava em sua direção para lhe dar uma latinha de cerveja.

Publicado em 22 de janeiro de 2013

Publicado em 22 de janeiro de 2013

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