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Quando a ciência patina

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia do IFRN

Uma das revistas que procuro ler todo mês é a Scientific American Brasil. Gosto de estar atualizado com as novas questões da ciência e saber o que os cientistas estão tramando em suas bases de pesquisa espalhadas pelo mundo.

Não sei se você sabe, leitor de boa-fé, mas houve um tempo em que se pensou que a ciência traria respostas e alento a todas as demandas e angústias da humanidade. No século XIX, imaginava-se que o mundo veria surgir a grande revolução da ciência e que as questões políticas, sociais e econômicas seriam objeto da reflexão cientifica, tal qual os problemas da Física, da Química e da Biologia.

O século XX cuidou de demonstrar que a euforia cientificista do tempo de Auguste Comte era um tipo particular de delírio metafísico com altas doses de hegelianismo travestido de empirismo inglês. Quando Wittgenstein escreveu “ainda que todos os problemas científicos tenham sido resolvidos, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados”, muitos colegas de jaleco começaram a achar que o melhor mesmo seria apostar naquilo que a ciência tem de melhor a nos oferecer: um método eficiente de solucionar alguns problemas conceituais e uma descrição de como as coisas funcionam.

A ideia de que a ciência vai salvar a humanidade de si mesma andou meio fora de moda por alguns anos, mas parece que está voltando à prateleira das ideias contemporâneas. Michael Shermer, editor da revista Skeptic, andou ressuscitando um malassombro filosófico no número de fevereiro da edição brasileira da Scientific American. Parece que Shermer lançou um livro (The Science of good on evil) sobre uma suposta origem evolucionista de sentimentos morais. Parece que o texto tem a pretensão de demonstrar como a ciência pode “auxiliar nas decisões de ordem moral”.

Pelo que deixa transparecer no artigo, seu objetivo é confrontar a tese de David Hume e G. E. Moore (sic) de que o “dever ser” e o “ser” são cindidos, apelando para a ideia de que havia uma base biológica para a “natureza humana” cujo princípio basilar deveria ser o de buscar o “bem-estar de criaturas conscientes” (uma velha máxima do século XVIII extraída das éticas utilitaristas). Até aí tudo bem (ninguém pode ser condenado por estar interessado em mergulhar em intrincados problemas metafísicos). A questão é que Shermer propõe que se possa “erguer um sistema de valores morais por meio da mensuração daquilo que aumenta ou diminui” o bem-estar de criaturas conscientes. Ou seja, ele acha que pode aplicar uma espécie de régua biológica para medir os sentimentos morais da humanidade. Pois é, amigo velho, bem-vindo ao século XIX.

É curioso como cientistas respeitados não vacilam em afundar no pântano da metafísica do qual eles mesmos propõem se libertar. O que Shermer busca é uma discussão filosófica travestida de método científico. Ele acredita que é possível encontrar um critério de verificação para regras morais e esquece que a frase “existe um critério para saber se uma regra moral é falsa ou verdadeira”, ela mesma não pode ser verificada (o clássico problema do verificacionismo enfrentado por Karl Popper e que fez com que o Círculo de Viena pedisse penico no debate filosófico internacional). Ou seja, não é científico propor que exista um critério científico para averiguar se uma regra moral tipo “não é permitido mentir para sua esposa” é verdadeira ou falsa, certa ou errada, boa ou má.

Se não há como provar que “é errado matar” seja falso, não se pode também provar que seja verdadeiro. Não há critérios nem metodologia científica que permita saber se um valor moral está em conformidade com a natureza humana, porque não há como falsear uma proposição que diga “tomar Fanta uva não está em conformidade com a natureza humana”. Isso se dá por um motivo simples: natureza humana é um conceito metafísico, não um fato biológico.

Cientistas são figuras fundamentais neste nosso mundo, cercado de ignorância e proselitismo por todos os lados. Mas eles precisam se cuidar para não cair na ratoeira que pretendem desmontar. Um pouco de humildade e alguns anos de dedicação ao estudo da Filosofia pode livrá-los de passar alguns anos patinando em um assoalho de problemas insolúveis.

Publicado em 20 de agosto de 2013

Publicado em 20 de agosto de 2013

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