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A LEITURA: caminho de mão dupla
Cyana Leahy-Dios
PhD em Educação Literária (London University), professora da UFF, escritora, tradutora, coordenadora da CL Edições
À minha breve e frustrante experiência na docência de língua inglesa no Ensino Médio da rede pública (1973-1975, 1983-1985) se seguiu um período à frente da biblioteca de uma grande escola estadual na periferia urbana. Eu me dispus a reativar o espaço onde estava guardado um acervo considerável, atuando de forma a possibilitar aos alunos dos três turnos o acesso a títulos para consulta e empréstimo. Rápida e entusiasticamente aprendi a catalogar livros e registrar títulos segundo a norma; redigi e enviei cartas a editoras pedindo doações; iniciei campanhas de leitura e escrita, com a dramatização de leituras, a elaboração de cartazes, murais e painéis sobre autores e livros ‘do mês’.
Aos poucos, porém, fui percebendo que tais ações imantadoras para a leitura tinham alcance reduzido junto a adolescentes e jovens adultos. Oriundos das classes trabalhadoras, principalmente os que cursavam o horário noturno, estavam em sua terceira jornada diária. O entusiasmo inicial e a crença missionária nas possibilidades de mudança pelo incentivo à leitura foram aos poucos se transformando em dolorosa impotência e descrença na contribuição efetiva para a ação daqueles sujeitos-cidadãos.
Durante dois anos tentei implementar uma política de leitura na biblioteca daquela escola, estimulando o empréstimo, fazendo horários de leitura oral e escrita compartilhada, visitando cada turma para falar de projetos, autores, títulos. Não havia crédito em minha quixotesca e solitária intervenção. Creio que contra mim havia o fato de que alguns professores cansados do magistério – em descanso de suas cordas vocais – costumavam se transferir para a biblioteca, onde se escondiam para pôr em dia afazeres pessoais, afastando potenciais usuários-leitores com atitudes pouco hospitaleiras que denunciavam seu desinteresse pelo livro ou pela leitura.
Em 1986, surgiu a oportunidade de trabalhar em uma pequena escola estadual de 1a a 4a série do Ensino Fundamental. Ali eu deveria reativar a biblioteca, fechada para os alunos por quase uma década. Considerando a pouca idade dos potenciais leitores, aquela parecia a proposta ideal. Eu não tinha um método de ação predeterminado, e nunca antes trabalhara com estudantes tão jovens. Meu entusiasmo vinha da perspectiva de atuar de forma inteiramente nova, que eu antecipava como sendo relevante para a construção pedagógica de sujeitos sociais.
Foi durante o processo de limpeza, organização, registro e familiarização com os títulos, com o perfil da escola, das professoras e dos alunos que, aos poucos, percebi como a biblioteca deveria funcionar e como eu deveria agir como incentivadora da leitura. Primeiramente, eu não escolheria os textos de leitura sozinha nem imporia leituras. Como um espaço democrático de prazer e problematização, cada sessão na biblioteca deveria começar com uma conversa informal, da qual seria extraído um tema, seguindo-se a leitura de um texto literário tematicamente relacionado; finalmente, a leitura seria expandida em atividades de criação, cujos limites seriam impostos apenas pelo ambiente e pelos recursos disponíveis. Meu ponto de partida seria a tomada de conhecimento de todo o acervo disponível, mantendo-me atenta à publicação de novos textos.
O relato dessa experiência ultrapassa os limites da escola em que foi construída, podendo ser compreendida e apreciada por pessoas de diferentes nacionalidades e culturas cujas histórias políticas e socioeconômicas sejam semelhantes. Eu vinha lidando com gerações de estudantes cujas famílias eram marginais ao sistema, atendidos por uma estrutura oficial de educação que dependia quase que inteiramente da boa vontade das professoras, heroínas isoladas e não reconhecidas.
Nos primeiros dias de frequência à biblioteca, a maioria das crianças me perguntava se eu era muito rica e como havia adquirido tantos livros: o acervo nas estantes de sua escola. Da mesma forma que a biblioteca me pertencia, o restante da escola era de propriedade exclusiva da diretora – especialmente porque o acesso a determinadas áreas era controlado por ela própria e por seu onipresente, onipotente chaveiro. Entretanto, o que melhor demonstrava a fragmentação dos alunos como comunidade estudantil, bastante diferente da minha própria experiência como ex-aluna de escola estadual, era o hábito arraigado de denunciar maus-feitos dos colegas para ganhar atenção e gratidão de suas professoras. Tal atitude era não apenas estabelecida, mas infelizmente estimulada pela maioria das professoras daquela pequena escola, defensoras rigorosas dos bons hábitos e da disciplina férrea, dividindo para controlar e punir.
Apesar da expectativa das professoras de que eu alimentaria seus alunos com histórias que ampliassem seu vocabulário (a educação digestiva de Sartre) ou que elevaria sua expressão oral pelo uso de estruturas mais sofisticadas, atribuindo notas à sua produção escrita, eu não conseguia priorizar tais aspectos formais em associação à leitura. Tentei explicar às colegas de que forma o trabalho de leitura na biblioteca contribuiria para sua ação cotidiana em sala de aula, mas me deparei com a incredulidade e o desprezo por nada oferecer de concreto às crianças, além de algumas horas semanais de recreação – o que eles poderiam fazer fora do horário da escola. Para mim, o tempo e o espaço de encontro na biblioteca deveriam ser usados de forma mais profunda e poderosa, como um processo de autorreconhecimento e de conscientização política e histórica.
Havendo a opção, eu tentaria tratar daquilo que me parecia ser mais urgente do que sua ilustração literária linear, considerando a microfísica local de poder que cercava aqueles indivíduos no espaço escolar. Eu estava consciente dos riscos que corria ao desvelar uma tomada de consciência apoiada na visão burguesa das relações sociais (a equação poder-solidariedade).
Havia o risco de distorcer a visão de mundo dos alunos-leitores com minhas boas intenções, separados por uma tênue linha do perigoso jogo dos feitos caritativos, aqueles que transformam o pobre e oprimido em patológico e inadequado. Além disso, por reconhecer a existência de um espaço social mais amplo que a sala de aula ou a biblioteca como local de diálogo, eu questionava até que ponto poderia efetivamente haver uma ação dialógica na prática imediata e cotidiana, já que eu mesma não conseguia dialogar com a maioria das professoras, que desvalorizavam as brincadeiras inconsequentes da biblioteca e, consequentemente, ignoravam de forma consistente o processo de cidadania pela leitura. Apesar de fazer parte do corpo docente da escola, atendendo a todas as turmas do primeiro turno, nunca fui chamada a participar dos conselhos de classe, nem das tomadas de decisão envolvendo alunos.
Dentro da biblioteca, não havia dúvida de que a primeira necessidade pedagógica era a compreensão dos papéis de cada indivíduo como membro de um grupo social no processo histórico de cidadania. À medida que ocorriam modificações nos comportamentos dos alunos-leitores, eu fazia o registro como observadora participante, inventariando cada trama daquele tecido numa espécie de diário. Desprezando dados quantitativos e sem testar especificamente a aquisição de conhecimento formal da língua pela leitura, limito-me a fazer afirmações de caráter qualitativo observadas, registradas e confirmadas nas reações a textos lidos e pelas situações vividas na biblioteca. Posso afirmar, com bastante tranquilidade, que o resultado amplo da ação dinamizadora da leitura na biblioteca pôde ser verificado na modificação profunda da autoimagem de cada aluno, bem como da visão política do universo social imediato dos grupos de alunos-leitores pelo estudo, cultivo, rearrumação e constituição do self (Said). Naquele contexto, tais modificações tiveram significado ainda maior.
Resumidamente, eu diria que, com cada texto, aprofundamos a busca pelas origens do tema de cada dia, lendo e relendo a palavra com os sentidos, as emoções e a construção do pensamento lógico. Antes e depois de cada texto escrito, sem limites nem fronteiras artificialmente erguidas. Éramos cerca de quatrocentos leitores divididos em oito turmas, eu inclusive, encontrando-nos três vezes por semana, durante três anos letivos, de março de 1986 a dezembro de 1988. A cada dia a entrada na biblioteca era festiva; as relações entre os alunos foram se construindo gradativamente de forma mais consistente e fraterna, ultrapassando a fragmentação anteriormente percebida. Nossas conversas eram abertas e não censuradas, abordando qualquer tópico que fosse do interesse do grupo a cada encontro. Às vezes brigávamos, discutíamos, divergíamos. Desde a conversa inicial, que fundamentaria a escolha do texto a ser lido em voz alta, até a escolha da atividade pós-leitura.
Considero que a apropriação concreta de cada texto literário ocorreu de uma forma mais plena, antes, durante e após a leitura, na manipulação crítica de um título, de um personagem, na proposta de desvio dos rumos dados pelo autor à história. Segundo nossa vontade, alterávamos a trama, a ordem, o início, o meio ou o fim, em acordo ou desacordo com o texto. Mudávamos o título, personagens, cenários e características espaço-temporais. É preciso deixar claro que, desde o início, houve a opção por utilizar apenas textos literários escritos para jovens leitores, na maioria nacionais, embora algumas traduções interessantes tenham sido incluídas, principalmente as de clássicos da literatura mundial. A exclusão de revistas em quadrinhos não teve qualquer caráter elitista ou discriminatório. Confiei que o acesso dessacralizado ao texto literário, via de regra associado a poder, poderia auxiliar a elevação da autoestima pessoal e social de alunos-leitores.
Atos de apropriação do texto literário praticados pelas mesmas crianças que, no início do processo de dinamização da leitura, acreditavam que a inacessível biblioteca era de minha exclusiva propriedade, demonstram ter havido um processo de transformação capaz de afetar suas camadas mais internas de percepção do mundo: trabalhamos sobre nossas autobiografias pessoais e sociais. A voracidade de leitura se traduzia na aceleração dos empréstimos, nas tentativas de persuasão de que um título era melhor que outro, na elaboração de esquemas gráficos de reconstrução de textos para apresentação aos colegas. Reitero que não havia julgamento de valor nem atribuição de nota na biblioteca, nem eu participava – como dinamizadora das atividades de leitura na biblioteca – da avaliação geral dos alunos. Valorizando a oralidade, a liberdade de uso da palavra, a atividade criativa e a valorização dos patrimônios culturais e familiares, lidamos com questões de autoconfiança, autoestima social e individual. As relações internas no grupo foram afetadas, bem como as relações externas, relativas à comunidade extraescolar, por meio da consciência de sua participação no processo de cidadania democrática. Tais questões eram representadas pelo livre acesso à biblioteca, um cômodo com um crescente número de livros, que eles aprenderam ser sua propriedade e uma extensão de seu mundo.
A maioria das perguntas nunca termina; elas voltam como questões novas ou redirecionadas. As dificuldades curriculares não são simples, unidimensionais ou estáticas, sendo, portanto, altamente desafiadoras. Ensinar é, basicamente, uma tarefa cheia de perguntas complexas. Construir de forma conjunta um tempo e espaço de leitura – de texto e contexto – faz parte da complexidade da ação de educar. Portanto, sujeitos distintos em situações novas, em outras escolas e outros níveis de escolaridade, vão requerer um olhar sempre novo para os problemas relacionados à educação literária.
Publicado em 3 de setembro de 2013
Publicado em 03 de setembro de 2013
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