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Entrelaçando Paulo Freire e Leonardo Boff

Palmyra Baroni Nunes

Educadora e mestre em Linguística Aplicada ao ensino de Inglês

Ultimamente, tenho pensado bastante sobre o legado deixado por alguns escritores comprometidos com ideais que alicerçam ou deveriam alicerçar os princípios da Educação em nosso país. Pessoas que trazem sérias reflexões sobre a importância da prática docente nas salas de aula e de seu impacto em nossa sociedade. Considero aqui, dentre vários, Paulo Freire e seu livro Pedagogia da Autonomia e Leonardo Boff e o livro A águia e a galinha, para revisitar algumas questões norteadoras de tais práticas.

Os dois autores, em seus livros, tratam a ação docente como algo que liberta, dando tanto ao educando quanto ao próprio educador condições de modificar a sua própria realidade social e, a partir daí, mudarem o que está ao seu redor. Educação só tem sentido se for para promover avanços individuais que reflitam na melhoria do coletivo, pois, alunos e professores são seres sociais que, além de fazerem parte da História, também fazem História.

O tópico a ser abordado neste entrelace é a distinção feita por Paulo Freire entre dois tipos de curiosidade: curiosidade domesticada e curiosidade epistemológica. Enquanto a primeira leva em conta a valorização da memorização mecânica, reprodutora de conceitos, sem que haja sua problematização, a segunda convida à construção do saber inacabado do educando e do educador, levando a críticas, reflexões mais profundas daquilo que se ensina e daquilo que se aprende. A curiosidade epistemológica permite que façamos parte de um mundo que realmente existe, entendendo quais são as interferências que causamos e sofremos neste mundo, onde

[ensinar] e aprender têm que ver com o esforço metodicamente crítico do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar. Isso não tem nada que ver com transferência de conteúdo e fala de dificuldade mas, ao mesmo tempo, da boniteza da docência e da discência (Freire, 1996, p. 134).

A curiosidade epistemológica consiste, então, em um processo de interação entre quem ensina, quem aprende, o que se ensina e como se aprende.

Por outro lado, a curiosidade domesticada serve para limitar, tolher, o que, na visão de Leonardo Boff, traduz-se na comparação de pessoas a águias que estão sempre sendo tratadas como galinhas, ou seja, sempre sendo impedidas de alçar voos mais altos, devido à sua condição de galinha, que impõe vários obstáculos, impedindo a sua própria libertação.

O ser humano é reduzido pelo próprio ser humano à dimensão galinha, nunca podendo ir além daquilo que ele acredita ser, nunca tendo a oportunidade de transformar sua curiosidade domesticada em curiosidade epistemológica e, assim, numa visão míope, nunca enxergar o mundo e suas possibilidades “além da cerca mais próxima” (Boff, 1997, p. 102).

Aprendi, ao longo de minha prática pedagógica, que todo processo educacional é político – não no sentido banalizado da palavra, de formação ou apoio de partidos, mas no sentido de promover ações. Dentro da sala de aula, professores e alunos constroem e trocam experiências; muitas vezes, nessa construção, libertam-se das correntes que os prendem à dimensão galinha, à curiosidade domesticada, compreendendo o mundo e sua realidade para modificá-lo.

Nessa prática político-pedagógica-transformadora há que se levar em consideração a leitura do mundo, leitura esta que consiste na valorização da experiência do professor, do local em que atua, dos educandos aos quais ensina, do material que usa e daqueles que constrói a partir desse mundo em que está inserido. A sala de aula não é via de mão única nem pode ser usada para práticas estrangeiras de métodos importados, dissociados daquilo que se vê, que se tem, com a transformação do conhecimento em objeto a ser memorizado. Se assim for, como, segundo Freire, transformar “a educação em uma forma de intervenção no mundo”? (Freire, 1996, p. 110).

Pensar em professores e alunos como galinhas, presos em seus cercados de ideias e conteúdos repetidos, é inibir a curiosidade do educando e do educador, negar sua ação no mundo, sua força de transformação política, sua produção de conhecimento; é condená-los a viver para sempre reproduzindo ideologias, sem nunca avançar.

Como seres históricos, professores e alunos devem viver “a História como tempo de possibilidade, e não de determinação” (Freire, 1996, p. 84), e não devem se contentar em “ser somente galinhas, (...) encerrados em [seu] pequeno mundo” (Boff, 1997, p. 102).

Que o desenvolvimento da curiosidade epistemológica seja uma prática mantida em nossas escolas para que a chama do prazer de ensinar e de aprender não seja apagada em tempo algum, por quem quer que seja e, assim, permita o (re)nascimento e libertação da águia que existe dentro de cada um.

Publicado em 17 de setembro de 2013

Publicado em 17 de setembro de 2013

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