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Degase: pensando uma nova escola de inclusão cidadã

Prof. dr. Eduardo Marques da Silva

Doutor em História Social (USP)

Introdução

Ao abordarmos o assunto em tela centramos nossos olhares no que consideramos constatação definitiva de nossa realidade urbana vivida cotidianamente e nos perguntamos: quais razões nos impedem de transformar tudo agora? Qual a razão de nos mantermos atrelados a velhos costumes que hoje só nos servem para acobertar velhas doenças sociais? Que História Social é essa que nos orgulha tanto, se sob seu manto se esconde algo tão improdutivo, retrógrado, ineficiente e profundamente antieducativo como a fábrica de exclusão social em que se configurou nosso universo social capitalista tupiniquim? Onde estará a tão decantada cidadania em nosso meio? Somos todos responsáveis!? O exército de desempregados que temos nos orgulha tanto assim? É mais fácil educar para o crime ou para a civilização? Uma coisa nos é clara, cidadania definitivamente se ensina preferencialmente nas escolas. Sendo assim, prender, punir, dentre outras tarefas, são complementares, finais, excepcionais, emergenciais, últimas, nunca principais, tão comuns que se tornam vulgares. O poder que o Estado tem de reprimir, monopólio absolutamente seu, deve ser usado com mais inteligência. Parece que até aqui não aprendemos bem os ensinamentos de Maquiavel.

O exercício da cidadania no Brasil definitivamente é precário (Vlasman, 1998) em comparação com os centros avançados de nosso planeta, especialmente das camadas mais populares de nossa sociedade urbana, em que a convivência híbrida e complexa permite um inchaço pós-explosão demográfica experimentada no século XX. É visível um total sentimento de letargia em nossas escolas alimentadas pelas parcas respostas dos frutos de seu trabalho. Vivemos em um país que, na ânsia desesperada de procurar sua identidade maior, esbarra em seus próprios medos. Pesa em seus quase quatro séculos de escravidão, emoldurados por uma história longeva de autoritarismo mandonista, o simbolismo espectral de um conjunto complexo de famílias nucleares conviventes da mais absoluta diversidade coletiva, porém cultivadora tradicional de paradoxais características de comportamento. Nossa organização política e nossa formação social, notadamente a urbana, são repletas de profundos contrastes. Este artigo tem o propósito de verificar um lado até agora obscuro da sociedade brasileira no que se refere ao exemplo mais trágico e provavelmente desastroso: o Degase.

O breve século XX e seus abalos: reflexos sociais

O século XX, responsável por um forte solavanco socioinstitucional, especialmente no continente sul-americano, deixou outras marcas entre nós. A velocidade dos acontecimentos, embalada pela infomotricidade (Oliveira, 2002, p. 200-201) dos novos tempos, e os abalos e mudanças causados pelos avanços da infotecnologia comprometeram toda a nação, alterando-lhe hábitos e costumes cotidianos. Rapidamente nosso espaço urbano se viu inserido em um mundo marcado por crise de paradigmas denunciadores do nosso verdadeiro estado de descompasso (Sevcenko, 2001, p. 11/23; Novello, 1988), face ao dinamismo da modernidade exterior. O resultado mais calamitoso foi constatarmos que tínhamos sido inexoravelmente surpreendidos pela “perda do bonde da história”.

A soma de elementos novos no cenário do capital e de suas formas de acumulação o transformou em uma sombria novidade para muitas sociedades modernas: a infovelocidade, um elemento que conseguia juntar cena, cenário e personagens sinergicamente, fazendo surgir um novo tipo de objeto do conhecimento, o infobjeto. Este, por sua vez, correlato a uma também nova noção de sujeito do conhecimento (Oliveira, 2002), nos desafia com latência. Com ele, espaço, tempo, substância, indivíduo e universo sofrem transformações essenciais, alterando o estatuto do ato de conhecer. Agora fica mais claro habitarmos e sermos parte de um todo muito mais dinâmico, evolutivo, inacabado, de uma totalidade aberta, histórica dotada de pré-história tanto quanto de contexto (Novello, 1998). Novas geografias se abrem onde os espaços se configuram na dissipação, habitantes distantes do equilíbrio, muito mais imprevisíveis do que antes. Preparados para inserir hierarquias sofisticadas de organização, bem como comportamentos ricos em potencialidades de evolução e riscos, tornam-se capazes de levar o ato de pensar a abdicar de pretensões mecanicistas e lograr controle absoluto. Correlato de previsibilidades sem limites, principalmente sobre os processos do mundo natural (Stewart, 1991) ou da natureza dos vários mundos, apresenta-se como novidade assustadora.

Como denominou Thomas Kuhn, a Revolução Científica Contemporânea motivou toda uma nova compreensão acerca da realidade física básica, acarretando a instalação de uma imagem renovada de mundo, com marcas muito originais: a “imagem da complexidade” (Morin, 1987), infocomplexidade. Lidamos hoje com alguns sólidos conceitos, como os de ordem – visto como um estoque primordial de organização (de que algum deus dotou o mundo para que ele viesse a sê-lo) – e desordem (ou, se quisermos, caos) – desvio, perversão, degradação ou ruína da ordem (Novaes, 2002). Lidamos com algo mais singular e identitário em nossas vidas, como a auto-organização, a qual se processa a partir do influxo caótico, ruidoso de estímulos dos ambientes endógenos e exógenos do sistema social em que vivemos, principalmente o que pomos em questão aqui (Atlan, 1996).

Neste contexto se insere a sociedade paralela (Silva, 1996), cujo grau de organização ultimamente nos atormentou. A escola de favela, produtora dos frutos mais indesejados na sociedade oficial, possivelmente é a última etapa do seu processo de multiplicação. Sua aparente auto-organicidade, queremos crer, mimeticamente, provavelmente é também resultado de influências exógenas pela nossa condição de nação mais receptora do que distribuidora. Foi capaz de capturar nossos menores excluídos, retirando-os de forma legal do ato de produzir para viver pelo mais absoluto despreparo e desqualificação profissional. O cinismo é de todos nós, a sociedade fluminense fecha os olhos justamente em horas especiais de socorro. Insiste em não se ocupar e se preocupar com seus filhos despossuídos, abandonados, independentemente da cor da tez ou mesmo origem e credo.

Uma formação histórica social ainda sem saída!?

Certamente a saída para o problema que estamos tratando aqui é o trabalho. Contudo, há de se verificar que tipo de ocupação formativa se poderá oferecer aos que praticaram infrações. Não sendo criminosos, sequer tendo noções básicas de ser cidadãos, os menores infratores devem ser formados para uma vida de inclusão. A construção de um CIEP diferenciado, que congregue a proposta de PAI (Plano Alternativo Integrado), envolvendo educação, justiça e polícia, uma pedagogia especial que crie hábitos civilizatórios; um trabalho maior de educação cidadã, que vise à divulgação do sentido real e equilibrado de justiça e a inexoravelmente fundamental, mas, com a prática de uma violência inteligente, especifica e especial e que não reproduza violentos, presença de uma polícia educativamente corretiva. Talvez possa ser uma saída oportuna e produtiva para a gigantesca complexidade do problema.

Tudo isso com olhos voltados para um futuro de inserção no mercado de trabalho legalmente produtivo e civilizado. O PAI deve ser pensado absolutamente integrador e municiado por conselhos que se reúnam quinzenalmente no mês para rediscutir e redirecionar metas, triar informações, determinar comportamentos. Deve ser municiado por ouvidores sensíveis capacitados a perceber a mínima mudança de comportamento e/ou ação que leve à insegurança e à negação do sistema. A ocupação total dos internos deve ser o mote central do PAI, que deve variar do formativo ao informativo no trabalho pedagógico. Induzindo o interno ao lúdico e, se possível, ao self-lúdico. O misto segurança/educação deve ser privilegiado, cabendo ao trabalho de reengenharia táticas e estratégicas a elaboração do mesmo sem ferir o corpo do projeto.

Seguramente não se deve desprezar o maior invento da revolução cientifica recente, que foi o infomotor, capaz de permitir o deslocamento em grandes distâncias com o mínimo movimento físico. Ele é capaz de possibilitar a mais rápida tradução das várias linguagens que sempre nos confundem em ambientes complexos, como o da violência extrema vivida nos lugares que abrigam pessoas infratoras. Não podemos nos abster da infotecnologia. Não devemos mais viver regozijando-nos da perversa reprodução de senzalas modernas, com capatazes uniformizados ou não, mas que ainda não passaram da habilidade de dar chicotadas. Não podemos mais nos alimentar de velhas novidades modelares que, quando muito boas, não passam de exemplos melhorados de casas dos expostos do Império em plena era da cibernética. Temos que mudar, e o PAI pode ser um início de solução humanamente adequada. Temos que pensar que só caminharemos se avançarmos envolvendo os três setores citados numa tarefa única e determinada. Uma ação que possa integrar razão concreta e a razão sensível na tarefa educativa de construir a cidadania em quem nunca a conheceu.

As velhas novidades ocupacionais pelas quais optamos até aqui precisam sofrer uma releitura para operarem reais mudanças. O trabalho deve ser visto, por um lado, com olhos cuidadosos de artesão; por outro, com a praticidade e urgência da velocidade dos nossos dias modernos. Não podemos mais fabricar desempregados que irão delinquir por razões vulgares como sustento, alimentação, moradia. A cidadania implica direitos, deveres e participação coletiva e organizadamente civilizada.

O advento da robótica associada à informática suplantando o fordismo da primeira metade do século XX como modelo de aceleração e eficiência das práticas de produção trazia consigo mudanças que nos afetariam muito mais do que imaginávamos. No amanhecer da segunda metade do século XX nossos governantes vivificavam, impregnados de populismo, a megalomania em seus projetos, geradora de um imenso corolário de prejuízos futuro. A pretensa Revolução de 1964 iniciava uma forma de governar que até os seus estertores foi promotora de uma evasão de talentos jamais vista em nossa história. Uns por questões políticas, outros por razões até que a própria razão desconhece.

Por ser uma ditadura, a população oprimida sentia a força da propriedade do poder de punição que o Estado sempre fazia questão de ostentar. Por ser militar, o governo dificilmente conseguia assumir caráter popular tanto no perfil quanto na prática do poder. Enfim, vivíamos nas universidades, durante o período em questão, a tutela da ordem. O ensino das sombras e a cultura do medo marcavam relações entre docentes e discentes dentro de um ambiente manchado por violência, controle, coerção e ameaças constantes.

Depois, mergulhamos em um processo frenético de reconstrução que simulava acelerações e freios repentinos nas leis e emendas, sempre com o objetivo de reencontrar o rumo perdido de nossa combalida academia. O estrago havia sido grande! A educação se encontrava diante de um imenso desafio: reconstrução ou construção?

Insistimos na necessária tarefa de mapear o que pode ser feito na relação entre a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a (re)construção da cidadania em nosso país. Não podemos negar e subverter o verdadeiro sentido e objetivo do ensino da cidadania. Suas características são claras.

O Dicionário Globo de 1993 registra: “Cidadania: Qualidade de cidadão – qualidade de uma pessoa que possui, em uma determinada comunidade política, o conjunto dos direitos civis e políticos”. Na Enciclopédia Abril de 1972 está: “Cidadania: portador de direitos e privilégios individuais, os direitos civis, políticos e sociais”.

Ao observarmos o conceito de cidadania tomando por base a Constituição, concluímos que ela tem sido muito mais imaginada que vivenciada. Implica formalmente sempre direitos e deveres observados e cumpridos no tempo em que a lei está em vigor. Abordando do ponto de vista das expectativas do legislador, fica clara a afirmação de que todos devem tê-la assegurada. O direito à educação, inclusive, é um dos principais, uma vez que cidadania se ensina (Oliveira, 1992; Gentilli; Frigotto, 2001; Mello, 2000).

Podemos observar que os excluídos sociais (Perrot, 1991, p. 238; Schimith, 1990; Silva, 1996; Silva, 1987; Bastos, 1987), sem direito a posse de terra, alijados da oportunidade de lucro gerado por sua produção, por serem maioria, configuram em seu conjunto um quadro singular de desigualdades. Ao longo do século XX, desenharam-se novas formas de vida urbana. Construíram-se outros mundos sociais urbanos dentro da mesma geografia social complexa de nossas cidades, principalmente no Rio de Janeiro.

Em nosso país, a promoção e a configuração de um quadro social que já não mais pertence oficialmente ao mundo dos incluídos é hoje algo assustador. O pesquisador peruano Hernando de Sotto, em sua obra O mistério do capital, afirma tratar-se também de um fenômeno mundial. Porém, notamos que todos os excluídos carregam uma desesperada e insistente permanência: o contato com suas origens culturais identitárias.

Como denominarmos tal contingente? De Sotto afirma que são pessoas que possuem casa própria, registros em cartório, identidades, mas vivem no desemprego absoluto por mais de oito anos. Famílias inteiras compõem universos sociais distintos, culturas distintas e certamente escolas e saberes distintos. Hoje, na América do Sul, 78% da população urbana estão mergulhados na referida condição. O Estado não os vê? Não são cidadãos? Como classificá-los? De Sotto os classifica como extralegais. Alguém pode viver assim por muito tempo?

Economia subcapitalizada é pobre vendendo para pobre, ou seja, geografia social da produção onde proliferam as indústrias de fundo de quintal, comércio clandestino, etc. (De Sotto, 2000).

O mais aterrador de tudo é que a pesquisa de De Sotto afirma que na América do Sul possuem e movimentam quase US$ 1 trilhão em suas propriedades (moradias). Como isso pode existir sem que o Estado perceba? São cidadãos ou não cidadãos? Se cidadania se ensina, o que tem feito a escola até aqui? As economias subcapitalizadas praticadas pelos extralegais representam uma temeridade para o Estado. Trata-se de um caso de polícia, justiça ou de direitos humanos? O Estado regulacionista (Santos, 1996) hoje se mostra desnudo e totalmente incapaz de realizar mudanças no presente campo. Um Estado que serve a apenas 22% de privilegiados tem presença duvidosa para a totalidade de sua nação. Teria sido seu maior pecado a permissão da proliferação da pobreza e da profunda desigualdade social sob a insana alegação de ser apenas um resultado de um jogo capitalista? As perguntas irão continuar sem resposta até que se tenha mais seriedade com a coisa pública e popular.

O setor urbano, o grande centro nervoso de nosso sistema cultural e empresarial, possui no interior de sua grandeza sua fraqueza, uma vez que passa a comportar e compartilhar realidades diversas – cultura de favelas, cultura de mendicância etc. convivem numa mistura complexa na mesma geografia social em que estamos num quadro nunca previsto antes (Ventura, 1994). Os habitantes de São Paulo e Rio de Janeiro vivem uma estranha ditadura (Forrester, 2001; Guinsburg, 2001; Hobsbawm, 1995; Lemos, 2001). Uma ditadura de loucos e insensíveis que não sabem por onde começar a obra de recuperação.

Mano Brown, cantor de rap, diz no disco de Almir Guineto que: “Deus usa os loucos para confundir os sábios”. Está na hora de levarmos a sério sua existência entre nós. Há no urbano fluminense, tanto quanto no paulistano, um convívio perigoso e conflitivo que não se reduz ao que Louis Chevalier (1958) denominou “classes perigosas”: a favela é a face da violência explosiva, assim como as violências gravadas no defensivismo de seus vizinhos remontam à resistência declarada no Império aos nossos casebres e cortiços, esconderijos que surgiram sob a forma de toscas habitações construídas com restos de madeira e caixotes. Dentre a população urbana esquecida concentrada nessas moradias improvisadas, encontravam-se “pessoas turbulentas e capoeiras” (Carvalho, 1987, p. 15-36).

Como naquela época, hoje, principalmente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, os centros urbanos convivem com uma forma de capitalismo sombrio (Zaluar, 2002), cujos componentes e participantes não possuem expectativas do exercício da cidadania plena. São como sombras, vivendo do multifacetado comércio extralegal, personagens de uma vida repleta de características comportamentais concretamente legíveis, as quais o nosso urbano insiste desconhecer.

Num primeiro momento, a presença de práticas escravistas entre nós foi marcante. Quase quatro séculos de chicote e pelourinho construíram aqui uma sociedade do medo. Agora, a permanência de hábitos que remontam àquela época, como o mandonismo e a insensatez da herança europeísta faz-nos perder o senso de percepção das radicais mudanças que sofremos. Ter emprego ou trabalho formal faz parte de um quadro em profunda transformação crítica.

O cidadão brasileiro, particularmente o fluminense e o paulistano, à luz da Lei de Diretrizes e Bases torna-se um desafio ao olhar crítico de qualquer pesquisador sério e preocupado com as novas abordagens que o mundo social exige. Diversos profissionais de várias áreas de trabalho criticam e reclamam de maneira contumaz da má formação educacional. A gritaria é geral e exprime a nossa total impotência diante do complexo quadro social. A escola se encontra sucateada e incapaz de realizar os objetivos traçados para um razoável trabalho de resgate.

A LDB (Lei nº 9.394/96) afirma, no primeiro parágrafo do artigo 1º, sob o título Da Educação, que: “Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente por meio do ensino, em instituições próprias”, responsabilizando a escola diretamente pela transmissão do ensino que ao final pretende uma educação cidadã. O que seria essa educação escolar? Qual o seu objetivo maior? Estaria a escola pronta para tal obrigação diante dos desafios que se apresentam hoje no urbano fluminense, principalmente como a escola de favela (escola não formal composta por hábitos socioculturais do híbrido das áreas de favelas onde convivem várias formas de excluídos sociais de uma cidade macrocéfala)? Temos muitas dúvidas e indagações acerca de tudo isso. Sabemos que não há condições ideais, no curto prazo, para a plena execução do desejo que expressa a lei. Contudo, também sabemos que cidadania, saber e verdade, como diz Habermas citando Nietzsche, escondem interesses que nem sempre são claros: Dificilmente alguém conferiu de forma tão integra e conseqüente como Nietzsche, os interesses que estão por detrás daquilo que chamamos de conhecimento, saber, ciência, verdade...” (Habermas, 1987, p. 20).

A cidadania implica possibilitar construir e se apropriar do conhecimento à classe que sofre o poder da mídia. Significa permitir a compreensão dos mecanismos de dominação. O reconhecimento desse aspecto político da educação responsabiliza profissionais educadores a produzir a dinâmica que move o processo de invenção social e de um novo paradigma pedagógico e metodológico (Soares, 2003, p. 28) e próprio das relações democráticas. São profissionais capazes de assumir valores estéticos que inspiram a organização da suas práticas pedagógicas e curriculares, conscientes da importância da formação e autonomia do outro. Soares afirma ser tudo uma questão de identidade. Respeito ao ethos, à arquitetura que se orgulha da originalidade e do seu design matriz.

Observando o segundo parágrafo da LDB constatamos que vincula a escola ao mundo do trabalho e à prática social, que nos remete ao seu segundo artigo que diz: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o livre desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da sua cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A lei imputa o dever da educação a duas instituições com várias facetas, como o Estado e a família. Qual família? A nuclear, que hoje passa por uma crise de identidade nunca vista? A rica, a pobre, ou ainda a família do extralegal? Será que o Estado (Tort, s/d), por seus representantes, aprova e sanciona leis em benefício próprio e deixa a escola e outras instituições sem condições de oferecer serviços de qualidade à população por pura intenção? Qual padrão seguir diante do difícil quadro de complexidades sociais em que estamos mergulhados? Decerto o comportamento dualista, nitidamente perceptível no pensar e no agir de nossos governantes, ainda pode ser considerado um grave e ameaçador entrave à realização de nossos sonhos.

Temos certeza de que o exercício da cidadania imporá sempre algumas respostas, mesmo em sociedades complexas de cidades macrocéfalas. Ao observarmos o Art. 3º da LDB notamos verdadeiros desafios educacionais: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções ideológicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e particulares; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; garantia do padrão de qualidade; valorização da experiência extraescolar; vinculação entre a educação escolar, trabalho e práticas sociais”.

A civilização capitalista precisa urgentemente, sob pena de desaparecer, de um choque de humanidade por meio de práticas pedagógicas diárias que promovam a inclusão social. Ela deve ser uma prática permanente, contínua, capaz de garantir o efetivo convívio para a paz. Definitivamente nossa escola tem que parar de ser sucateada. Ela tem que permitir ao Estado a promoção das garantias do bem-estar e bem-viver. Garantir uma nova escola, moderna, inclusiva, especial no trato e na sensibilidade, cujo ensino da cidadania seja fundamental, é condição sine qua non para o novo desenho que o mundo social complexo exige. Tem que ser uma escola identificada com nossa realidade cotidiana no interior do espaço urbano por onde despontam desordenadamente socioculturas desafiadoras, multitribalizadas, herméticas e aparentemente intransponíveis.

Entrando no terceiro milênio como o próprio contrassenso do paradigma:

Na corrida para o século XXI, uma das sensações mais intensas e perturbadoras que se pode experimentar é o passeio na montanha-russa. É preciso que se tenha coragem, pois a adrenalina é alta, podendo acarretar consequências imprevisíveis. Qualquer pessoa pode dar uma volta por livre e espontânea vontade ou influenciada por terceiros com receio de demonstrar o seu medo, mas depois que se ingressa em tal brinquedo o corpo experimenta as mais diversas sensações.

O primeiro movimento não demonstra o que realmente está por vir: uma subida lenta, como se fosse um passeio agradável de fim de semana no bondinho do Pão de Açúcar contemplando a cidade. De repente... o brinquedinho despenca arrancando gritos de desespero e pavor como se todos os nossos órgãos fossem saltar pela boca seguidos de um tranco... Uma nova subida, sensação de tranquilidade; o que nos espera é outra descida, parecida com a primeira, só que acrescida de oscilações para a direita e esquerda como se estivessem nos aparafusando. Subimos e descemos outra vez fazendo as curvas que antes achávamos impossíveis de serem feitas.

Por incrível que pareça, o pior ainda estava por vir: o loop: uma volta completa no vazio, em que a única coisa que temos como certa é despencar de cabeça para baixo. Depois dessa voltinha, será que ainda sentimos medo de alguma coisa? Não, nada mais nos assusta e ainda conseguimos compreender a lição da montanha-russa, que significa estar exposto às forças naturais e históricas agenciadas pelas tecnologias modernas. “Aprendemos os riscos implicados tanto em se arrogar o controle de dessas forças quanto em deixar-se levar de modo apatetado e conformista por elas, o que não nos impede de suspeitar das intenções de quem inventou essa traquitana diabólica” (Sevcenko, 2001, p. 11-23).

Com o auxílio metafórico da imagem da montanha-russa podemos perceber bem o que nos espera. Para indicar algumas das tendências mais marcantes do difícil desafio temos que ter claro que as exigências de resultados serão freneticamente esperadas. Para tanto, precisaremos dividir tarefas, cumprir funções e rigorosamente ficar atentos às novidades e a qualquer previsibilidade possível.

A primeira fase deverá ser a da ascensão contínua, metódica e persistente, prudente, criteriosa, pois não mais conhecemos o terreno em que estaremos prestes a ingressar. Apesar dos vários sinais, não podemos esquecer que são apenas sinais. Pode representar um período de reconhecimento do que herdamos. Desenvolvido em tecnologia provavelmente diferente, devemos estar preparados para qualquer desafio. Tecnologia se substitui, principalmente se for para assegurar o domínio geográfico do poder ou dos poderes. Cortar suas fontes de energia é a prognose mais correta, pois, perdidas e enfraquecidas, elas mesmas se suicidam; criar novos meios de transporte e comunicação com o fito de estabelecermos conexões mais eficientes. Municiar e aparelhar os vários setores de armamentos e conhecimentos especializados.

A segunda fase nos leva à aplicação de teorias científicas que geralmente propiciam o domínio e a exploração de novos potenciais energéticos. Aí se faz mister um cuidado especial: o preparo de profissionais adequados para o trabalho. Eles são a ponta do fio que, em contato constante com o ambiente de trabalho, capta e conduz informações que municiam nossos bancos de dados, capacitando-nos a agir. Tais tarefas devem ser conduzidas por pessoas treinadas e tecnicamente preparadas.

No mesmo impulso desenvolveremos mais ainda novos meios de transportes de informações, como a transdisciplinaridade fluindo pela informática, tornando o sistema um sistematizador capaz de atrair e concentrar o controle de toda a sistêmica inclusão social cidadã. Novos meios de comunicação podem ser usados para garantir a segurança. Porém, não se poderá perder de vista o fato de tudo que se fizer terá o caráter educativo maior. É preciso lembrar que não estamos lidando com criminosos, e sim com menores infratores recuperáveis do Degase.

Não podemos permitir a irrupção da grande guerra do tráfico que se trava hoje contaminando o Degase. Há um descortiçamento de um mal benéfico, pois serve para fecundar o bem, fazê-lo pensar dentro de um cenário, tudo agravado pela presença utilitária da infotecnologia (tanto pelo bem como pelo mal).

A terceira fase representa os atuais períodos assinalados por novos surtos dramáticos de transformações, a revolução da microeletrônica que beneficiou a todos. Tivemos desde o dirigível de alta tecnologia até o telefone celular, o computador e o fax em mãos de criminosos. A aceleração das inovações tecnológicas chegou a mãos perigosas. Agora se dá uma escala multiplicativa de acontecimentos, em que a ampliação, a condensação e a miniaturização de seus potenciais e capacidades diante de um Estado que se encontra enfraquecido podem abrir um universo de possibilidades e expectativas imprevisíveis. Resta saber para quem.

Não podemos prever o curso e o ritmo das inovações tecnológicas, mas podemos fazer muitas coisas fantásticas e benéficas com a técnica. Mas a técnica não pode abolir a crítica. A partir desse elemento retroalimentador é que desenharemos as sugestões para o Degase.

Neste momento turbulento, é imperativo investir nas funções judiciosas, corretivas e orientadoras do disciplinamento crítico. Devemos adotar uma estratégia baseada em três movimentos distintos: o primeiro consiste em conseguir desprender do ritmo acelerado das mudanças atuais todo o sistema existente, para que possamos articular um discernimento crítico, o qual nunca conseguiríamos estabelecer se nos mantivéssemos colados às vicissitudes das próprias transformações, principalmente em se tratando do menor infrator recuperável.

O segundo requer que recuperemos o tempo da própria sociedade, hoje amedrontada, que nos fornece o contexto no interior do qual podemos avaliar a escala, a natureza, a dinâmica e os efeitos das mudanças recentes.

O terceiro movimento seria, então, sondar o futuro a partir da construção e da crítica em perspectivas históricas tanto presentes quanto futuras. Concluímos então que esta reflexão não deve se limitar aos interesses da sociedade e às gerações atuais; para enfrentar é preciso desdobrá-lo nos seus três âmbitos: presente, passado e futuro daqueles que se encontram internos, mas em condições de recuperação.

Há ainda a questão das transformações tecnológicas, que pode obscurecer as referências do espaço. Foi esse o efeito que nos levou a formular conceitos novos, como o de exclusão social, tribalismo, neotribalismos, cultura do crime e da violência.

Nosso sustento depende disso. O resultado deve ser a paz, a meta deve ser o cidadão e a sua cidadania, o objetivo maior é ser sistemático no fazer ligado à capacidade de criação. Produzir para a vida e principalmente para viver é o que interessa para os que devolveremos à sociedade. O quadro que temos é alarmante e caótico. Podemos verificar por um estudo que observou os ingressos no sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre julho/2000 e maio/2002, que passaremos a analisar.

Análise crítica do estudo Perfil bio-psico-social dos apenados que ingressam no sistema penitenciário

O estudo sobre o perfil bio-psico-social dos apenados que ingressaram no sistema penitenciário do Rio de Janeiro nesse período verificou um total de presos entrevistados (3.630 homens e 287 mulheres) correspondendo respectivamente a 76,9% dos ingressos masculinos e 60,4% dos ingressos femininos, portanto uma amostra quantitativa significativa sobre a questão. Nota-se que o ingresso masculino é gigantesco em relação ao feminino (90,8% sexo masculino). Há de se questionar quantos dos envolvidos em tal contingente já eram ou se tornaram homossexuais pela pressão múltipla do ambiente que os envolvia. Não podemos desprezar o fato de atos violentos ocorrerem entre eles ou elas nesse sentido, caso o sistema penitenciário não apresente espaço de relacionamento e ocupação que tome a totalidade do tempo dos internos.

Outro fator significativo apontado pela pesquisa é que entre os homens há um forte predomínio de jovens entre os 18 e 25 anos de idade. São, portanto, jovens adultos com conceitos morais deformados ou mal formados. Certamente entre eles o poder ainda se alicerça em atos que mensurem pela força e presença sua territorialidade. Provavelmente o mesmo não ocorre entre as mulheres presas. Notamos equilíbrio de idade que merece atenção especial. A faixa etária (praticamente metade delas tem entre 26 a 40 anos) inspira cuidados especiais. Provavelmente muitas são queixosas de uma vida de desamparo. Contudo, diferentemente dos homens, apenas 14% delas têm entre 18 e 21 anos, o que pode gerar uma sinalização de menor mimesis.

A maioria se constitui de brasileiros naturais do Estado do Rio de Janeiro, residentes principalmente na Região Metropolitana. Apesar de a maioria dos presos e presas serem juridicamente solteiros, a maior parte dos homens e 44% das mulheres mantêm relacionamento; 65,6% dos homens e 80,8% das mulheres possuem filhos. Em sua maioria, essas crianças estão sob a guarda da mãe, no caso dos homens presos. Nota-se que não há um questionamento mais profundo sobre as formas de queixas de degradação sexual no cotidiano. No caso das mulheres, as crianças ficam sob a responsabilidade do avô materno ou da avó materna.

Tendo em vista a importância da religião para o preso durante o cumprimento de sua pena, tanto do ponto de vista do apoio e da assistência que recebem quantos da sua própria subjetividade, constatamos que a maior parte dos homens e das mulheres professa alguma religião, dentre as quais se destacam a católica e a evangélica.

Quanto à cor da pele, item de difícil definição, equilibra-se a quantidade de homens e mulheres brancos e pardos/pretos; entre os homens o percentual de pardos/pretos é ligeiramente maior (52%). O estudo não apresenta mais esclarecimentos sobre as classificações usadas; reproduzimos os dados por uma questão de fidedignidade ao documento.

A infância acaba sempre sendo a primeira vítima das investidas para exibir seu potencial de autoedificação. Singular, tem que se conformar com o desígnio de homogeneização dominante de lógicas adversas. A TV sempre acumula, no seu caráter cultural, certa subserviência que chega às raias da negação da razão sensível. Artificializa o gestual infantil e põe o adolescente frente a frente com o vulgar e mediocrizante das tragédias sociais. Usa uma arma irrefutável, que é a magia, a sedução, o encantamento da fantasia de tal forma que consegue vender de maneira automática o que apresenta. É o retrato de uma relação covarde com a população, principalmente a que tratamos aqui.

Com todo esse poder, porque não utilizar a TV para o bem? Não está na hora de aprendermos a aprender? Não está na hora de sentir o que aprendemos, principalmente para aprendermos a sentir? Não fazemos aqui apenas um trocadilho irresponsável de ideias num jogo sórdido de palavras. Estamos querendo convidar o leitor a pensar no poder educativo que a TV tem. Há um novo espaço, uma nova geografia não explorada. Ela garante o transito livre do infoentretenimento. Mas esse é um assunto para outro momento.

O estudo aponta para uma verificação expressiva da população carcerária de baixa escolarização; o analfabetismo oscila de 11 a 13%, tanto entre os homens quanto com as mulheres. Sugere-se que o abandono prematuro da escola foi ocasionado pelo início da vida de trabalho. Mas o principal ponto não questionado está na tipologia de labor que os introduziram na prática de produzir para viver. Para 42% dos entrevistados do sexo masculino e no caso das mulheres, os motivos alegados para a evasão escolar foram, além do trabalho, a constituição de vínculos familiares. Esses dados indicam que a falta de suporte social pode ter levado essa população a buscar precocemente a garantia de sua própria sobrevivência. Os dados mostram que 58% dos homens e 45% das mulheres trabalharam quando crianças para ajudar em casa. Magnoni (2000) afirma que os últimos 32 anos de nosso capitalismo foram marcados pela aceleração da construção de uma grande “fábrica de desempregados”. As causas foram: a soma de elementos novos no cenário do capital e de suas formas de acumulação como a infovelocidade, o surgimento de um novo tipo de objeto do conhecimento, o objeto complexo, o infobjeto, que será correlato a uma nova noção de sujeito do conhecimento (Oliveira, 2002). Com ele, espaço, tempo, substâncias, indivíduo, universos sofrem transformações essenciais, alterando o estatuto do ato de conhecer. Fica mais claro habitarmos e sermos parte de um mundo mais dinâmico, evolutivo, inacabado, de uma totalidade aberta, histórica, que tem pré-história tanto quanto contexto (Novello, 1988). São novas geografias em que os espaços se configuram na dissipação, habitantes distantes do equilíbrio, muito mais imprevisíveis do que antes, porém preparados a inserir hierarquias sofisticadas de organização e comportamentos ricos em potencialidades de evolução, capazes de levar o ato de pensar a abdicar de pretensões mecanicistas e/ou de lograr um controle absoluto, correlato de previsibilidades sem limites, principalmente sobre os processos do mundo natural (Stewart, 1991) ou da natureza dos vários mundos. Como denominou Thomas Kuhn, a “Revolução Científica Contemporânea” motivou toda uma nova compreensão acerca da realidade física básica, acarretando a instalação de uma imagem renovada de mundo, com marcas muito originais: a “imagem da complexidade” (Morin, 1987).

A escola de favela produziu seus frutos mais indesejados. Sua auto-organicidade, provavelmente de influencia exógena, foi capaz de capturar nossos menores excluídos, retirando-os de forma legal do produzir para viver pelo mais absoluto despreparo e desqualificação. Certamente a saída é trabalho, mas há de se verificar que tipo de ocupação formativa se poderá oferecer a essa população. Não sendo criminosos, não sendo cidadãos nem tendo noções disso, devem ser formados para uma vida de inclusão. A construção de um CIEP diferenciado, que congregue o que denominamos PAI, envolvendo educação, justiça e polícia (leia-se uma pedagogia especial que crie hábitos civilizatórios; um trabalho maior de educação cidadã, que vise à divulgação do sentido real e equilibrado de justiça e a inexoravelmente fundamental, mas, com a prática de uma violência inteligente, especifica e especial que não reproduza violentos, a presença de uma polícia educativamente corretiva) pode ser uma saída inteligente e produtiva para a complexidade do problema. Porém tudo com olhos no futuro de inserção no mercado de trabalho para uma vida legalmente produtiva e civilizada.

O PAI deve ser acompanhado por conselhos que se reúnam quinzenalmente para triar informações, determinar comportamentos, discutir e redirecionar metas. Devem ser municiados por ouvidores capacitados a perceber a mínima mudança de comportamento e/ou ação que leve à insegurança e negação do sistema. A ocupação total dos internos deve ser o mote central do PAI. O misto segurança/educação deve ser privilegiado, cabendo ao trabalho de reengenharia tática e estratégica a elaboração do mesmo sem ferir o corpo do projeto. Seguramente não se deve desprezar o maior invento da revolução cientifica recente, que foi o infomotor,capaz de permitir não só o encurtamento das distâncias como também o deslocamento em grandes distâncias com o mínimo movimento físico. Ele é capaz de reduzir a pirâmide de complexidades que enfrentamos hoje. Como prescindir dele agora? Mudar para ele e na direção dele é fundamental! Não podemos mais fabricar profissionais desempregados que, devolvidos à sociedade, irão delinquir por razões como sustento, alimentação, moradia e cidadania, todas razões que alicerçaram violências de séculos passados.

O reforço dessa dura realidade surge de estudo das profissões que presos chegaram a exercer e que foram da velha e anterior realidade. Ele aponta que 30% dos homens que se dedicaram à construção civil e 32% das mulheres aos serviços domésticos. Tais profissões não só configuram a fabricação de futuros desempregados como mantêm o quadro de combinações que alimentam nossas crises sociais: desigualdade da distribuição dos recursos e, como resultado, a exclusão social. Atividades como essas foram exercidas, em geral, de maneira informal em nossa sociedade, sem nunca constituir vínculo empregatício seguro e duradouro.

Durante a infância, a maioria (58%) dos entrevistados, tanto do sexo masculino quanto do feminino, informou que foi criada pelos pais. A maioria deles considerou suas relações familiares como boas e são provenientes de famílias numerosas (46% dos homens e 51% das mulheres têm de 4 a l0 irmãos). Muito embora um grande grupo tenha crescido apenas sob os cuidados maternos, 26% dos homens e 18,5% das mulheres mantiveram os laços familiares criando os irmãos unidos no caso de 87% dos homens e 73% das mulheres. Essa união familiar gerou os sentimentos de amor e amparo em 88,7% dos homens e 77% das mulheres.

Para aqueles que citam os maus tratos familiares quando crianças, no caso dos homens podemos observar que existe correlação com o uso de drogas (36,8%). No caso das mulheres essa correlação é de 27,4% para o tráfico (artigo 12 do CP).

É interessante observar que esses presos não têm familiares com passagem pela prisão (homens 74% e mulheres 67%), o que demonstra disseminação do crime pela sociedade.

O roubo e o tráfico são os principais motivos de condenação entre os presos que ingressaram no sistema penitenciário no período estudado, a maioria deles condenada pela primeira vez. A maior concentração de jovens de 18 a 25 anos está no tráfico; o roubo é mais praticado entre 26 a 40 anos. Entre as mulheres, o delito mais praticado em todas as faixas etárias é o tráfico, seguido pelo roubo.

Relacionando-se os artigos de condenação com o grau de escolaridade, observa-se que os presos condenados no artigo 16 do CP (uso de drogas) têm o maior grau de escolaridade, equivalente ao Ensino Médio ou mais (21 %). As mulheres condenadas no artigo 12 do CP estão na faixa etária de 26 a 40 anos e têm baixo grau de escolaridade, ou seja, estão entre a 2ª e 8ª séries do Fundamental.

Quando se observa a responsabilidade pelo crime cometido, percebe-se que a maioria das mulheres (57%) reconhece a sua responsabilidade, enquanto 45% dos homens assumem o delito. Destes, o maior grupo está condenado pelo uso de drogas. Já entre as mulheres, aquelas que mantêm a responsabilidade são as condenadas por roubo.

Dos motivos alegados para a prática do crime, 40% dos homens e 36% das mulheres indicam que as necessidades materiais impulsionaram, salientando que esposa(o), companheira(o) e filhos dependiam economicamente do trabalho dessas pessoas. Já o desejo de consumo se manteve no segundo lugar para 19% dos homens e 20% das mulheres.

Quanto à reincidência de práticas criminosas, observamos que 27% entre os homens e 37% das mulheres afirmaram serem reincidentes. Entre os homens, a condenação por roubo havia sido de 42,7% dos casos e o tráfico, 19,1 %. No caso das mulheres, a condenação anterior era de tráfico em 9%. Considerando o número alto de perguntas não respondidas quanto à reincidência nas mulheres, estamos reavaliando os instrumentos de aferição utilizados.

Quanto ao uso de álcool e outras drogas por familiares dos presos, observamos que o álcool era a substância mais usada pelo pai para 22,2%. Também para mulheres o álcool era utilizado pelo pai em 20,6%. O sentimento revelado em relação a essas pessoas era amor para 26,7% dos homens e 68,5% para as mulheres.

Quanto ao uso de drogas por eles(as) mesmos(as), 58,5% no sexo masculino e 56,1% no feminino informaram ser usuários. A droga mais usada entre os homens era a maconha (75,8%). Entre as mulheres (65,2%) era cocaína. Ambos os grupos começaram a utilizar a droga entre 15 e 18 anos, movidos pela busca de integração ao grupo social.

A maioria de homens (82%) e mulheres (84%) presos têm expectativas positivas de cumprimento da pena no sistema penitenciária. Revelam interesses como exercer atividade laborativa, frequentar escola, desenvolver atividades culturais, aprender uma profissão. A área profissional de maior interesse para os homens (23,2%) é a de oficina de automóveis.

Avaliando as indicações feitas pelos técnicos, pode-se verificar que a assistência, no sentido amplo (psicológica, social, médica, odontológica, educacional, profissionalizante, cultural e relacionada às drogas), foi aconselhada para a maioria dos entrevistados. Pode-se pensar que a continuidade e a eficácia de políticas públicas de caráter preventivo se constituem em fator de diminuição dos índices de criminalidade.

Do mesmo modo, a indicação de escolarização aponta para a necessidade de implementar o Ensino Fundamental, com ênfase no desenvolvimento pleno da leitura e da escrita, que se constituem em requisitos básicos para a cidadania.

O trabalho é fator fundamental para a autoestima do condenado, sendo importante que se constitua em atividade formadora valorizando a participação do trabalhador e sua qualificação profissional, numa perspectiva de resgate da cidadania.

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Publicado em 8 de outubro de 2013.

Publicado em 08 de outubro de 2013

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